Mais um livro de contos. É o seu género de eleição.
Na verdade o meu género de eleição é a crónica. A crónica é aquela coisa que faço de coração aberto. Os contos, gosto também porque é texto curto. Gosto de textos curtos. Sejam crónicas, sejam contos, para mim está bem. Não me atrevi a entrar num texto mais longo. Escrevi um ou outro pequeno ensaio, às vezes trabalhos que me pedem e que tenho que me cingir às medidas que me indicam.
E porquê a preferência por textos curtos? É uma questão de técnica?
Não sei porque é assim. Nao sei se é porque comecei assim... Não sei se é porque os romances têm aquela fase de “palha”. E como nós estamos numa seca “braba”... Onde é que vou arranjar palha (risos), para encher as páginas de um romance? Eu tenho um, que comecei a escrever há alguns anos. Está ainda aí, às voltas na minha cabeça. Já até fiz uma espécie de sumário dos capítulos, para ver onde é que meto as coisas. Mas eu não tenho muita esperança de que aquilo vá dar certo. Porque não sinto vontade de trabalhar aquilo. Gosto é de trabalhar os textos curtos.
Então não sente nenhuma pressão?
Pressão não. Mas de vez em quando ainda há pessoas que me perguntam “quando é que publicas um romance?”, “quando é que escreves um texto com mais fôlego?”. As pessoas pensam que isto (mostra o livro) não precisa de fôlego. Isso é um engano. Precisa sim, principalmente quando são livros temáticos. Porque os meus livros de contos, até agora, são temáticos. Escrevi o primeiro (Semear em Pó) com as memórias da minha infância, o segundo (Mar, caminho adubado de esperanças) sobre imigração, e este terceiro são os sonhos que tive e que resolvi adaptar em forma de contos.
E porque pensou em transformar sonhos em contos?
Comecei a pegar nos sonhos, a tomar algumas notinhas, a guardar... Ainda há dias estava a mexer numa agenda antiga e encontrei duas histórias deste livro naquela agenda de 2005. Quer dizer que desde essa altura eu já estava a contar que um dia poderia fazer isto. Claro que não é um trabalho no qual se marca data, porque não se sabe quando se vai sonhar e nem se se vai reter algo do sonho. Eu tinha mais algumas histórias mas resolvi não as colocar aqui porque ficavam demasiado pessoais. Eu sonhava com fulano de tal... Sonhei um que chamei de Cavalo Alado: era um em que sonhava com uma pessoa mas, se eu fosse contar aquilo, ou disfarçado ou sem disfarce, ia dar logo uma série de informações que eu não queria passar. Então fui cortando os sonhos que me pareceram ter este defeito. E assim fui ficando com menos, até ficar em 15.
E com o que é que sonha? São mais sonhos cor-de-rosa ou há também pesadelos?
Nem sempre são cor-de-rosa. Por exemplo, um dos contos chama-se Juízo Final e este era realmente um pesadelo. Eu sonhei que assistia ao fim do mundo. Mas eu estava a uma janela e assistia a tudo, muito preservada. Nada me atingia. E assistia ao mundo a pulverizar-se. Quando eu digo “eu” é porque escrevo na primeira pessoa muitas vezes. Mas os contos não são inteiramente sonhos. Ficam algumas imagens dos sonhos e eu, a partir destas, meto alguma ficção com a qual vou “tapando” os buracos que ficam.
Dizem que o material dos sonhos é puro surrealismo. Podemos dizer que a Fátima Bettencourt já está também no grupo dos escritores surrealistas?
(Risos) Eu não gosto muito de estar nestes grupos. Não sei... Tenho reticências quanto a isso.
Ao surrealismo ou a grupos?
Quanto aos grupos que se dedicam a isso e ficam catalogados. Eu não gosto de etiquetas. Eu sou escritora por instinto. Não tenho nenhuma formação específica. É uma vocação que veio de infância. Desde pequenina gostava de pegar num tição (eu nasci no campo) e rabiscar num papelinho que depois passava o dia a ler. E também queria que os outros lessem. Eu gosto de escrever. A avaliação da minha escrita é feita sempre por terceiros. Mas a mim dá.me prazer, estes textos curtos.
Publicou um livro pela primeira vez em 1993.
Sim, já escrevia havia uns dez anos. Sem publicar nada porque tinha medo. Havia um medo! Principalmente as mulheres. Criaturas destemidas, que nunca têm medo de parir os filhos, que enfrentam as situações mais tremendas, e sentem medo de publicar. Eu me lembro da primeira vez que eu me vi sentada numa mesa, a assinar autógrafos no meu livro... Senti que não era eu, que estava lá. Estava a sonhar...
Há uma condição que é a Síndrome do Impostor, que se caracteriza por a pessoa nunca acreditar que é bom o suficiente, que merece reconhecimento, por sentir-se uma farsa. Atinge sobretudo as mulheres.
Extactamente. E porquê? Porque temos séculos de opressão, séculos de nos “buzinarem” nos ouvidos que nos éramos inferiores, menos capazes, menos inteligentes. Até as mulheres poderosas diziam isso de outras. Então, aquilo foi “entrando no ADN”... E às tantas foi uma luta tenaz para reconhecermos o nosso valor. Porque não éramos reconhecidas por ninguém.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019.