O realizador, escritor, artista plástico e professor lança um olhar demorado sobre o cinema e o audiovisual em Cabo Verde. “Acho que deveríamos estar num outro nível. Estamos assim por via de falhas de visão política”, aponta o realizador.
Assinalou-se na semana passada o Dia Mundial do Cinema. Sentiu-se essa efeméride em Cabo Verde?
Eu não senti e confesso que nem sabia que havia um dia a destacar a sétima arte. Sabendo-o fico muito contente por isso, sobretudo num país como o nosso em que o cinema parece não nos dizer respeito. O cinema fez parte até um determinado momento da nossa construção identitária. O cinema em Cabo Verde tem uma história interessantíssima, porque curiosamente acompanhou a evolução do cinema mundial – não na sua dimensão produtiva ou criativa, mas na sua dimensão cultural e social, de fruição, de tudo o que o cinema trouxe à nossa condição humana, há pouco mais de 100 anos. Cabo Verde não esteve ausente de toda esta história, sobretudo por via da presença dos ingleses em São Vicente que acabou por influenciar de alguma forma o gosto pela cultura do cinema no sentido da sua fruição cultural e social. Tanto é que, nessa dimensão, o Eden Park é uma referência na história do cinema em todo o império português e mesmo depois da independência. Terá sido o último cinema do império português a extinguir-se nesse formato institucional, de promoção cultural do cinema. Como se sabe, até muito recentemente, foi através do cinema que nós víamos o mundo. Foi através da janela do cinema que aprendemos a conhecer o outro e a cultivar determinados aspectos emocionais que só o cinema nessa altura poderia proporcionar, porque o teatro nessa altura não tinha e nunca teve esse impacto em Cabo Verde. Era o cinema que educava emoções e despertava-nos para o mundo. De alguma forma eu sou um privilegiado em termos geracionais, porque eu cresci com o cinema, a minha geração foi educada também com o cinema como essa janela da descoberta do mundo. É curioso a forma como perdemos o fio à meada. Na verdade, durante o processo da libertação nacional que desembocou na independência, houve consciência da importância do cinema na educação popular e na preservação da memória através da imagem. Quem estuda Amílcar Cabral e a geração dele – Samora Machel, por exemplo – pode facilmente descobrir como esses líderes tiveram o cinema no seu programa. Em Cabo Verde, como todos se lembram, uma das primeiras instituições criadas depois da independência foi o Instituto Cabo-verdiano do Cinema. E não foi por acaso – essa geração sabia da importância do cinema como veículo da sedimentação cultural de um povo, transversal a todos os aspectos da nossa vivência nacional. Esse Instituto veio a desaparecer e nunca mais se criou alguma instituição similar. É interessante que, na linha da mesma história comum desse processo da luta de libertação, a Guiné-Bissau acabou, de alguma forma, por dar uma melhor resposta a essa visão da importância do cinema sob o ponto de vista cultural, patrimonial e de registo da história. Mais do que Cabo Verde. A Guiné tem dois realizadores bem conhecidos, um deles afamado internacionalmente que é o Flora Gomes e o outro é o Sana, menos conhecido; foram alunos da Escola Piloto e foi justamente Amílcar Cabral que os mandou para Cuba para frequentarem a famosa escola de cinema desse país. Interessante, isto é um exemplo do que para essa geração significou o cinema. Começamos relativamente bem, mas depois não sei o que aconteceu em Cabo Verde, e sei muito menos o que está a acontecer hoje.
Dessa geração de que você fala faz parte o Arménio Vieira, um dos primeiros a escrever sobre o cinema em Cabo Verde.
