Ensinou-me um dia, um velho amigo, com quem muito aprendi a “ouvir” música, que muitas vezes é preciso não só ouvir a execução técnica do músico, ou seja, o que ele nos transmite e que vem das escalas e das escolas, das pautas etc., mas também partir para outros níveis. Falava-me da capacidade de o músico conseguir extrair a alma do instrumento e com ela se fundir, tornando-se num só (precioso) ser musical. Confesso que a princípio não percebi bem o conceito, mas com o passar dos tempos, conforme fui conseguindo entender e apreciar o que o meu amigo me tinha explicado, cheguei à conclusão indubitável de que – não há música sem essa tal fusão de almas. Mais, só conseguem atingir tal nível os músicos que realmente se apaixonam por esta forma de arte – é necessário paixão para se estar então preparado para conseguir o referido estado.
Quando cheguei de Portugal onde vivia, um dos primeiros espectáculos que vi foi um trio de piano, baixo e bateria. Por coincidência (ou não), nesse espectáculo também vi um dos primeiros músicos que viria a admirar fortemente aqui em Cabo Verde. Tocava e vivia o baixo – lá está – talvez pertencesse (pensei logo) ao tal grupo de músicos que conseguem atingir o tal estado que o meu amigo tanto apregoava.
Conheci-o logo, fizemos algumas brincadeiras com a música juntos, mas depois de estar à frente da editora que criei, e de termos realmente feito vários projectos juntos, tive a certeza de que era um “dos meus músicos de admiração”.
Reunia tudo: capacidade de técnica musical evoluída, vinda de persistente “trabalho-de –casa”, domínio da pauta e das suas leituras, capacidade enorme de trabalho de grupo – sem liderar, liderava, profissionalismo e rectidão ética…e…obviamente: um profundo amor pela música, espelhado pela sua guitarra-baixo e sobretudo pelo seu inseparável contra-baixo – seu companheiro dos últimos tempos. É melódico quando tem de ser, e arrepiantemente percussivo quando necessário. Do contrabaixo extrai sonoridades (vindas certamente da tal cumplicidade com o instrumento e que se reflecte inevitavelmente em palco) que iam dos mais doces ambientes até a marcação percussiva, vinda de certeiros e precisos toques percussivos na caixa do instrumento. A cultura musical (tanto aprendi nas nossas conversas) que o acompanha permite-lhe todas essas explorações, que ainda partilhava com os colegas do grupo.
Binga de Castro, esta sempre feliz em palco.
Apesar de tudo o que disse, nada traduz melhor a paixão que Binga tem pela música, do que a relação que tem com as crianças, onde já não usa qualquer instrumento nem palco, mas sim o seu próprio corpo que transforma em percussão e os jardins e ruas onde se cruzava com os mais pequenos. Tinha sempre uma “nota” ou “som” para oferecer a cada um que mostrasse entusiasmo, principalmente nos que adivinhava que pudessem vir a sentir o que ele sente – um profundo amor por cada nota musical…pela música.
Agora noutros palcos, terás sempre os nossos à tua espera. Os meus serão sempre teus.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 881 de 17 de Outubro de 2018.