Cabo Verde nasceu sob o signo do mar. Situado na encruzilhada do Atlântico, o universo insular que compõe o arquipélago de Cabo Verde desde sempre viu no mar o único recurso graças ao qual conseguiu sobreviver e comunicar-se com o resto do mundo. Aliás, a sua ocupação efectiva e consequente exploração nunca seriam possíveis não fossem os seus portos, particularmente o da Ribeira Grande na ilha de Santiago, que serviu de entreposto de escravos, numa altura em que o tráfico constituiu a alavanca do empreendimento expansionista português e outras nações europeias nele envolvidas. Foi à volta deste ancoradouro que viria nascer o primeiro aglomerado populacional cabo-verdiano, a partir de onde se lançaram as bases para o povoamento da grande ilha de Santiago e, pouco depois, das demais que formam o arquipélago. A história deste País confunde-se, portanto, com a epopeia do mar que, em diferentes conjunturas desempenhou papel de relevo para a afirmação das ilhas no Atlântico e no Mundo. Em cada uma delas, o mar assume papel particular, quer como porta de entrada dos forasteiros de diferentes paragens, como terá acontecido com os portos da Ribeira Grande e da Praia, ainda nos primeiros séculos de povoamento, quer, como poiso de abastecimento de carvão, como foi o caso do Porto Grande de São Vicente, cuja importância ao tempo da navegação a vapor é de todos reconhecida, quer ainda como via de ligação dos ilhéus, sem esquecer, obviamente, a sua importância económica num espaço, como a ilha do Maio, onde a condição insular e a inaptidão das terras para a exploração agrícola sempre favoreceram as atividades marítimas, estimulando a pesca, a navegação de cabotagem e, no século XIX, a indústria baleeira.
O mar está tão vincado na história das ilhas que parece fazer parte da mundividência das suas gentes. Não é por acaso que está sempre presente na música, no teatro, na literatura e, naturalmente, na produção historiográfica cabo-verdiana. Porém, grande parte dos historiadores que se dedicam a Cabo Verde têm privilegiado a navegação de longo curso nos seus mares, relegando para o segundo plano os navios de cabotagem, pese embora a importância que tiveram e continuam a ter na ligação entre as ilhas e consequente contactos entre os ilhéus.
Este texto procura levantar a ponta do véu sobre este assunto, incidindo particularmente sobre a rota Maio-Praia-Maio, a dimensão económica daí adveniente, os impactos que terá exercido sobre a dinâmica urbana, numa ilha estruturada sobre uma economia de subsistência, onde viver exclusivamente da pesca nem sempre era viável.
Ao que tudo indica, no fim do século XVI começou a exploração do sal natural nas ilhas orientais de Cabo Verde, entre as quais a do Maio, onde existiu uma das maiores salinas do arquipélago, que alimentou uma intensa comercialização do sal. No início do século XIX, os ingleses tomaram de arrendamento as salinas do Maio, através de uma Companhia, tornando-se a partir daí, os grandes exportadores do sal para as suas possessões norte-americanas. Por essa altura, foi fundada uma nova povoação junto à salina, que se chamou de Porto Inglês, espaço de desenho ambicioso que viveu sempre em intimidade com o mar, cuja história multisecular merece o seu lugar nas páginas da historiografia nacional.
Estas notas, incidem sobre um campo ainda pouco trabalhado, não obstante a grande importância de que o seu conhecimento se reveste para a compreensão da história económica das ilhas: os navios de cabotagem nos mares de Cabo Verde. Farei esta reflexão a partir da ilha do Maio durante a 2.ª metade do século XIX, período em que o tráfico foi particularmente intenso, por razões que explicarei mais à frente. Para o efeito, mobilizo um conjunto de fontes primárias, emanadas pela Repartição Provincial dos Serviços Aduaneiros a partir de 1831, e disponíveis no acervo do Aquivo Nacional de Cabo Verde.
Se tomarmos como ponto de referência os dados sistematizados no livro de registo de entrada e saída de navios no porto da Praia, que data de 1831, poderemos apurar um movimento relativamente intenso de aportações. A análise desses livros permite-nos constatar que o suporte da economia da época é o sal. A Praia funcionava, em boa medida, como porto de escala da grande navegação entre a Europa e as Américas, embora os navios comerciais não deixassem de aí descarregar mercadorias e carregar produtos nacionais, particularmente o sal.