O Arménio Vieira faz parte dessa geração que cultivou o cinema, que se fez com o cinema. O Arménio, como poeta, como escritor, como o nosso primeiro Prémio Camões, não me espanta. Ele é o ícone de uma geração universalista que tem o cinema no seu trajecto. O Arménio Vieira teria dado um realizador como qualquer outro realizador e eventualmente um grande guionista, um grande criador de histórias para o cinema e para a televisão se o contexto fosse outro. É um grande conhecedor da dramaturgia cinematográfica. Lendo, por exemplo, O Eleito do Sol mesmo sem conhecer o percurso do Arménio, eu diria, ‘este homem sabe do cinema, conhece a linguagem do cinema’. Ele usou os elementos de construção que nós usamos na escrita da ficção para o cinema. Não sei se ele fez isso conscientemente; eu não tenho ideia que ele tenha tido alguma formação, ou algum treino específico na escrita de ficção para o cinema, mas O Eleito do Sol é uma obra cinematográfica que está lá, é só pegar nela e adaptar. Isso tem a ver com essa geração de cabo-verdianos em que o cinema foi marcante, fundamental. O Arménio estudou no liceu em São Vicente, continuou a cultivar o cinema não só como usufruidor, mas também como poeta e romancista. O Arménio Vieira teria sido um realizador nato, noutro contexto.
Como caracteriza o estado actual do cinema e do audiovisual em Cabo Verde?
Sob o ponto de vista educativo e criativo eu penso que há uma evolução, porque há jovens que começam a ter formação específica na área, por intuição, por vocação…e começa a haver de alguma forma uma presença de gente na publicidade, na televisão… Já se sente a presença de gente nova que está a construir um caminho. Isso é muito importante e tenho-o observado com satisfação. Inclusive, é de sublinhar, também em concursos internacionais, como é o caso dos prémios do Doc TV da CPLP. Agora, o interessante é que me parece que houve um hiato demasiado longo neste país para impulsionar o sector. Houve um vazio imenso entre o momento em que começamos e agora, com essa nova gente. Outro dado interessante é que essa nova gente não compreende, não sabe o que esteve por trás. Acho que é importante que viessem a conhecer essa história para perceberem que o país foi vítima de um hiato de políticas públicas adequadas para essa área. Tivemos uma história interessante não só na área da fruição do cinema, como disse atrás, e do audiovisual em geral, mas também de produção e de criação. Nos anos 40 houve amadores que fizeram médias e longa-metragens em Cabo Verde. Aliás, descobrimos na Argentina um pequeno filme de ficção feito em S. Vicente por jovens de cerca de 16 anos inspirado no cinema mudo americano. É extraordinário, quer dizer que esses jovens estavam a acompanhar a evolução do cinema. Nos anos 50 houve experiências consolidadas de filmes de ficção que infelizmente não chegaram até nós, porque não eram propriamente cinema industrial. Eram filmes que foram produzidos directamente em positivo (assim como o slide), não tinham negativo, e desaparecendo o exemplar positivo, desapareceu tudo. Valeria a pena conhecer toda essa história – quem foram esses homens que estiveram no terreno naquela altura? O primeiro projector para projecção comercial que chegou a Cabo Verde, segundo os meus dados, terá sido em 1903. Mas tenho a informação que o primeiro até teria sido um ano antes, pela mão dos ingleses que viam projecções em seus convívios sociais. Em Santo Antão, um pouco mais tarde chegou um projector pelas mãos do sr. Jacinto Estrela, que promoveu a projecção de filmes em Santo Antão, em Ponta do Sol. As ruínas desse cinema ainda lá estão para testemunhar. Uma história curiosíssima que tem capítulos também interessantes aqui na Praia. Houve uma aderência popular (como em todo o mundo) a essa nova linguagem de comunicação, de entretenimento, de socialização, de abertura para o mundo para lá de nós.
Voltando ao estado actual do audiovisual.
Acho que deveríamos estar num outro nível. Temos sentido isso e estamos assim por via de falhas de visão política. Tivemo-la no início, nos anos 70/80 quando criamos a televisão nacional e havia muitos amadores a filmar o quotidiano, pelo menos em S. Vicente. Chegamos a realizar em 1979 o primeiro festival de cinema amador. Instituímos o “Djeu de Bronze”, o nosso “Oscar”, modelado e fundido pelo mestre Pulu. Ganhou o sr. Coutinho da Shell. O título do filme dele era “O Nascimento de uma Nação”, uma elegia à independência das nossas ilhas. Emocionante. Depois disso, perdemos o comboio e ainda não conseguimos apanhá-lo.
Como classifica a política do audiovisual dos sucessivos governos de Cabo Verde?
