Duas gerações, quatro artistas, um encontro (quase) irrepetível

PorChissana Magalhaes,27 mai 2017 11:16

Em duas das maiores salas do Palácio da Cultura Ildo Lobo, e também pelos corredores, encontra-se desde o dia 18 de Maio e até 1 de Junho, uma exposição de pinturas que, pela sua natureza, transcende a mera exibição de quadros. Os quatro autores das obras expostas – os irmãos David, Abraham e Miguel Levy Lima, naturais de Cabo Verde e há várias décadas a viver em Portugal, e o filho/sobrinho Luís Miguel, ali nascido – fazem também, em certo sentido, parte da mostra.

 

“Passados todos estes anos, é como se fosse a primeira. Não pela ansiedade, não fico ansioso”, diz David Levy Lima sobre esta exposição.

Não por acaso intitulada “Duas gerações, quatro artistas” a exibição, patrocinada pela Garantia Seguros e o Banco Interatlântico   organizada pela tutela do PCIL, conta diariamente com a presença dos quatro artistas plásticos que vieram de Lisboa para um reencontro com as raízes. Eles recebem o público, acompanham-no pelo périplo às obras expostas se este assim quiser, e respondem às suas perguntas. Posam para fotografias, registam outras tantas dos amigos e conhecidos que por lá passam. E a mais estariam dispostos se com eles fossem ter estudantes e jovens artistas que quisessem aproveitar da sua experiência.

David, o mais velho, que já teve a experiência de ter uma plateia a vê-lo pintar numa outra exposição há alguns anos, também no Palácio da Cultura, deixa transparecer alguma mágoa por não ver mais gente por lá agora. Principalmente por causa do irmão, Abraham, que há cerca de cinquenta anos não vinha a Santiago.

“É triste. É com mágoa que eu vejo o meu irmão ir mais cedo. Estão a perder uma oportunidade tremenda”, aponta, com a tal mágoa a transparecer-lhe nas feições e referindo-se à dificuldade de uma tal exposição repetir-se.

É que pela sua especificidade, o trabalho artístico de Abraham Levy Lima têm um ciclo de produção mais demorado. São pinturas a óleo, em que o artista reproduz, com extrema minúcia, cenários e objectos reais. Nesta mostra são sobretudo navios, batalhas navais. Por outro lado, transportar os quadros dos quatro artistas de Portugal a Cabo Verde exige uma logística que não se repete com facilidade.

“O Abraham praticamente não tem stock: quando ele termina uma obra já há quatro ou cinco pretendentes a ela. Ele não consegue estar sempre a expôr, e também é complicado a nível logístico transportar o trabalho dele. Ele chegar aqui é um sacrifício”. De modo que conclui: “Estaríamos mais satisfeitos se aparecesse mais gente. Escolas…Estamos disponíveis, abertos…”.

O irmão também lamenta ter que partir já, mais cedo do que os outros que ainda ficam até entrar Junho. O segundo dos Levy Lima, ao testemunhar um momento de emoção do irmão no decorrer da entrevista deste, diz-se o mais frio do grupo. Contudo, também lhe vimos brilhar os olhos e lhe ouvimos embargar a voz, entre sorrisos, quando lhe perguntamos sobre a eminência da sua partida. A felicidade de estar em Cabo Verde é perceptível.

“Infelizmente vou regressar mais cedo, com receio de cá ficar. Gosto muito disto. Mas tenho a minha vida lá… Tenho cá bastantes amigos, amigos de infância que não via há quarenta, cinquenta e tal anos”.

Mais presente em Cabo Verde tem estado Miguel, o mais novo dos três irmãos e pai de Luís que pela primeira vez integra uma exposição colectiva com todos.

Expondo em Cabo Verde quase sempre ao lado do irmão David, Miguel assume desde logo a grande admiração pelos irmãos.

“Eu menino, ainda a tropeçar nas pernas, e já andava à volta deles e a vê-los pintar. Sim, era inevitável que eu também me tornasse pintor”, assume.

“Sempre gostei de fotografia; fiz fotografia de estúdio, ganhei traquejo e trabalhei nisso, música também, ilustração para publicidade… Mas nunca abandonei a pintura. Com dois mestres em casa… Fui para Portugal com 17 anos. Os meus irmãos tinham ateliers de porta aberta…Era o mundo aos meus pés. Eram os meus mestres e aprendi a técnica com eles. Pouco tempo depois já comecei a produzir obra minha. Nos primeiros tempos usei óleo. Tive esse período a óleo, depois segui o meu caminho e já tinha temas meus”.

