“Canhão de Boca” - que foi emprestar o nome à forma como Amílcar Cabral se referia à Rádio Libertação por considerá-la “a arma mais poderosa do que todo o arsenal de guerra que pudessem possuir” - parte justamente da memória da luta pela Independência Nacional e dos tempos que se seguiram para uma “discussão contemporânea em torno da utopia da liberdade”, combinando e confrontando dois tempos, o presente e o passado históricos.
Através de um programa de rádio ficcionado, conduzido por Nuno Andrade Ferreira (jornalista e coordenador da Rádio Morabeza), o filme dá voz a Amélia Araújo, combatente que foi uma das vozes da Rádio Libertação na Guiné-Bissau entre 1964 e 1973, fazendo chegar informações e propaganda do movimento às populações e também ao inimigo.
Outra interveniente nesta “discussão contemporânea em torno da utopia da liberdade” é a comentarista Rosário da Luz, “voz que incorpora a informação crítica como luta da desconstrução contemporânea em Cabo Verde”.
Foram justamente os comentários de Rosário Luz, conhecida pela frontalidade com que assume as suas ideias e pela crítica mordaz que dedica à actualidade política nacional, que levantaram alguma celeuma na exibição do filme na capital.
No final da exibição no Palácio da Cultura Ildo Lobo a plateia, onde se encontravam como convidados alguns Combatentes da Liberdade da Pátria, dividiu-se entre aplausos entusiásticos e um perceptível desconforto.
Sobre o incómodo gerado, o realizador confirmou o mal-estar que ficou no ar mas acaba por desdramatizar e diz-se “feliz” por o documentário “estar a cumprir o seu papel e a trazer à discussão essas questões”.
Realçando a valorização dada ao papel desempenhado por Amélia Araújo na luta, Ângelo Lopes defende a intervenção de Rosário Luz e afirma que 40 anos passados da Indepência Nacional, “algumas coisas ainda estão por conquistar. É esse o contributo que o doc traz; se não se falar, se não se questionar, a história não avança”.
Já a sinopse da pelicula avisava: “A partir de eventuais confrontos, interessam as relações que o espectador reconstrua a partir do seu próprio pensamento”.
Debate
Em Mindelo, onde Canhão de Boca teve ante-estreia nesta segunda-feira, as reacções foram mais pacíficas. “Foi positivo”, sentencia o realizador que nos dá conta de um debate após a exibição.
Segue-se, a 11 de Junho, a estreia nas televisões públicas de todos os países da CPLP, com o filme a chegar a milhares de espectadores em 4 continentes.
É o culminar de mais de um ano de trabalho em que as dificuldades no acesso e edição de arquivos audiovisuais foram dos maiores desafios enfrentados pela equipa.
Em Agosto do ano passado, a produtora Samira Pereira avançava ao Expresso das Ilhas que “do ponto de vista da produção, a maior dificuldade tem a ver com o acesso aos arquivos. Nós temos em Cabo Verde uma carência muito grande de arquivos audiovisuais e uma série de constrangimentos quer a nível dos arquivos da televisão pública, quer a nível de arquivos pessoais. A dificuldade é não termos tecnologia que possa recuperar este material”, apontava.
Alertando sobre a urgência de se investir na recuperação e digitalização dos arquivos audiovisuais e fotográficos do país, a responsável máxima da O2 dizia que o facto do país, enquanto nação independente, só existir há pouco mais de 40 anos deveria facilitar a recolha, recuperação e organização desse arquivo audiovisual.
Os produtores e realizador de “Canhão de Boca” querem agora ver o filme a circular, quer inserido em mostras e festivais quer noutros contextos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 809 de 31 de Maio de 2017.