Tirando o primeiro período quando entrou a mudança [1991] em que havia a intenção de fazer algo diferente… eu tive alguma responsabilidade nisso [Leão Lopes foi Ministro da Cultura entre 1992/93]. Quem ler esta entrevista vai dizer ‘espera aí, onde é que ele estava?’ Eu sei onde é que eu estava. Mesmo antes de assumir responsabilidade política nessa área fui autor de um projecto para o cinema e audiovisual que me foi pedido pelo primeiro-ministro [Carlos Veiga] logo quando entrou. Entretanto, vim a fazer parte do governo e como o projecto já estava feito, resolvi materializá-lo. Infelizmente as coisas não correram dessa maneira, porque herdamos uma estrutura do Instituto Cabo-verdiano do Cinema que, como se sabe, exercia censura aos filmes que eram importados através do Instituto, portanto os exibidores não podiam importar os filmes directamente. Às vezes retiravam-se filmes em exibição, como aconteceu aqui na Praia com um filme de Costa-Gravas que era muito polémico [Estado de Sítio] e que, todavia, veio via Instituto. Era um filme que questionava o sistema autoritário dos governos, no caso, de um governo latino-americano. Foi entendido que não era conveniente passar o filme (estávamos no regime de partido único). Em S. Vicente foi retirado depois da primeira exibição um filme banal, cujo nome já não recordo. Creio que era “Lagoa Azul”, um filme americano, com Brook Shilds ainda adolescente. Mesmo assim, nesse tempo, os bons filmes chegavam às ilhas e continuávamos a ver cinema. As coisas mudaram, os hábitos de ir ao cinema foram decaindo e, fazer cinema nosso, pensar, escrever e filmar coisas nossas estavam então fora de qualquer conjectura.
E como se passou com o seu filme, “Ilhéu de Contenda”?
“Ilhéu de Contenda”, o primeiro filme cabo-verdiano de facto foi totalmente realizado com financiamentos externos. Cabo Verde não entrou com um centavo. O país já havia mudado de regime político, contudo a ideia e iniciativa de fazer um filme cabo-verdiano foi muito maltratado, mesmo antes de ser película. Não chegou mesmo a ser estreado na Praia. A sala da Assembleia Nacional não foi cedida para o efeito. Até hoje não compreendi porquê. Assim, só foi visto em cinema, em S. Vicente, no Eden Park. Está a ver como é que o cinema neste país tem sido tratado, especialmente se se quer fazer: produzir, realizar. Se calhar por minha causa também. Na altura saiu na comunicação social que eu ia fazer um filme, fazer cinema em Cabo Verde, alguma boa gente do nosso meio intelectual e político deu em cima de mim. Caiu o Carmo e a Trindade. A propósito, num artigo inserido no jornal “Voz di Povo” um articulista, que até me conhecia, perguntava: ‘quem é Leão Lopes? eu conheço Felinni, Kurosawa, mas quem é Leão Lopes?’ Imagine. Eu já tinha ganho um prémio internacional com o guião e o filme já tinha financiamento externo. Lá fora acharam que podiam investir o dinheiro deles em mim, cabo-verdiano, no meu primeiro filme e na adaptação cinematográfica de uma obra emblemática de um autor também cabo-verdiano. Quem escreveu sabia perfeitamente quem é Leão Lopes. Uma pessoa a quem eu próprio respeitava, que tinha o gosto pelo cinema e até fazia crítica de cinema. Fiquei consternado. Imaginei essas mesmas pessoas que supostamente gostavam do cinema e cultivavam o cinema a zurzirem na cabeça dos Felinnis e dos Kurosawas (que nomeiam para se mostrarem cinéfilos cultos e conhecedores do bom cinema) quando intentaram fazer o seu primeiro filme… Fui surpreendido, não esperava esse provincianismo atávico no nosso meio. O país estava mal com o cinema e nós não podíamos pretender escrever, produzir, realizar cinema nas ilhas. Entretanto alguns realizadores estrangeiros já haviam filmado aqui e, sem qualquer ruído. O Rui Duarte de Carvalho, angolano, por exemplo. O Ilhéu de Contenda foi um filme que incomodou essa gente, mas fez o seu honroso percurso em nome de Cabo Verde. Participou em vários festivais internacionais de cinema, nomeadamente Cannes, Nova Iorque, Montreal, Milão e Ouagadougou onde foi premiado. Teve alguns prémios na Europa e viajou pelo mundo fora. Lembro essa história para que os emergentes nesses difíceis campos da criação e do fazer não se desanimem. Temos que agir, temos que fazer. Nesta terra há que ousar abrir caminho e construir sobre lava ainda a fumegar. Os partos de que natureza forem, são sempre difíceis, mas têm que se realizar. Para continuarmos. Para nos renovarmos, sempre.
