Vinha cansada das viagens inter-ilhas, dos vários dias de espectáculos, e do convívio do dia anterior com familiares e amigos. Mas ao longo da conversa [em véspera de Natal] foi ganhando vigor ao falar da sua música, das suas escolhas enquanto artista e mulher, e das coisas em que acredita. Um novo disco para este ano, uma artista apostada em evoluir, uma defensora da tolerância. Assim é Mayra Andrade a um mês de completar 32 anos.
Desta vez, a sua vinda a Cabo Verde teve um impacto diferente. Inclusive um espectáculo em Mindelo onde já não actuava há dez anos…
Venho regularmente a Cabo Verde, três a quatro vezes por ano. O que acontece é que não tenho actuado em São Vicente. Sem dúvida que vir a Cabo Verde com a missão destes três espectáculos [Sal, Praia e São Vicente] é muito mais forte e interessante para mim, juntar o útil ao agradável. Para mim é muito importante que o público consiga acompanhar a minha evolução ao vivo. Porque os discos são uma coisa e actuar ao vivo outra. E para mim foi um prazer. Um reencontro muito bom. Foi forte.
A Mayra escolheu actuar com jovens rappers. Porquê esta opção?
É algo que sempre tentei fazer e que não tinha ainda tido oportunidade de fazer aqui em Cabo Verde, e também sinto que é algo que devemos fazer: apostar mais nestes artistas que estão a despontar agora e nesta área da música mais urbana e pop. Em Cabo Verde temos a família do tradicional, a família da Kizomba/Zouk e depois há esse pessoal que fica um pouco off, um pouco “órfão”. Foi uma forma de mostrar que música é música. Acho que o Hélio Batalha, particularmente, tem muita qualidade naquilo que escreve. Ele é um poeta urbano. E ele aceitou o meu desafio e superou as minhas expectativas e penso que das pessoas também. Foi muito bonito e algumas pessoas até sugeriram que gravássemos essa nova versão da música “Tempo Ki Bai”.
É uma possibilidade, gravarem juntos?
Com o Hélio? Sim…Porque não? Não é uma ideia que tenha sido falada entre nós, mas é assim que surgem as colaborações… Essa parceria com o Hélio no concerto da campanha Livres e Iguais não foi só eu a ajudar o Hélio a ganhar visibilidade junto do meu público. O contrário também é verdade. O Hélio tem uma visibilidade junto de um público mais jovem e urbano e era importante para mim associar-me com alguém desse estilo para chamar atenção a este público sobre a mensagem que queríamos passar. Estamos a falar de mensagens de tolerância, de aceitação de modos de vida diferentes do que sociedade aceita, e portanto também era importante ter um homem, um jovem, a passar essa mensagem.
Podemos dizer que a Mayra é uma cidadã do mundo. Talvez nem todos os artistas assumissem ser embaixadores desta causa…
Tenho uma grande sensibilidade para a Justiça. Sinto que há muitas causas que eu poderia abraçar e provavelmente vou fazê-lo ao longo da minha vida. Foi um convite que recebi, tinham essa ideia interessante para uma campanha. Às vezes te convidam para ser madrinha, mas não te ajudam a ajudá-los e não há um dinamismo. Uma madrinha deve ajudar a dar visibilidade à causa, mas deve também arrecadar meios para aplicar. Contudo deve haver iniciativa por parte da instituição. Sou também madrinha da psiquiatria do Hospital da Praia e do Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente. Por vezes não consegui ter uma posição da parte da administração que me permitisse ter a legitimidade de fazer certas coisas. Espero vir a ter outras oportunidades de fazer mais por estas instituições. Voltando à causa LGBT, eu sou uma pessoa muito aberta e, talvez pelo facto de ser artista, acho que tenho um índice de tolerância elevado e convivo de muito perto com a comunidade, tenho amigos que fazem parte da comunidade LGBT. Temos que ter abertura de deixar as pessoas experimentarem coisas e descobrirem que afinal não são heterossexuais e sim bissexuais, ou descobrirem-se homossexuais, ou decidirem virar travestis…
Portanto, não sentiu nenhum receio de associar a sua imagem a esta mensagem.
Não. Há pessoas que podem criticar. Há pessoas super-intolerantes e há pessoas que podem achar que há outras causas prioritárias. Mas…quer dizer, sofrimento é sempre sofrimento e eu estou disponível, sempre que puder e quando as coisas forem bem-feitas e organizadas…Querendo ou não, é tempo que estou a investir nisso. Não podendo ser madrinha de todas as causas prefiro sê-lo numa organização que realmente tem um plano e uma ambição a médio e longo prazo.