Se é verdade que, nessa altura, as ilhas de Cabo Verde não lucravam com a venda directa deste produto, devido aos preços extremamente baixos, também é verdade que obtinham um lucro indirecto com a venda de víveres aos navios estrangeiros que ali aportavam para se abastecerem do sal. Sendo que este produto provinha das ilhas orientais, particularmente da do Maio, o tráfico da rota inter-ilhas, Praia-Maio, foi particularmente intenso, já que a dicotomia área de apanha/área de concentração-reexportação exigia tal funcionamento. Assim, o sal exportado do Maio era vendido na Praia aos navios provenientes das mais diversas paragens. A rota Praia-Maio-Praia existia, portanto, como parte integrante de um outro movimento comercial mais lato, Praia-resto do mundo. Aparentemente, poder-se-á pensar ser mais lógico que os navios que vinham abastecer-se de sal se dirigissem directamente aos portos das ilhas onde este era produzido. Mas tal não se verificava, pelo facto de ser um procedimento que interferia com a estrutura organizativa de Cabo Verde de que Praia, enquanto capital, era o núcleo central. Consequentemente, esta era a vila onde funcionava o centro de concentração/distribuição de mercadorias de e para as outras ilhas do arquipélago, assim como para o resto do mundo.
A tabela I expõe os principais tipos de embarcações de cabotagem usados nessa rota. Entre 1862 e 1901, aportaram na Praia um total de 691 embarcações vindas do Maio, sendo 225 Chalupas, 206 Lambotes, 153 Palhabotes,67 Faluchos, 27 Escunas e 13 Cahiques.
Com os dados expostos na tabela II, que nos mostram a origem dos navios de cabotagem entrados no porto da Praia, verificamos um fluxo relativamente grande do tráfego nacional, tendo em conta as particularidades da época. Temos um fluxo de 337 navios, sendo 287 provenientes da ilha do Maio.
Na primeira década, de 1850 a 1860, temos uma entrada de 1299 embarcações da cabotagem no porto da Praia, sendo que a maior parte vinda das ilhas Brava (337), do Maio, (287) e do Fogo (264). A partir de 1880, começamos a encontrar, de novo, registo de navios entrados no porto da Praia. Até 1890, continuamos a verificar um forte acréscimo do movimento portuário na Praia, e de novo são as ilhas do Sul que continuam a liderar as entradas. Um total de 1473 embarcações que atracaram na Praia são provenientes dos portos da Brava, Fogo, Maio, Tarrafal, Ribeira da Barca e S. Miguel, constituindo 81% do total das embarcações. Chegando à última década do século XIX, continuamos a verificar um forte aumento do fluxo de navios ao porto da Praia.
Os dados aqui apresentados correspondem ao período que vai de 1890 a março de 1898, data a partir da qual, de novo, deixamos de encontrar registos de navios. Neste período, as ilhas do Sotavento continuam a liderar o ranking do número das embarcações fundeadas no porto da Praia (2114), num total de 2439 navios afluídos ao porto da capital. Dentro desse grupo, destacam-se as embarcações provenientes dos portos do Maio (587), do Fogo (551) e do Tarrafal de Santiago (509), somando um total de 1647 navios, correspondendo a 68%.
Em jeito de conclusão, resta dizer que, à semelhança de muitas outras ilhas do arquipélago de Cabo Verde, na do Maio, o porto constituiu um dos fatores de grande relevância na atracção e na fixação da população. Foi sempre para junto do mar que a população se sentiu atraída. Aí se fazia a ligação com o mundo, aí acostavam os navios e se permutavam as mercadorias, aí se instalaram, enfim, os homens de negócio, que deslocaram para esse burgo toda a animação da vida municipal.
O texto procura lançar pistas para futuros estudos sobre as ligações marítimas entre as duas ilhas, destacando os tipos de navios usados e as mercadorias transacionadas. Desta forma mostrar a implicação das receitas geradas pelos portos, aplicadas directamente na construção de obras públicas, mas sobretudo as suas repercussões na melhoria da mobilidade interna, ainda hoje tão actual particularmente em algumas ilhas, das quais a do Maio. Outrossim, a dimensão histórica deste fenómeno na perspectiva do turismo cultural. Em relação à ilha do Maio, se as instituições competentes, locais e nacionais, conseguirem criar as condições necessárias para, por exemplo: (i) reabilitar e promover os antigos faluchos acima referidos enquanto parte integrante do património construido desta ilha; (ii) reabilitar e promover o antigo desembarcadouro enquanto porta de entrada desta ilha; (iii) reavivar a antiga tradição de “Roda do Ano,”realizada em tempos, no dia da abertura da salina;(iv) identificar e musealizar os locais onde outrora os habitantes do Porto Inglês costumavam abrir covas na areia, a alguma distância do mar e a pouca profundidade, para tirar água potável, entre outras tradições ligadas ao mar e aos Homens do mar desta ilha, a História estará a dar a sua humilde contribuição para a promoção do turismo cultural do Maio e a sua inserção na tão almejada economia azul que se quer para Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 847 de 21 de Fevereiro de 2018.