Fonseca Soares: “O que eu adoro sobretudo é fazer e ajudar com que o teatro aconteça”

PorChissana Magalhães,28 out 2018 8:42

​Costuma ser quem faz as perguntas. Mas por ter abraçado a par da carreira jornalística o fazer criativo, José Eduardo Fonseca Soares está também habituado a responde-las. Atento ao panorama cultural, comenta aqui o momento actual de algumas das vertentes da cultura nacional.

O teatro faz parte da sua vida há mais de 40 anos. Que memórias tem desse percurso?

O teatro aparece na minha vida nem sei bem como. Talvez através do rádio-teatro, a ouvir as peças de teatro pela rádio. Em casa, junto dos primos, fazia pequenas peças e fazia a família rir. O cabo-verdiano, no geral, no teatro adora a comédia. Entrei para a rádio ainda estudante e comecei a ter contacto com outras pessoas do meio. Estava ainda no liceu quando começaram a chamar-me para algumas experimentações, pequenas peças, e houve uma em especial que acabou por percorrer todas as ilhas. Foi depois do 25 de Abril e antes da independência. Havia essa necessidade de com o teatro ajudar na conscientização das pessoas, do povo de Cabo Verde. Em certa medida, era uma arma a ser utilizada. Éramos jovens que também queriam fazer alguma coisa. Coincidiu com um período em que fiz parte de um grupo musical que também percorreu as ilhas. E foram estas experiências. Havia também poesia, um outro lado que sempre gostei. Também fiz parte desse grupo de intervenção teatral com um grupo de jograis e na música com o grupo Colá. Estávamos em tempo de experiências. Isto tudo para falar na pluralidade de géneros e meios de intervenção. Depois houve uma pausa, saí para estudar. Mas também coincidiu com um período cinzento em São Vicente, em que pouco acontecia. Deixou de haver teatro em São Vicente. Nem os grupos que existiam à volta dos clubes de futebol nem as associações culturais, que estiveram activos nos anos apôs a independência funcionavam. Nessa altura não havia escola, surgiam peças de qualidade duvidosa. Depois, a pouco e pouco começaram a ressurgir e aqui é de destacar o trabalho da Escola Selesiana que era das poucas que ia aguentando e resistindo, e que ia fazendo de longe a longe algumas peças. Entretanto, estive algum tempo a viver na Praia e quando regresso a São Vicente coincide com aquele período que eu chamo de “nova largada” do teatro em São Vicente. O nascimento do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo (GTCCPM) e a ideia-base dessa iniciativa louvável de criar uma formação em teatro, que foi acontecendo e que tem sido o oxigénio para novos grupos. Bem, continuamos a ter esse problema de as pessoas que se dedicam ao teatro terem depois a sua vida real. Uns têm que sair para ir estudar, outros trabalham porque teatro não é trabalho. Houve gente e grupos que, pela sua resistência e pelo seu trabalho ao longo dos anos, trabalharam e fizeram com que a qualidade fosse aumentando.

Vestiu a pele de alguns personagens marcantes.

Quando regresso a São Vicente o bichinho do teatro que estava adormecido ressuscitou, digamos assim. Fiz então o curso de iniciação teatral no CCP e fui entrando, como convidado, em peças do GTCCPM. Porque, entretanto, da “fornada” que saiu do curso de que fiz parte criamos o Atelier Teatro Acácia. Durou pouco tempo porque teve esse problema que eu já referi, de as pessoas saírem para trabalhar e estudar, o que fez com que o grupo parasse. Então passei a trabalhar sobretudo com o GTCCPM mas também com outros grupos, como o Sarron.com, e fundei com alguns colegas e amigos o Teatro Infantil do Mindelo (TIM) que teve um papel interessante durante alguns anos, mas que também acabou por parar. Uma personagem que me marcou, por ser um clássico, por ser uma das peças mais repostas em todo o mundo e de um dramaturgo maior como Shakespeare, foi o Rei Lear. De facto custou e foi uma experiência bem especial: pelo papel e pela carga emocional, pelo facto de que era um Rei Lear não de Londres mas de Cabo Verde; uma adaptação e crioulização conjunta, minha e de João Branco. Mas também houve outros personagens, porque o que eu adoro sobretudo é estar no teatro, fazer e ajudar com que o teatro aconteça, fazer a minha parte para que o edifício do teatro em Cabo Verde mantenha-se de pé e tenha sempre mais qualidade. O simples facto de participar, por exemplo, de cuidar do som e da luz d em algumas peças, uma e outra encenação (no TIM), a escrita também… Enfim, a felicidade de fazer parte, de ser um dos elementos a contribuir para o teatro em Cabo Verde.

