Última Lição do Professor Baltasar Lopes

PorExpresso das Ilhas,27 abr 2019 9:45

​23 de Abril de 1973 foi a data da jubilação do Dr. Baltasar Lopes onde deu a sua “última lição”, com uma mensagem actual para a nova geração de professores, a quem saudamos pelo Dia do Professor Cabo-verdiano.

Perante este numeroso grupo que aqui se reuniu para dar a assistência da sua amizade ao que é oficialmente a minha última lição, sinto-me no dever de estabelecer uma distinção, distinção entre o que é justo ou devido absolutamente, e o que é justo ou devido relativamente.

É absoluto — e peço que acreditem na minha total sinceridade —, só à amizade benévola e simpática posso atribuir o vosso gesto e isto porque, mais uma vez peço que tomem ao pé da letra o que eu digo; em nada excedi os limites do cumprimento do dever. Só degradando o conceito e o conteúdo deste nobre vocálico é que se poderá atribuir méritos especiais a quem cumpre o seu dever.Sem jogo de palavras é nosso dever cumprir o nosso dever! Claro, que esse cumprimento implica um complexo de forças espirituais que têm de ser mobilizadas na sua totalidade; o cumprimento do dever, onde nem a hierarquia das exigências que a comporta, nem forças possam ser postas de lado, todas são necessárias, nenhuma é prescindível, todas são igualmente importantes. É por isso que em boa verdade talvez se deva dizer que o dever começa a ser cumprido antes do seu início material.

Quero dizer com isto que antes de abraçarmos uma tarefa, devemos ser sinceros e rigorosos connosco a fim de averiguarmos se dispomos dos atributos que essa tarefa exige, se não, cumpriremos o nosso dever procurando outra que, ou não seja tão exigente ou seja diferentemente com uma especificidade que permita a nossa adaptação à conduta que é a sua medida. Só assim o oficio, a tarefa, a profissão deixou de ser um simples modo de vida para se nutrirem nas raízes do nosso sentir e incorporar do nosso património como um bem de nascença e só assim merecemos ter nascido e ser membros de uma comunidade.

No que pessoalmente me respeita penso que sempre procurei ser fiel a esse ideário, creio bem que essa fidelidade, melhor, essa busca de fidelidade e de autenticidade não tem passado despercebida o que explica o encontro amigo de hoje. E, no entanto, meus amigos, bem fácil me tem sido a minha tarefa, costumo dizer sem sombra de exagero que são das minhas melhores horas as que passo em contacto com os meus alunos, sendo como é assim o meu único mérito — e esse reivindico e proclamo de cabeça levantada –, residirá em que tive a honestidade de haver optado por uma actividade cujas exigências se harmonizassem com os aspectos fundamentais da minha personalidade.

Sem vaidade e também sem falsa modéstia, estou certo de ter cumprido aquilo que se chama espirito de missão, missão porque só nesta perspectiva compreendo e acredito a função de professor, que se não paute pelas compensações materiais outro mais alto e exaltante é o fardo que se tem neste combate, o adulto sentimento de estar dando o seu contributo para se formarem homens e de que assim às suas mãos confiam a comunidade parte principalíssima do trabalho e de a ele assegurar o seu futuro próximo, um próximo infinitamente renascido na escala e na sucessão do tempo.

Quer-se lá maior estímulo, no sentido de que ele põe à prova a nossa medida e cria a nossa melhor recompensa, que consiste em termos sido dignos da responsabilidade de professor?

Verdade, verdade, estou largamente beneficiado pondo de parte o pressuposto geral que acabei de anunciar –, fazem lá ideia, de certo fazem – do que é isto de assistir diariamente ao desabrochar de uma jovem inteligência e à fundação de uma personalidade, conhecendo o quinhão que nos cabe deste processo de em cada dia que passa, ver criar-se e fortificar-se na pequena cidade do nosso magistério, laços que nos unem a todos e a tal ponto que a certa altura nos surpreendemos de que a nossa família nuclear seja um círculo restrito quando comparada com esta extensa família que se foi forjando ao sabor do tecido quotidiano dos momentos, mesmo daqueles que a primeira impressão nos foram menos reconfortantes.

É com este sentimento de euforia e de exaltação que chego ao dia de hoje. Ele foi sempre construído desde o primeiro dia em que ainda quase imberbe entrei pela primeira vez como professor numa sala de aulas deste liceu. Galguemos os anos que ao longo deles foram sucedendo gerações escolares, mas em todos os momentos eu sentia intimamente um tradicional transmissor de conhecimentos talvez porque sempre me viram naquilo que eu sempre fui e sou, um estudante e, como tal, membro da mesma equipa dos mais jovens que estavam confiados ao meu magistério.

Permito esta infusão, mas não posso enaltecê-la quando comovidamente sinto a atmosfera de simpatia e compreensão que nos rodeia. Largamente beneficiado, repito: a que riqueza maior podia eu aspirar naquele dia já longínquo da que por um lado verificar — e suponho não estar sendo presunçoso —, que percorrendo tão longo caminho me seria reconfortante olhar por toda a sua extensão e vê-la abalizada com os próprios vossos amigos, os que foram ou são meus alunos e, por outro, que esse amor de décadas não teve como povoamento o silêncio e o ouvido.

Manifestarmos por palavras o meu comovido agradecimento para quê, se com o meu temperamento… (sou teimosamente avesso às fórmulas exteriores do sentimento), prefiro conservá-los intimamente resguardado com uma força intransponível. Ademais, sou socialmente versado na aventura da palavra, perdão, e a perceber de que ela facilmente se degrada do seu vigor potencial como uma moeda que vai perdendo seu poder de compra, …. limito-me por isso a pedir-vos que, com toda a segurança, inscrevam o vosso crédito nesta inestimável verba de que me constitui um devedor e que nunca esquecerei.

É este o pedido que me permite fazer à vossa excelência Sr. Governador e Sr. Secretário Geral que tiveram a bondade de honrar com a sua presença esta reunião e assistir a minha lição de hoje, gesto que oportunamente me desvanece e interpreto também como sinal de atenção com que encaro os problemas, os aspectos morais e culturais da governação pública.

Estendo os meus cumprimentos a todas as identidades que se dignaram dar-me esta honra e esta alegria e mais um favor espero dever ao Sr. Governador de aceitar o meu agradecimento pela distinção que hoje me foi conferida. Sem mais considerações que vossas excelências de certo comigo terão por desnecessárias, somente anotarei a grata circunstância do Sr. Secretário Geral ter sido meu aluno neste liceu. É emotiva a memória por um breve minuto recuar à época heróica em que o liceu teve de lutar pela sua sobrevivência, e por isso professoras e alunos se deram as mãos num bom combate felizmente vitorioso[1]. E a vocês alunos de agora aquele abraço, nele vai tudo o que vos posso dar em estímulo e votos porque cumpram o dever de hoje, que a escola é a garantia do cumprimento do dever de amanhã.

Não vos digo adeus, mas sim um até logo tão aberto à esperança e ao reencontro!!

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 908 de 24 de Abril de 2019.


[1] Baltasar refere à medida do governo de Salazar que em 1937 extinguiu o liceu de S. Vicente que então se designava de Infante Dom Henrique. Um grande movimento de cabo-verdianos, com forte participação de pais, professores e alunos, se levantou contra e, pouco depois, a medida foi revogada reabrindo o liceu com a designação de Gil Eanes.

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Autoria:Expresso das Ilhas,27 abr 2019 9:45

Editado porAntónio Monteiro  em  29 abr 2019 9:09

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