 

Da inevitabilidade

Três irmãos pintores e muitas vezes referenciados em simultâneo, as comparações entre o trabalho dos Levy Lima são frequentes. Os estilos, bem como os temas, são no entanto bastante diferenciados.

“De todos, sou aquele que menos pinta Cabo Verde. Sou universalista”, diz Abraham referindo-se à particularidade dos seus temas, quase sempre reproduções de cidades de arquitecturas complexas e de navios de época, resultantes de um trabalho prévio de recolha documental e estudo.

E conta-nos que quando começou a pintar o irmão mais velho já tinha um atelier que ele passou a partilhar. “Depois de uns anos de partilha, não se conseguia evitar: consciente ou inconscientemente, segui uma parte da linha dele”.

“O que aconteceu é que chegou uma altura em que eu não quis ser o meu irmão “de segunda”. Não quis ser David II”, ri-se, lembrando um dito muito repetido pelo pai.

Consciente das suas capacidades, investiu num caminho próprio e muito cedo tornou-se visível a diferença entre o trabalho dos dois irmãos.

 “O que me interessa é o apontamento que tiro e pesquisa que faço das coisas. É o que quero: documentar as coisas para a memória futura”, sublinha.

As motivações do sobrinho, reflectidas nos seus quadros, são outras. Ou se calhar, nem tanto. Luís Miguel – autor dos quadros expostos que representam Bana, Cesária Évora, Paulino Vieira e Lura (uma escolha algo simbólica, pela analogia que faz à diferença de gerações também representada) – diz que a arte tem que ser tudo menos indiferente. “Tem que fazer viver. Fazer sentir. Não é só fazer. É saber fazer”.

No entanto, durante algum tempo ainda tentou escapar aos pincéis. Formou-se designer gráfico, trabalhou em revistas como a Time Out e a Sábado. Acompanhando de perto e desde sempre o trabalho do pai e dos tios, sabia que não era uma vida fácil. Mas chegou uma altura em que “deixou de ser uma opção. Eu tinha que fazer. Aliás, já fazia sem me dar conta. Era inevitável”, diz, sem suspeitar que o pai viria a repetir a mesma palavra para explicar o apelo das artes plásticas.

Como o elemento da nova geração, Luís sabe que o seu trabalho será sempre comparado ao do pai e dos tios e convive bem com isso. Admite a sua influência, principalmente na sua fase inicial.

“Acho que agora tenho o meu próprio estilo”, acrescenta algo timidamente. “Neste momento, quero desenvolver esta estética dos rostos. Da emoção, do sentimento, do olhar”.

“Duas gerações, quatro artistas” acontece muito por sua causa. O pai, Miguel, é quem iniciou os contactos e programou a mostra. Mas ele foi quem, perante as dificuldades que se foram sentindo, insistiu com os mais velhos. Afinal os três irmãos já não expunham juntos desde o início dos anos 90. E ele queria partilhar este reencontro que trazia ainda a particularidade de acontecer em Cabo Verde, terra que durante muitos anos fez parte do seu imaginário e que, com ajuda da música, da culinária e das fotografias do pai, conheceu antes mesmo de cá ter estado.

O pai descreve Cabo Verde das suas obras como um Cabo Verde “de memoria, de passado, do presente também, do que vou descobrindo e que me esta a tornar feliz”.

Felicidade seria também poder ter o patriarca da família, João “Dumila” (a quem seguiram as pisadas artísticas) a assistir a este momento.

 “Foi a minha primeira inspiração. O modo como ele fazia o seu trabalho, o amor que ele punha nisso... Seria uma grande felicidade ele estar a ver este momento. De alguma forma ele deve estar a ver…”.

Família, Cabo Verde, pintar e expor lado a lado.

“Representar Cabo Verde é uma honra. É a honra máxima. Até me arrepio. Tenho orgulho de ter nascido numa terra tão pequenina mas de horizonte tão grande que é o resto do mundo”, diz Abraham, resumindo o que os irmãos e o sobrinho foram passando durante a nossa conversa.

Luís descreve esta reunião de família em Cabo Verde, que correu o risco de não se concretizar, como um sonho. Algo de que vai se lembrar para sempre.

Ao findar do nosso encontro, David tira do bolso um papel já algo amarotado e exibe orgulhoso um desenho à caneta da neta, de apenas quatro anos, que com traços bem-feitos recria uma família de ursos de pelúcia.

“Repare no traço, não treme. Ela é canhota e fez isso de um só traço”.

A família Levy Lima parece ter assim assegurado o perpetuar do seu nome nas artes plásticas por mais uma geração.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 808 de 24 de Maio de 2017.

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Autoria:Chissana Magalhaes,27 mai 2017 11:16

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  26 mai 2017 12:06

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