O teatro que se faz em Mindelo foi evoluindo, nas várias áreas que o compõem. Neste ponto, o que faltará? Serão melhores salas de espectáculo? Ultrapassar os desafios resultantes do parco e incerto financiamento?

Não sei… O teatro tem evoluído em Cabo Verde nos últimos anos, com altos e baixos que têm a ver sobretudo com o facto de ser teatro amador. Feito com muito amor, com muito profissionalismo mas não passa de teatro amador. De gente que nas horas vagas, depois do trabalho e da escola, se junta para fazer com que haja teatro. Como um pouco por toda a cultura cabo-verdiana - não obstante os momentos em que há força, há frenesim e entusiasmo, novidades, inovações e produção - a nível de políticas incentivadoras poderíamos estar muito melhor. É o caso do teatro onde já se tem discutido e reflectido sobre estes temas mas, os principais problemas persistem. Por exemplo, no caso do GTCCPM, o simples facto de terem uma sala para ensaiar já é um grande trunfo em relação a outros grupos que para ensaiarem é sempre um problema. Isso dá uma ideia do amadorismo e da falta de estruturas para que tenhamos um teatro cada vez melhor. Já temos gente com formação superior nas Artes Cénicas. De modo que acredito que, mais tarde ou mais cedo, teremos gente a viver do trabalho no teatro. Mas por agora está sempre a espada de Dao sobre a cabeça; a qualquer momento pode cair porque não há estruturas que aguentem um edifício-teatro nacional. Tem-se falado sobre isso. Há que ter, com o tempo, um Teatro Nacional. Com estruturas, com Estatuto do Artista, com “N” coisas que irão servir de esqueleto para que daqui a uns anos em Cabo Verde o teatro não seja amador e sim profissional.

O Cinema também ocupa um lugar especial na sua vida. Como vê o cinema em Cavo Verde?

Quanto ao cinema, em relação ao Teatro, acaba por ser pior. Embora nos últimos anos, graças ao facto de já termos algumas pessoas formadas na área, começa-se a sentir que mesmo não havendo políticas incentivadoras (ou ainda apenas esboçando estas políticas) já existe a Associação do Cinema e do Audiovisual, que fazem acreditar num cinema cada vez melhor, porque até agora temos tido um filme ou outro, desde o inicio do seculo XX foi se fazendo, mas coisas muitas pontuais. Já nos últimos anos podemos ver que há gente que, não diria que são profissionais, mas que já têm um esqueleto de uma vida profissional. Vão fazendo outras coisas mas, havendo condições e havendo produção, é gente que já é desse mundo do cinema. Temos exemplo de jovens que estão a tentar, estão a fazer, e na minha opinião é algo que deve ser um princípio, essa necessidade de ir fazendo para que a qualidade venha na sequência desse fazer. É reconhecer estes jovens que estão a fazer, que começam a levar filmes nossos a festivais internacionais, sobretudo documentários. Estou crente que estamos numa fase em que não pode haver paragens. Pode haver mais ou menos dificuldades mas, está-se já num caminho de ter um cinema cabo-verdiano, a tentar conseguir o seu espaço e ter a sua forma de fazer cinema crioulo.

É também conhecido como melómano, com particular e natural apreço pela música cabo-verdiana. Acredita na candidatura da morna a Património Imaterial da Humanidade?

