“A Matriarca” Um romance a pensar nas novas gerações

PorChissana Magalhaes,24 nov 2017 12:57

Quase quinze anos depois de “ A Candidata” (2003) Vera Duarte regressa ao romance com uma história sobre as origens do povo cabo-verdiano. A partir da história da jovem Ester, a autora faz o encontro entre o passado e o contemporâneo, com a mestiçagem como elo comum. “A Matriarca – Uma estória de mestiçagens” chegou às livrarias em Outubro e em conversa com o Expresso das Ilhas a escritora apresenta o livro e o seu lugar actual na escrita.

“No romance “A Candidata” era a emancipação das mulheres que estava na base da escrita, mas desta vez não. Não quero rótulos. Quero escrever romances que contem estórias que se passem nestas ilhas e em outras partes do mundo, nas diásporas cabo-verdianas, mas que tragam também as vivências dos nossos dias”.

É assim que Vera Duarte explica uma diferença essencial entre os dois livros que a tornam uma das ainda poucas romancistas que a cena literária cabo-verdiana regista. Se “ A Candidata” nasceu para dar voz às mulheres da sua geração no que se refere à luta pela emancipação, este “ A Matriarca” dá voz sobretudo à geração seguinte, a dos filhos da autora.

Contudo admite que, de alguma forma, estão presentes algumas causas e valores em que acredita. “Se acho que devemos lutar contra o uso das drogas esta mensagem tem que estar nos meus textos. Se acho que se deve combater o abuso de álcool este tema tem que aparecer no meu romance. Racismo, sexismo, direitos das minorias… Mas sem essa centralidade, como fiz com a emancipação no “A Candidata””.

“A matriarca tem uma história mais complexa que parte muito mais da realidade cabo-verdiana contemporânea e que quero que chegue á juventude”, diz a autora que assume que quer agora enveredar por temas que a aproximem mais da geração dos seus filhos.

Da leitura do romance sobressaem como temas principais a mestiçagem e a origem do povo cabo-verdiano, como já dito, focando particularmente os judeus que nos finais do século XV e inícios do séc. XVI foram enviados de Portugal para o arquipélago. Mas Vera Duarte também aborda crenças religiosas como o espiritismo, a sexualidade nos seus múltiplos aspectos, o amor romântico e vários outros temas.

 

Mestiçagem

Sobre as origens do povo crioulo a autora defende uma aceitação e reconhecimento das múltiplas contribuições e, sobretudo, o “apaziguamento” em relação aos aspectos negativos dessas contribuições.

“Pego na morna do Manuel d’Novas para abrir o livro, para dizer que o romance vai nessa linha. Fala sim das situações más - escravidão, etc. -  mas também diz, como na música, “ no tra vingança e ódio de nos corason”. Temos que chegar a um momento em que estamos apaziguados com nós mesmos, em que estamos apaziguados com a nossa origem africana, europeia e judaica e podemos, efectivamente, tirar proveito desse enriquecimento da nossa personalidade”.

Neste romance em que homenageia os pais - “começaram a sua vida juntos justamente em Santa Maria, uma das memórias mais fortes da minha infância, apesar de ter nascido em São Vicente – diz reconhecer um amadurecimento na sua escrita.

“A poesia sempre foi o meu campo de escrita mas, pouco a pouco, sinto que estou a virar para a prosa. Há uns anos comecei com as crónicas. A prosa, e particularmente o romance, cada vez me atrai mais”, revela. E esclarece que não é algo programado, que tenha decidido, sendo sim um género que se lhe “impôs” por si mesmo.

Poetisa consagrada e de mérito reconhecido (são várias as músicas que têm poemas seus como letra), é categórica em afirmar: “Não acredito que é preciso o romance para o escritor ser respeitado. Nós temos vários poetas relevantes e que continuam até hoje na poesia. Para mim não tem essa de que o romance está num patamar superior. A qualidade intrínseca da obra é que conta”.

Discorrendo sobre a sua escrita e a forma como escreve, conta que nunca conseguiu se impor uma disciplina, preferindo deixar a escrita decorrer “ao sabor da imaginação” ao invés de marcar religiosamente dias e horas fixos para esse exercício.

“Nunca consegui escrever todos os dias, a “x” horas. Eu escrevo quando me vem, quando a estória assoma-me ao espirito e fica a inquietar-me”.

E nesse registo levou vários anos a escrever o primeiro romance, enquanto o actual já só lhe tomou dois anos em que foi-se dedicando a outras escritas. Aliás, nesse tempo escreveu mais um livro, esse de poesia e cuja edição está também entregue à Pedro Cardoso Livraria e que deverá ser lançado no primeiro semestre do próximo ano.  

 

 

O lugar das escritoras

Assumindo-se defensora da igualdade de direitos entre os géneros, Vera Duarte não esconde alguma insatisfação quanto ao lugar ainda secundário que se reserva às escritoras cabo-verdianas.

“O meu olhar [quanto a isto] é muito crítico. Numa conferência recente referi que as mulheres estão excluídas dos cânones literários. Alguém tentou refutar mas o facto é que em Cabo Verde, apesar de estarmos neste tipo de sociedade patriarcal e machista, estamos a combater. Já combatemos, contudo ainda fruto deste passado há também este presente que nega muita visibilidade às mulheres, mesmo às mulheres escritoras. Enfim, já percorremos um caminho, já temos outra visibilidade, mas é verdade que qualquer homem (e se calhar até algumas mulheres) quando fala de literatura cabo-verdiana é capaz de citar 100 homens e só no centésimo primeiro nome se lembra de referir uma mulher. E isto não reflecte a dinâmica e a realidade da escrita em Cabo Verde. As mulheres estão ainda em número inferior sim, mas estão a aumentar a sua presença quer na poesia, quer na prosa. Como já disse antes, esta é uma “doce guerra” que as mulheres escritoras estão dispostas a fazer”.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 834 de 22 de Novembro de 2017. 

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Autoria:Chissana Magalhaes,24 nov 2017 12:57

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  24 nov 2017 10:01

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