Como estamos em termos de políticas públicas para o cinema e o audiovisual?
Neste momento não tenho notícias se haverá algum projecto para os nossos profissionais da televisão pública. Como é que estão sendo actualizados nas novas tecnologias, como é que a nossa televisão está evoluindo? Não faço a mínima ideia. Que eu saiba, nos últimos tempos o único curso (neste caso uma pós-graduação) realizado em Cabo Verde fomos nós [M_EIA, Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura] a ministrá-lo. Convocamos profissionais que já estavam no terreno, tanto da televisão, ou fora dela, para uma pós-graduação. Isso foi conseguido graças ao Brasil, no governo do presidente Lula da Silva, que financiou o grosso dessa formação. O Estado de Cabo Verde não entrou com um centavo. O resultado terá sido interessante, não sei, não acompanho a não ser pontualmente o percurso dessa gente que fez a pós-graduação connosco. Mas ficou por aí. Foi uma formação de âmbito internacional: recebemos alunos do Brasil, de Portugal, de Moçambique, do Senegal e de Cabo Verde. Quando vejo na televisão que o ministério da Cultura distribui 5 mil contos, 2 mil contos para a associação [Associação de Cinema e Audiovisual de Cabo Verde (ACACV)] para fazer projectos de realização, isso, apesar da boa intenção, parece-me brincadeira. Não é possível fazer coisas sérias dessa maneira. Se se trata de um financiamento para uma escola, para fazer educação pela via do cinema, etc, tem todo o sentido. Agora vir promover produções cinematográficas num país com essas verbas… gostaria que essas coisas fossem tratadas de uma outra maneira. Eu penso que a ACACV ao entrar nisto não está a fazer um bom trabalho. Devem ponderar esse formato de medidas de política que não me parece nada sério. Espero que um dia, enquanto eu estiver vivo que alguém se lembre de instaurar uma política pública para a área do cinema e do audiovisual em geral, nem que seja apenas para a educação e formação profissional.
Quais seriam os pilares dessa política?
Posso definir essa política dessa maneira – não há dinheiro neste país para financiar, por exemplo, um programa de realização de ficção. Isso não é brincadeira; neste momento, um filme de ficção de baixo orçamento, mesmo com tecnologias digitais, facilitadoras, um filme que tenha a possibilidade de ser distribuído e marque presença em festivais internacionais importantes, custa muito dinheiro para as nossas posses. Um milhão de euros talvez. Mesmo que não se chegue lá, um filme mais barato, um filme à dimensão deste país, como os que outros países fazem, por exemplo, Haiti, que, mesmo naquela desgraça vai fazendo o seu cinema… Na Guiné-Bissau o Flora [Gomes] continua a fazer filmes, mas ele vai buscar os seus recursos; é um homem com prestígio no meio, é certo, mas nós também poderíamos estar a respeitarmo-nos acreditando que, apesar de tudo, também podemos promover e fazer cinema cabo-verdiano. É o realizador nacional e sua obra que dá prestígio ao país e não o contrário. É o nome, é o currículo que vai construindo a qualidade de sua obra que enriquece o património do seu país. Já em Cabo Verde é mais fácil você vir de fora fazer um filme nas ilhas que nós próprios cabo-verdianos ousarmos o mesmo. Eu tenho consciência das limitações do país em termos financeiros, dir-me-ão, que o cinema e o audiovisual não serão uma prioridade, mas não será por aí que as coisas possam ser vistas.