Temos aqui esse debate, quase “guerra” música tradicional versus música moderna. A Mayra a certa altura esteve na berlinda e quase que teve que se “defender”…
Não é uma questão de estar na defensiva…É um processo. Fiz sempre os discos que quis fazer. Portanto, se em algum momento fiz discos mais tradicionais é porque era um momento em que me queria afirmar como uma cantora de Cabo Verde. Já fiz quatro discos e antes de mais faço discos e canto para mim. É uma vocação, é algo que faço desde os 3, 4 anos. Então quando faço música penso naquilo que representa um desafio para mim, aquilo que me excita e me dá ideias. Eu gostaria de nunca sentir tédio quanto à minha música. Vivo o momento. Aquilo que fiz há dez ou mais anos não pode ser igual ao que vou fazer agora. Eu costumo brincar que estou a ficar cada vez mais jovem. Comecei com algo da “raiz”, apesar de nunca ter sido algo 100% tradicional. Tendo em conta o meu percurso de vida, era estranho se eu fizesse algo 100% tradicional. Tendo em conta os anos que vivi fora… É como se me chegasse uma certa confiança e serenidade, porque muitos já me conhecem como cantora cabo-verdiana então agora sinto vontade de fazer outras coisas.
Não tem receio de perder público cabo-verdiano á medida que vai ganhando público do mundo?
Não, não sinto isso. Até porque veja-se a colaboração que fiz com o Nelson Freitas…É algo muito diferente do que tenho feito até aqui e, no entanto, eu vejo o impacto que teve em muitas pessoas, nomeadamente numa camada mais jovem. E eu até vejo que tenho um público de crianças, aqui em Cabo Verde. Fui há dias a uma escola visitar os meus sobrinhos e foi maravilhosa a forma como as crianças me cercaram, pediram autógrafos, cantamos juntos… Foi incrível. Então… não acho que o público se afaste de um artista que goste por este fazer coisas diferentes.
Até porque o público cabo-verdiano está cada vez mais aberto ao mundo…
Quando comecei a fazer shows, com 14 e 15 anos, as coisas eram muito diferentes. E agora vejo muitos artistas bem jovens e são muito mais descomplexados naquilo que fazem porque houve um precedente. E também por causa da internet, que tem uma grande influência.
Quatro discos, o último já é de 2013. Já faz um tempinho…O que está a preparar para o novo disco?
Ainda está num estado muito embrionário, de compor e de recolher músicas. Ainda não sei com que produtor vou trabalhar. Não gosto de revelar muito sem que as coisas estejam mais concretizadas. Mas penso lançá-lo no outono de 2017. E sim, a exploração das novas sonoridades vai continuar.
Temos visto muito interesse de artistas estrangeiros pela música cabo-verdiana, passando a interpretá-la em parceria ou a solo. A Mayra é uma das mais requisitadas nestes encontros. Acha que é uma moda ou algo que vai crescer e manter-se?
Eu espero que sim. A música de Cabo Verde é um pouco de muita coisa. Há fenómenos que são moda, como a salsa foi moda, como o kizomba está na moda, e é uma música muito popular, mais comercial… Mas o reggae também, não sendo comercial, esteve na moda e teve um impacto mundial muito grande e está agora numa fase mais “baixa”. Então, há modas…Mas eu tenho uma certa tranquilidade em relação a isso porque a música que faço é mais intemporal. Não tem um impacto tão massivo…Digamos que é uma diferença como entre um sprint e uma maratona. Eu me considero mais uma corredora de maratona do que de sprint.
Nas parcerias com os artistas nacionais, vem se aproximando mais desta nova geração, mais pop. Mas não vai deixar de colaborar com artistas de outras áreas e geração, não é?
Não tenho este tipo de restrições. Já gravei com o Teófilo Chantre, já convidei várias vezes a Sara Tavares para cantar comigo ao vivo e ela está a colaborar comigo no meu novo disco…O Tito Paris também, já foi meu convidado para actuarmos juntos ao vivo. Ele tinha-me convidado para gravar no último disco dele mas acabou por não ser possível…Há também o Kim Alves, que sempre chamo para os meus discos. O problema é que os músicos cabo-verdianos vivem espalhados pelo mundo.
Porquê a mudança para Portugal depois de tanto tempo em França?
Vivi 14 anos em Paris. Mudei-me porque estava a precisar de mais qualidade de vida. Paris realmente ofereceu-me muitas coisas, muitas oportunidades. Mudei-me para lá com 17 anos, parte de mim já é parisiense. Eu já viajei tanto, comecei a trabalhar tão cedo, que pensei que não devia esperar chegar aos 50 anos para ter qualidade de vida [risos]. Considero que já cheguei a um patamar que, graças a deus, a viver em Paris ou Portugal, terei trabalho. Então optei por viver em Lisboa por causa do clima, por causa da família, porque fico mais próxima de Cabo Verde, porque a forma das pessoas se relacionarem é mais próxima da nossa…Enfim, a vida de tournées pode trazer muita instabilidade emocional porque ficas sem rotina, e às vezes sem “chão”. Então é importante que quando regresses a casa te sintas bem. E isso foi algo que reencontrei em Lisboa.
As pessoas sentem curiosidade em relação aos artistas que seguem. E, no caso das mulheres, há sempre aqueles boatos sobre namoros e maternidade…
Não falo muito da vida pessoal, mas sim… em ralação à maternidade, ter um filho é algo que gostaria. Aliás, aproveito para esclarecer que nunca tive um filho. Sempre que engordei uns quilos as pessoas começavam a dizer que eu estava grávida. Pelos rumores, eu já “tive” uns oito filhos [risos]. Até “sete” [n.r.festa tradicional também conhecida por “guarda cabeça”, oferecida à criança no seu sétimo dia de vida] disseram que houve para um suposto filho que eu tive.
