A Rússia no destino de Cabo Verde

PorSarkiz Mirzachanian*,11 nov 2018 8:17

Sarkiz Mirzachanian  Membro do concelho de peritos do Comité de assuntos internacionais da Duma Estatal da Assembleia Federal da Federação da Rússia, aspirante de ciência politica.
Sarkiz Mirzachanian Membro do concelho de peritos do Comité de assuntos internacionais da Duma Estatal da Assembleia Federal da Federação da Rússia, aspirante de ciência politica.

​A história do Estado de Cabo Verde é única. É composta por inevitáveis processos ideológicos e políticos objectivamente condicionados, bem como por confluência acidental de circunstâncias técnicas que, entretanto, tiveram um papel decisivo.

 Nessa totalidade de factos históricos uma das posições importantes ocupa a amizade com Moscovo, tanto na altura de URSS, como depois – no período da Rússia democrática. Sim, o facto de que as ilhas de Cabo Verde se tornaram no país independente (que desde 1975 começou a ser conhecida como República de Cabo Verde) – é um facto objetivamente inevitável. Mas aos acontecimentos daquele tempo e daquela forma histórica, e ao facto de como tudo aconteceu, a influência considerável e possivelmente decisiva foi dada pela ajuda de Moscovo.

Em meados do século XX a África está no centro da oposição do sistema bipolar global do capitalismo e do socialismo. O seu apogeu dá-se nos anos 70. É nesse período que observamos o cume da popularidade em África das ideias do socialismo científico, que os lideres do movimento de libertação nacional adoptaram em muitas países do continente. Isso resultou da queda do Império colonial português em África, que foi registada pelos historiadores como a grande etapa progressiva da história mundial. Nas antigas colónias portuguesas de Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe chegaram ao poder forças progressivas, que encetaram a luta pela independência durante muitos anos.

Amilcar Cabral – fundador e líder do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), talvez como nenhum outro em África chegou a encontrar o significado abissal de parecida naquele tempo da ideia romântica do socialismo – como a ordem social com o homem no centro e não o dinheiro, relações entre pessoas e não riqueza material. Ele estava seguro da capacidade de unir esta ideia à cultura altamente espiritual dos cabo-verdianos.

Em Novembro de 1972 os guerrilheiros de Amílcar Cabral controlavam dois terços do território da Guiné (Bissau), onde se travava a luta de libertação armada. O papel decisivo nesses êxitos militares foi o fornecimento de armamento por Moscovo – armas ligeiras, lançador de granadas de mão, artilharia antiaérea, morteiros, inclusive lançadores de foguetes “Grad-P”. O treinamento de especialistas militares foi realizado nos centros de treinamento “Perevalnoe” na Crimeia. Para o controlo da costa marítima a pedido de Amílcar Cabral forneceram três torpedeiros de patrulha de alta velocidade.

No quartel general do PAIGC, situado em Conacri, preparava-se para declarar soberanos os territórios libertados da Guiné-Bissau e criar ali os órgãos do poder executivo.

No dia 10 de Novembro de 1972 o destruídor do esquadrão soviético da Frota do Norte “Byvaly”, sob o comando do capitão de segunda classe Y.Ilynykh, entrou no Porto de Conacri. “Byvaly” foi um dos primeiros navios soviéticos remontados num navio de luta anti-submarina e foi designado para a patrulha das águas do oceano mundial, para procura e destruição de submarinas de inimigo previsível.

Os êxitos dos guerrilheiros de Amílcar Cabral preocuparam os círculos imperialistas, que tinham planos de mudar o curso dos acontecimentos e colocar os movimentos de libertação na Guiné-Bissau e nas Ilhas de Cabo Verde sob controlo dos seus protegidos. Entre os participantes activos da conspiração foram os formandos aliciados do centro de treinamento de pessoal-dirigente político, que Cabral – o antigo presidente do PAIGC, Rafael Barbosa, Inocêncio Cani e Mane supervisionaram pessoalmente.