Sim. Com certeza. Acho que não há motivos para preocupações em relação à morna, em si, como património imaterial mundial. Tem todas as condições para isso. As provas disso temo-las desde que os outros tiveram algum contacto com a nossa música. Todos os que ouvem a morna e outras expressões da nossa música foram conquistados. A morna tem algo de especial. Tem alma e nessa alma tem Cabo Verde. Tem essa forma bem peculiar e única de ver, de ser e estar cabo-verdiano. Tecnicamente falando, em termos de som é um som agradável que entra através dos ouvidos mas passa logo para o coração. Claro que sou suspeito para dizer isso; sou mais um cabo-verdiano. Mas a prova disso é a leitura de críticas de jornalistas, especialistas e críticos de música do mundo inteiro em diversas línguas, gente que reconhece e, sem entender as letras das músicas entendem a música nossa, entendem a morna. De modo que existem todas as condições para que a morna seja de facto património imaterial universal. A música entra na minha vida desde pequenino. Lá em casa, muito criança, comecei a fixar os nomes das gentes que gostava na música. E alguns dos nomes que citava era os de Luís Morais, Bana e Cesária. Depois, há o facto de ir trabalhar para a rádio e de ter ido estudar para a França, onde fui a muitos e muitos espectáculos e ouvi muita gente do mundo da música. Já em Cabo Verde, gostei de criar ao longo dos anos vários programas de música e à volta dos nossos músicos… O facto de estar nesse mundo e gostar, fez com que cada vez mais o ouvido se adaptasse… Embora eu não seja músico e não entenda de música do ponto de vista técnico e do fazer. Mas, através dos ouvidos, tenho tido uma vida bem colada á musica. Na rádio, há o facto de entrevistar monstros sagrados da nossa música. Tive esse privilégio de ir conhecendo cada vez mais a nossa música e ser um apaixonado por ela.

É daqueles que se preocupa com o futuro da música tradicional?

Essa é uma preocupação de muita gente ao longo dos anos e, trabalhando na rádio, fui ouvindo estas reclamações, de gente da música e de gente de fora da música a dizer com preocupação que “os jovens não querem saber da nossa música” e que trazem o rap, o r&b, quizombas, zouks, etc. E eu, enfim, fui ouvindo mas fui observando, e fui acompanhando, e fui sentindo que não deve ser uma preocupação. A mistura faz parte do nosso DNA, da nossa essência. Em todas as gerações os jovens sempre ouviram aquilo que está na moda. Agora está na moda o rap mas a verdade é que acabam, mais tarde ou mais cedo, a ouvir com ouvidos de ouvir aquilo que ouviram desde pequeninos, que é a nossa música. E naturalmente assim são “apanhados” pela qualidade, pela riqueza da nossa música e grande parte com o tempo torna-se mais um cabo-verdiano que gosta da música do seu país. Portanto, não é uma preocupação, é uma riqueza. Porque deste contacto com outras culturas, outros sons, outros movimentos, acaba por vir coisas para enriquecer a nossa própria música.

Da música para os livros. Diria que falta ainda a Cabo Verde uma literatura que consiga ser universal e traga novos paradigmas?

Neste aspecto tenho que dizer que a percepção dos últimos anos é boa. A percepção é que existe a nível estatal, e também privado, gente, actividades, produção, alguma facilidade para a edição. O que faz com que tenhamos algumas condições que não tínhamos nos anos noventa e antes disso. Salvaguardando, naturalmente, alguns momentos bons em que alguns privados se juntaram para tentar dar o seu quinhão e editaram livros que fazem hoje parte da literatura cabo-verdiana. Hoje estamos com algumas editoras bem activas, o que nos faz ter esperança de que tenhamos nos próximos tempos e neste presente mais edição, mais livros e o enriquecer da nossa literatura. Quando vejo que uma editora como a Rosa de Porcelana, como a Pedro Cardoso ou a Ilhéu Editora… E a nível do Estado há incentivos, feiras e festas. Enfim, nos últimos anos nota-se que há um aumento na produção. Agora, sente-se a necessidade de uma internacionalização da nossa literatura. Para isso, naturalmente, o Estado tem que por mão na massa e há indícios e conversa á volta disso. Tem havido discussões mas tem que haver mais em termos de políticas para tornar isso possível. Não podemos ter uma literatura conhecida e reconhecida no mundo com iniciativas pontuais, há que construir todo um edifício que sirva de base para essa internacionalização. Isso passa também por termos uma literatura que sirva não apenas para abordar temas cabo-verdianos mas que seja uma literatura nova e do mundo. E isso tem que ser a partir de um trabalho de base e de conexão com o resto do mundo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 882 de 24 de Outubro de 2018.

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Autoria:Chissana Magalhães,28 out 2018 8:42

Editado porDulcina Mendes  em  29 out 2018 7:09

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