Há esse controlo às mulheres, não? Se vão ter filhos ou não, se estão gordas ou magras… Começamos a ter, recentemente, algum debate à volta destas questões. A Mayra interessa-se por estas questões de género, machismo, estas discussões?
Através dessa questão da LBGT, tenho falado muito sobre o machismo na nossa sociedade. Mas, por vezes, também acontece em discussões um feminismo extremo que lava a perder razão. Acredito que nenhum género é mais importante do que o outro. Em relação a esta questão do corpo, acho que vivemos numa ditadura da imagem e cabe a nós combatê-la. E temos que nos ajudar e começar por nós mesmos, trabalhando a nossa auto-estima, aceitando-nos como somos. A beleza está em tudo. Não há um tipo de corpo que é mais bonito, um tipo de cabelo ou de tom de pele que é melhor. E as mulheres devem ser mais solidárias entre si, porque muitas vezes são elas que não ajudam. Tenho percebido em conversas com amigos que muitos homens não estão à procura da mulher de capa de revista, não é isso que mais os atrai. Por vezes eles vêm em certas mulheres algo que nem elas mesmas conseguem identificar. Então é importante que esse bem-estar e essa autoconfiança partam de nós mesmas.
Voltando à música… A Mayra é também compositora e cada vez mais escreve os seus próprios temas. Sobre o que escreve actualmente, o que a inspira?
Antigamente escrevia mais sobre temas que não tinham a ver com a minha realidade mais directa. Sobre o meio rural, sobre um pescador, um camponês… e, à medida que os discos foram nascendo, comecei a encontrar um ângulo, uma forma de falar de mim, da minha vida, das pessoas que amo, de um problema, um sofrimento, um sentimento…Á medida que emadureço começo a encontrar a poesia que existe na minha própria vida. Às vezes penso: “a minha vida não tem nada de interessante”, mas afinal…
Há quem caracterize como genuinamente cabo-verdiano apenas o rural, o tradicional. Mas o urbano, moderno e actual também pode ter muito de cabo-verdianidade, concorda?
Exactamente! O pessoal, o interior também. Isso é algo que veio com o tempo. Começou em Storia Storia. Lovely Difficult já traz temas claramente mais pessoais, temas sobre a minha família, sobre a minha mãe…O próximo disco também vai ter, coisas sobre amor, sobre relações, sobre alguém com quem vivo, ou sobre ex-namorados…Embora há também músicas que escolho ainda hoje e que trazem este aspecto tradicional, e eu tento equilibrar com estes temas mais pessoais. Porque de outro modo me cansaria cantar sempre sobre ladera, sulada, nôs cutelo…Não digo que não canto mais sobre isso. Mas tento não fazer apenas isso. Se não, acabaria por ser redutor. Então nós só somos cabo-verdianos com esse “tempero”? Tem que ser sempre a mesma “comida” [risos]?
E então com que outros compositores tem buscado colaborar na procura desses novos ingredientes?
Neste momento estou a tentar criar novas parcerias com compositores. Lisboa oferece-me isso: um acesso mais directo a compositores cabo-verdianos que estão lá. Eles têm uma linguagem já mais contemporânea, mais mestiça e global, por assim dizer. Também gostaria de encontrar em Cabo Verde. Temos que re-organizar as coisas aqui em Cabo Verde, em ralação a jovens compositores, poetas…Temos que ter um lugar de encontro, onde podemos dialogar, trocar…Um lugar onde, se eu for passar uma tarde, posso lá encontrá-los e dialogar. Porque eu venho a Cabo Verde e não sei onde encontrar estas pessoas. E eu posso ser um veículo para eles, ajudar a lançar lá fora nomes de uma nova família de compositores. Então, em Portugal tenho estado em contacto com alguns compositores cabo-verdianos que têm vindo a dar-me músicas - algumas vou usar no novo disco, outras não - e que claramente têm uma escrita mais pessoal. E isso está a interessar-me. Então gostaria que o novo disco trouxesse três ou quatro destes nomes, que não são novos para esse nicho de compositores, mas também são nomes que não têm grande projecção internacional e que gostaria de ter neste trabalho.
O que espera deste novo ano? Tem uma mensagem para os leitores?
Gostaria de desejar às pessoas um ano de 2017 com muita serenidade. Estamos a viver um momento muito turbulento a nível global, um momento preocupante em que todos os dias temos notícias tristes, feias, violentas e injustas…Quero que as pessoas procurem dentro si uma força para continuar a projectar esperança e positividade, porque o mundo precisa disto. Temos que fazer alguma coisa à nossa escala: nas nossas casas, na nossa zona, na nossa ilha, no nosso Cabo Verde. Acredito em energias e na nossa capacidade de projectar ao mundo energias de irmandade, justiça e amor. É isso que desejo para este novo ano: paz.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 789 de 11 de Janeiro de 2016.