SPOKEN WORD: Escrita para ouvir

PorChissana Magalhaes,12 jun 2016 6:00

Depois das tocatinas, dos concertos intimistas e dostand up comedy, as noites de Praia têm mais uma novidade: o spoken word está a ganhar espaço e público. A rimar ou nem por isso. Com ritmo e poesia ou com rhythm ‘n’ blues. Com muito rap, sem dúvida. E, porque não, finason? A língua em que se soltam as palavras faladas parece não ser problema. No ritmo certo, com atenção à respiração e à entoação. Sobretudo com emoção.

E não faltaram emoções na noite de final de Maio em que fomos ver, e sobretudo ouvir, mais uma edição do Spoken Word Cabo Verde. Um evento que pretende incentivar  e divulgar de forma inovadora a boa escrita.

No palco improvisado couberam nervos, ansiedade, timidez, humor, auto-confiança, doçura… som & fúria.

 Uns em estreia, outros a repetir a experiência, uns mais, outros menos conhecidos, os participantes eram um leque variado de jovens. Rappers, cantoras em revelação ou simplesmente gente que escreve e que quis tornar verbo as palavras até então aconchegadas em papel. Houve quem improvisasse, outros tinham as palavras memorizadas na ponta da língua. Não faltou quem levasse consigo uma folha de papel, evitando o risco de se engasgar na hora de debitar o texto.

O spoken word (em tradução literal “palavra falada”, ou “palavra dita”) é, no entanto, muito mais do que declamação de textos. Também não é uma actuação musical, embora exija muita musicalidade. Haverá quem o categorize como género literário, porém a definição mais consensual será a de performance artística, uma actuação envolvendo uma mescla de expressões artísticas que vão da literatura à música, passando pelo teatro.

No palco de um evento de spoken word a palavra é rainha. “Palavra falada, cantada e dançada”, explica Vera Cruz, juntamente com Patrick Neto, dinamizadora do Spoken Word Cabo Verde.

Palavra dançada, sim. Basta observar a presença em palco de Edyoung, um dos slammers (expressão que deriva de poetry slam, uma variante de spoken word) da sessão a que assistimos. Para o rapper de Assomada, apontado como um dos melhores da actualidade, a palavra dita é ritmo ao som do qual o seu corpo se movimenta com uma energia que vai aumentando e baixando de intensidade, num bailado que hipnotiza os que assistem.

 

Gestação e parto

O projecto Spoken Word Cabo Verde estava a germinar há algum tempo. As experiências anteriores de Vera Cruz e Patrick Neto em iniciativas do género, em Portugal e não só, foram o catalisador. Depois do primeiro contacto directo da performer com o spoken word, num evento na Gulbenkian (Lisboa), ensaiou outras experiências de palavra dita fora dos padrões habituais da declamação clássica de poesia: com o CidadiPoesia, evento organizado em parceria com Samira Pereira, iniciado em 2011, percorreu espaços emblemáticos do Plateau em recitais performativos de poesia. Houve também, entre outras, o Sakuta, no Kriol Jazz Festival e, mais recentemente, “Dona Gina”.

“O Patrick Neto propôs-me que começássemos a fazer aqui eventos de spoken word e foi assim que, depois de algum tempo de preparação, arrancamos em Janeiro deste ano”, conta a actriz.

Desde então, foram já quatro as edições realizadas, a última das quais a do final de Maio. Por ora com periodicidade mensal (saltaram a sessão de Abril devido à tragédia de Monte Txota), o Spoken Word Cabo Verde “é ainda bebé”, diz e repete a actriz. Para já, “ainda estamos à descoberta de pessoas que escrevem bem”.

Os primeiros “slammers” (denominação dada aos performers de spoken word) foram encontrados entre os amigos. No início depararam-se com alguma resistência. Vera acredita que muitas pessoas querem ser provocadas e desafiadas a se apresentarem em palco. “Depois acabam por ver que não é nada de mais”.

Também acredita que há por estas bandas muito “capital humano”. E por isso, a parte que mais gosta na organização das sessões de spoken word é a preparação dos “slammers”. Na véspera de cada edição há um ensaio com os performers da vez. Vera ajuda os performers da vez a afinar a dicção, a entoação, a projeção da voz, etc. Esse é o momento de “aproveitar o que a pessoa tem, a disponibilidade emotiva… Construir máscaras, tirar máscaras…há espaço para todo o tipo de gente e de temas”, revela, sublinhando a importância da interdisciplinaridade no fazer e da boa compreensão no receber. “É importante que as palavras sejam bem absorvidas e mastigadas pela audiência”.

É que as palavras ditas numa sessão de spoken word são textos autorais, com conteúdo muito próprio do autor, que o expõem (total ou parcialmente). Mas sem que isso queira dizer exclusivamente dramas. Há espaço, muito espaço, para o humor no spoken word.

As palavras de Alexandre Tey assim o atestam. No evento a que assistimos, com a sua poesia burlesca, regada de ironia, paródia e auto-paródia, arrancou risos da plateia.


Crescer

Um palco de spoken word é território livre. A liberdade de expressão é total, o calão não encontra ali censura. Até agora os organizadores não tiveram necessidade de impor regras, mas tal não implica que discursos de ódio - sejam eles racistas, misóginos, bairristas ou de qualquer tipo – venham a ser tolerados.

Já se prepara o futuro. E não apenas a próxima edição, que se realiza no final deste mês. Vera fala da intenção de transformar a iniciativa numa associação que terá como fim promover a escrita e a verbalização da escrita. Para já continua a buscar por mais pessoas que escrevem e queiram transformar os seus textos em literatura para ouvir. “Jovens, crianças e adultos de todas as idades. Eu já estive a tentar convencer uma senhora de sessenta e tal anos que se sente inibida de participar por causa da idade”.

À língua também não se coloca restrição. Naturalmente, o Crioulo e o Português dominam. Contudo nas várias edições do Spoken Word CV já se ouviu também Inglês, Francês e Castelhano. A variedade fonética é bem-vinda.

A evolução pede também mais “aparato” técnico. É que além-fronteiras, onde nasceu o género, o spoken word como performance artística que é pede cenário musical e visual. E aí entram os DJs (Disc Jockeys) e VJs (Video Jockeys) que, qual artífices de sons, luzes e imagens concebem e montam um ambiente onde o performer e as suas palavras se encaixem bem.

Ou seja, a iniciativa Spoken Word Cabo Verde abre espaço para que surja uma nova geração de artistas urbanos que aí criem e divulguem a sua linguagem. 

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 758 de 08 de Junho de 2016.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Chissana Magalhaes,12 jun 2016 6:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.