De regresso a Londres, onde vive há muitos anos, depois de uma actuação na sua Lisboa natal, Carmen Souza aceitou conversar connosco (via Skype) em vésperas de pegar novamente nas malas desta vez rumo a Cabo Verde, a terra das suas raízes crioulas. Identidade, “Creology”, referências e (pseudo) heranças… Em três tempos, foi isto (e um pouquinho mais) o que conversamos com a voz luso-cabo-verdiana mais jazzy a ecoar pelo mundo fora.
Identidade.
Dificilmente se encontra alguma referência à cantora Carmen Souza que não deixe bem evidente a sua naturalidade lusa tanto quanto a sua costela crioula. A sua vivência alfacinha está desenhada na sua personalidade com as mesmas cores garridas com que se veste e que soam no tantinho de sotaque “sintadez” que lhe passaram os pais, ambos originários de Santo Antão.
“Eu nasci e cresci em Lisboa [n: em 1981], e sempre me senti muito lisboeta. Cresci também com a parte da cultura e identidade dos meus pais, cabo-verdianos, e por isso sinto-me também cabo-verdiana”, resume a própria.
“Crescer numa família cabo-verdiana… Quando somos pequenos não nos apercebemos, mas somos esponjas. Absorvemos tudo a nossa volta. Desde a língua, o crioulo, a comida, a música… Acho que isso aconteceu comigo como acontece com tantos filhos da diáspora. Crescemos com essa presença cultural de Cabo Verde e isso torna-se nós também. Podemos estar a viver em Boston, Holanda… e temos sempre essa parte, diferente da cultura predominante de onde estamos".
Onde Carmen está [a viver] agora é em Londres. Era também lá que se encontrava no momento da nossa conversa. Mas, como é já rotina na sua agitada vida de artista que um dia acorda em Tóquio para dois dias depois jantar em Israel, estar em casa é uma passagem. Desta vez a passagem por Londres era um intervalo entre os dois mundos que fabricaram a sua “hipercrioulidade”: Chegava de Lisboa preparando já a partida para Cabo Verde, rumo ao festival Mindel Summer Jazz.
“É interessante estar em lugares diversos e perceber as diferenças. Somos sempre marcados pelos lugares por onde passamos”, sentencia, ressalvando no entanto que ser uma globetrotter não modifica a forma como sente a sua identidade crioula.
“O facto de eu estar a viajar pelo mundo não muda isso. Traz-me mais inspiração e mais criatividade, ideias para aquilo que eu faço para o meu desenvolvimento pessoal e profissional”.
Para esse desenvolvimento pessoal e profissional, e sobretudo nessa busca de inspiração, são importantes as vindas a Cabo Verde.
“Actuar Cabo Verde é um reencontro com a história que ando a contar pelo mundo fora”, define. “É sempre bom voltar e estou contente por estar no Mindel Summer Jazz”.
Depois do primeiro espectáculo em Cabo Verde, há seis anos, num vibrante concerto no Auditório Nacional Jorge Barbosa, na cidade da Praia, a passagem pelo Kriol Jazz Festival dois anos depois, em 2013, soube a pouco. O palco era partilhado, o público menor em tamanho. De um lado e de outro ficou a vontade de mais. Carmen regressa agora a chão crioulo, via Mindelo.
“Creology”, o seu mais novo disco, lançado este ano, está ainda recente. Talvez por isso Carmen e a sua banda, liderada pelo baixista Theo Pascal, optaram por dar prevalência no reportório a apresentar ao público do Mindel Jazz a temas do álbum anterior, “Epístola”.
Este disco, de 2015, vive mais do jazz e das improvisações. Quem é o diz é a própria Carmen Souza, ainda que habitualmente ignore os rótulos que insistem em colar à sua música.
“Não me preocupo muito com rótulos; quando estamos em processo de composição nem nos preocupamos sobre que influências é que estão a chegar e sim nos importamos com o som verdadeiro que está a chegar, a inspiração que chega… Identificar, se calhar só o fazemos quando o disco já está feito e temos mais tempo para o ouvir como um todo”.
Nos sons de “Epístola” – que traz temas em crioulo mas também em inglês, em francês e português - terão identificado as influências de John Coltrane e Ornette Coleman. Pelo menos no que se lê sobre o disco, na sua fase de promoção, refere-se a música das duas lendas do jazz.
Creology.
Lançado em Maio deste ano, sobre este novo trabalho criativo da dupla Souza & Pascal (Carmen e Theo compõem juntos desde que o baixista a foi buscar para a carreira musical, tinha ela 22 anos) escreve o online World Music Report: “As performances de Carmen Souza, Theo Pascal, o baterista Elias Kacomanolis e o jovem e talentoso filho de Pascal, Zoe, provam que, mesmo no bem preenchido campo da música contemporânea, há coisas novas a serem ditas”.
Carmen, entretanto, vê estas “coisas novas” que “Creology” terá trazido como a continuação daquilo que conjuntamente com Pascal tem estado a desenvolver “há já 16 anos”. Muito antes de “Ess ê Nha Cabo Verde” (2005), o álbum de estreia, todo ele cantado em crioulo.