Como você disse noutra parte, temos que ser criativos.
Justamente. Como é que fiz o Ilhéu de Contenda? Com vontade criativa em primeiro lugar e incentivo político. Quem deu crédito ao projecto de filme (como de interesse cultural para o país), para que pudesse concorrer a meios externos foi o então Ministro da Cultura, David Hopffer Almada. Ele avaliou o projecto e disse ‘isso tem interesse nacional’. A partir daí o produtor tratou de mobilizar os meios financeiros, no exterior. Assim é que se fez, assim é que ainda se faz. Na política também deve haver criatividade, tomando decisões e medidas as mais criativas especialmente num país como o nosso. Onde tudo é prioritário. Umas mais urgentes que outras, é verdade, mas tudo deve ser encarado como importante e sério para o seu desenvolvimento social, económico e cultural.
Cabo Verde tem uma literatura reconhecida internacionalmente que tem sido aproveitada quase que unicamente por realizadores estrangeiros.
É verdade que temos uma extraordinária contribuição da literatura cabo-verdiana que conhecida poderia ser um embrião de uma política de realização ligada ao cinema, ao telefilme e à ficção em geral. Caso houvesse uma direcção muito clara poderíamos perfeitamente privilegiar os recursos da televisão para dar essa projecção à nossa literatura. Grandes obras do cinema e da televisão ainda vivem da literatura. Você tem uma televisão do Estado com investimentos extraordinários na área da produção, temos técnicos qualificados na nossa televisão, mas não conseguimos promover a produção de obras de ficção com base em nós, adaptadas ou originais. Basta ir buscar o que eventualmente falta à televisão, realizadores que estão cá fora e que possam propor projectos, algum dinheiro e já se estaria a dar um grande passo. Porque a máquina já está instalada e ao serviço do país. É um desperdício termos uma televisão pública que todos nós pagamos e que só produz aquilo que produz. Temos todo um património literário, um património ficcional extraordinário, porque é que isso não alimenta a nossa produção televisiva? Telefilmes, séries, documentários… Porquê, não se compreende. Mudar esse cenário estaria a um clique de sensibilidade e decisão de qualquer governo. Temos tudo facilitado e como eu disse a nossa literatura poderia ser o embrião de uma escola de ficção para o audiovisual.
Anotei aqui Galo Cantou na Baía, de Manuel Lopes.
Olhe, lá está. Conto-lhe uma história interessante. Quando li Galo Cantou na Baía eu disse ‘eh pá, isso é um conto que tem uma construção estranha, no bom sentido’. Um dia visitei o escritor Manuel Lopes, meu amigo, e disse-lhe ‘oh mestre, parece que terá utilizado linguagem cinematográfica na montagem do conto’. Ele disse-me ‘sim, usei sim’. Conversamos e constatei que ele dominava como ninguém a linguagem cinematográfica, em especial no que diz respeito à montagem. Se você reler o conto a seguir desta nossa conversa, vai ver que ele usou o campo/contra-campo em todo o conto, algumas vezes com sábia subtileza. O canto do galo no meio da baía e de noite é o pico dramatúrgico do conto e um recurso dramatúrgico genial. Ele inspirou-se em alguns autores da literatura anglo-saxónica que também usaram linguagem cinematográfica. Se você pega no livro, separa os diálogos, praticamente não precisa decupar os planos do filme, porque já estão feitos. Curiosíssimo. Manuel Lopes pertence a uma geração de escritores que utilizava a linguagem do cinema na sua ficção. Ele especialmente, porque cultivou-se no círculo dos ingleses, em S. Vicente e também nos Açores. Manuel Lopes é talvez dos claridosos com maior conhecimento da literatura anglo-saxónica e “Galo Cantou na Baía” foi um exercício que funcionou bem, fazendo desse conto um dos mais bem conseguidos da literatura cabo-verdiana.
Para mim Galo Cantou na Baía é superior a Chuva Braba e Flagelados do Vento Leste.
É uma obra extraordinária. Você é capaz de ter razão.
Gostaria de adaptá-lo ao cinema?
Obviamente que sim. Seria com imenso prazer.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 885 de 14 de Novembro de 2018.