No dia 20 de Janeiro de 1973 às 23.00 horas Amílcar Cabral foi traiçoeiramente assassinado em Conacri, na porta da sua casa. Os seus companheiros e funcionários de partido Aristides Pereira, Vasco Cabral e José Araújo foram levados ao porto. Inocêncio Cani ordenou às tripulações dos três torpedeiros militares, mesmo aqueles, fornecidos pelo Moscovo a Cabral, para sair ao mar e içar as velas para Bissau, para entregar os líderes capturados do PAIGC às autoridades portuguesas. Depois do sinal de rádio de Inocêncio Cani 24 navios de guerra da NATO caminharam em direção aos conspiradores.

O comandante do Exército Popular da Guiné-Conacri T.Sangare acompanhado pelo Major-General F. Chicherin em nome do Presidente Sekou Toure e do Embaixador soviético A. Ratanov pediram a Y. Ilynykh para deter os criminosos.

U. A. Ilynykh tomou a decisão de sair para o mar sem a permissão necessária do seu comando, para cuja preparação não teve tempo. Além disso, mostrou coragem e intrepidez pessoal. Às 00 horas e 50 minutos “Byvaly” lançou-se em direção para Guiné-Bissau ao longo de beira-mar. Ao bordo de destruídor estava também um pelotão de soldados armados guineenses com vários oficiais à frente.

Às 3h00 de manhã, dois alvos fixos de pequeno porte foram descobertos. O destruídor aproximou-se rapidamente de um dos torpedeiros a atracou-o ao lado. O segundo torpedeiro se rendeu na mira dos canhões de 130mm. Os soldados guineenses deslocaram-se imediatamente aos torpedeiros, desarmaram as equipas e levaram-nas para o “Byvaly”.

Às 15h00 o “Byvaly” regressou com segurança a Conacri, levando em reboque ambos os torpedeiros. Ao mesmo tempo, marinheiros guineenses descobriram nas matas costeiras e capturaram o terceiro torpedeiro. Todos os prisioneiros que ficaram nele, foram libertados.

Salvo pelos marinheiros soviéticos, Aristides Pereira tornou-se em 1975 presidente da República de Cabo Verde. O irmão do Amílcar Cabral, Luís tornou-se presidente da Guiné-Bissau. Ambos os estados mantiveram boas relações com a Rússia. A história das Ilhas de Cabo Verde foi pelo caminho de triunfo da verdade histórica, caminho, prescrito por Cabral.

A participação no desenvolvimento da história de Cabo Verde independente refletiu-se no destino de U.A.Ilynykh – originariamente ele foi demitido por voluntariedade, mas no dia seguinte, depois do requerimento do Major-General F.Chicherin, U.Ilynykh tornou-se de novo capitão do “Byvaly”. E à noite, o comandante da Frota do Norte expressou um agradecimento a Ilynykh pelas acções corajosas e decisivas.

O destino do destruidor “Byvaly” repetiu o destino de muitos navios militares de vários países. Depois de regresso de África o navio foi vendido a um proprietário e cortado em metal. Em tempos a sua “aparência” ameaçante ficou gravada no famoso filme sobre a guerra de 1941-45 chamado “Capitão do Lúcio Feliz”, na qual o destruídor “Byvaly” “desempenhou” o papel de Navio anti-submarino alemão, em Outubro de 1972 antes da ida para África Ocidental.

Desde então muita coisa mudou, e, provavelmente para melhor. Hoje as relações entre a Rússia e a República de Cabo Verde abrem uma nova página de cooperação com base na parceria igual e respeito mútuo. A Rússia ontem como como hoje está disposta a ajudar o povo de Cabo Verde. Além disso, a Rússia, que sofreu o maior peso da Segunda Guerra Mundial, muito atenta à preservação da memória histórica. Seria justo ereger na Praia uma placa comemorativa para imortalizar a memória das acções corajosas e decisivas do capitão e da tripulação do destruídor “Byvaly” em 1973.

Ano 1972: Amílcar Cabral, Samora Machel e Agostinho Neto no centro de treino Perevalnoe na Crimeia (URSS).
Ano 1972: Amílcar Cabral, Samora Machel e Agostinho Neto no centro de treino Perevalnoe na Crimeia (URSS).


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.

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Autoria:Sarkiz Mirzachanian*,11 nov 2018 8:17

Editado porSara Almeida  em  11 nov 2018 16:55

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