“Foi interessante a escolha do nome porque este creologia [n: ou criologia] vem da lógica do criar mas também do crioulo. Estudei um pouco da palavra em si, que vem do grego e que prossupõem a criação de novas raças; é o caso do cabo-verdiano, uma raça nova criada e que tem também a mistura de tradições antigas com modernas. Então, nesse sentido, penso que o nome encaixou muito bem com aquilo que eu e o Theo fazemos”, explica sobre o título do álbum que traz sim ritmos de Cabo Verde, como o funaná, mas que desta vez mergulha a fundo nos sons da lusofonia, trazendo desde a moçambicana marrabenta à bossa nova e outros ritmos do Brasil.
“Falamos a mesma língua e temos ainda o crioulo, que também deriva do Português, e isso nos liga a todos. E foi essa imagem que quisemos criar de “Creology”, criar como algo novo, ligar todos estes sítios pela língua”.
Tecnicamente um disco mais estruturado, onde é possível identificar uma linha melódica, a artista reflecte sobre o seu disco admitindo não ter tanto de improvisação como o anterior, sendo porém possível encontrar nele jazz.
“O jazz está sempre lá; vive das canções, das mensagens...”
Referências vs.Heranças.
Em “Creology” não poderia faltar Horace Silver (1928-2014). Como no anterior “Epístola” (Cape Verdean Blues). Como bem antes (2010) em “Protegid” (Song for My Father), CD que lhe rendeu pré-nomeação aos Grammy Awards. Desta vez é Pretty Eyes. Este tema foi gravado por Silver, aliás Horácio Tavares da Silva, em 1965 no seu disco “The Cape Verdean Blues”.
A lady jazz crioula não nega a enorme influência que o músico norte-americano de ascendência cabo-verdiana (mais precisamente da ilha do Maio) tem na sua carreira.
“Horace Silver é, sem dúvida, uma referência e uma influência na minha música. Quando comecei a fazer música não conhecia o trabalho dele. Vim a conhecer depois e espantou-me o facto dele, já há tanto tempo, misturar Cabo Verde e jazz”. Souza refere-se á coincidência de ambos serem descendentes de Cabo-verdianos e pioneiros (cada um no seu tempo) na fusão da crioulidade cabo-verdiana com o jazz puro e duro.
“Nunca jazz e Cabo Verde estiveram tão juntos como aqui, desde que Silver lembrou as suas origens”, escreveu uma publicação numa crítica ao disco “Epistola”, o mesmo que Souza traz ao Mindel Summer Jazz.
No leque de referências - mas não de influências directas - que a autora de Afri Ka elenca está, inevitavelmente, Cesária Évora.
“Felizmente que nunca me rotularam de “herdeira da Cesária””, responde-nos a rir a cantora, quando lhe damos conta do cliché que persegue quase todas as cantoras cabo-verdianas que, depois de Cise, ganharam alguma notoriedade internacional. “Nunca quis isso; Cesária foi a Cesária, e cada um tem que ser o que é. E isso é que faz a música interessante, isso é que torna a música com identidade, expressão e voz própria. Claro que sempre ouvi a Cesária e ela foi uma grande referência para mim, mas ela foi única. Não faz sentido falar em nova ou novas “Cesárias””, reforça.
Carmen Souza tem razão. Por a sua música ter muito cedo se distanciado da matriz “tradicional” da música cabo-verdiana e assumido um registo muito próprio ninguém se lembrou de juntar o seu nome ao de Cesária Évora a não ser para apontar as raízes cabo-verdianas.
“É tentador comparar qualquer cantora cabo-verdiana feminina com a madrinha da morna, Cesária Évora, mas isso seria injusto para uma vocalista tão talentosa e tão singular como Carmen Souza”, escreve o site All Music na review ao CD “Protegid” que reconhece elementos tradicionais cabo-verdianos na música de Souza vendo-a no entanto como mais próxima ao jazz americano e a ritmos afro-latinos, com influências melódicas europeias e árabes, “e muito mais”.
Não lhe encontrando semelhanças com a Diva dos Pés Descalços, é justamente ao jazz americano que vão buscar com quem compará-la. Pela sua voz crioula, pelo seu timbre incomum e pelo jazz que se casa tão naturalmente com a sua voz e o seu timbre, referem o trio de ouro: Billie Holyday, Ella Fiztgerald e Nina Simone.
“É sempre bom [quando fazem essa aproximação], porque foram grandes cantoras. Mas digo o mesmo que quando referiu a Cesária: cada um tem o seu lugar, cada um tem a sua voz. Adoro a música que elas fizeram, mas quero seguir o meu caminho”. E este caminho que a cantora e compositora segue fá-lo sempre ao lado do companheiro Theo Pascal, de quem diz que se não a tivesse encontrado [n:num casting para uma banda gospel] não teria seguido carreira na música.
“Provavelmente teria feito outra carreira. Na altura estava a cursar Tradução Inglês/Alemão por isso, muito provavelmente, seria tradutora”.
Caso para se dizer: Fortunately! Ou então: zum Glück!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 818 de 2 de Agosto de 2017