Recentemente abriste o 35º Festival da Baía das Gatas, na noite de Sexta Feira, normalmente dedicada à música tradicional. Como foi abrir o maior e mais expressivo evento de música do país?
“Foi mut sab”. Sab é a expressão que me ocorre utilizar. Nem fantástico, nem mesmo extraordinário definem por completo o que foi aquele momento para mim. Tenho por costume dizer que qualquer artista tem o sonho e ambição de cantar nos maiores palcos e poder fazê-lo na terra onde nasci, é algo que não tem descrição possível. Marcou-me muito ver a multidão que lá estava, tanto ou mais gente do que normalmente há no Sábado, cantando comigo, vibrando com as músicas e extravasando toda aquela alegria e energia que nos caracterizam, enquanto povo. Já tinha atuado em outras edições do Festival, mas ter a honra de o abrir, ficará eternamente gravada na minha memória. Foi realmente especial.
Quando foi que os “caminhos da Cremilda Medina e da Música se cruzaram”? Como é que a música entrou na tua vida?
Eu e a música demos as mãos ainda no tempo da escola primária. Teria eu por volta de nove anos de idade. Foi a partir dessa altura que comecei a cantar para o público e a integrar projetos musicais de ordem vária. Participei na Gala dos Pequenos cantores, posteriormente integrei o Grupo Musical Juvenil, mais tarde comecei a cantar nas noites do Mindelo, tive a oportunidade de concorrer no “Talento Strela” e a pouco e pouco, a música foi ocupando um espaço cada vez maior na minha vida.
A tua carreira dá impressão de estar a evoluir a um ritmo cada vez maior; tens marcado presença em inúmeros eventos, realizado vários concertos, muitas viagens. Como tem sido conciliar o lado artistico, com a vida pessoal e profissional?
Tem sido uma aventura, uma maravilhosa aventura. Não tenho contrato com nenhuma editora, trabalho de forma independente, tendo por agente e empresário o meu marido, Miguel Silva. Juntos vamos levando àvante o projeto “Cremilda Medina”, de modo que acaba por não ser muito dificil conciliar as coisas. Fazemos questão de separar as coisas e de alocar tempo para tudo; tempo para a música e tempo para nós. Com relação à minha vida profissional, é engraçado ver algumas pessoas ficarem surpreendidas, ao verem-me no meu local de trabalho. Cada vez há mais gente que julga que eu canto por profissão.
Pensas vir a dedicar-te exclusivamente à música?
Estou a trabalhar nesse sentido e espero que muito em breve, possa dedicar-me em exclusivo à música e profissionalizar-me integralmente como cantora.
O teu primeiro CD, Folclore, lançado há pouco mais de um ano, tem sido muito bem acolhido pelo público duma maneira geral, tanto em Cabo Verde, como a nível internacional. Esperavas todo este sucesso?
Sinceramente, não! Tem sido surpresa atrás de surpresa, todas elas muito agradáveis. Quando gravei a morna Raio de Sol e produzimos um videoclipe, a intenção era aferir como o público receberia mais uma artista no panorama da música tradicional, até mesmo porque na altura, quando as pessoas me ouviam cantar, frequentemente me perguntavam se pensava em gravar um disco e para quando o pensava fazer. A própria aceitação do álbum Folclore superou as minhas expectativas. As pessoas têm comprado o CD e, mesmo estando nós numa era em que prevalecem os formatos digitais, via internet, as vendas físicas têm atingido números expressivos. Até ainda recebo com alguma regularidade pedidos de reforço de encomenda por parte das lojas de música, pois a procura ainda continua em alta. Felizmente.
“Passeando” pelo repertório, percebe-se uma mescla interessante não só de ritmos e sonoridades, como também de autores, que vão desde os grandes mestres, até jovens valores, que vão despontando no campo autoral em Cabo Verde. Fala-me um pouco do processo de seleção das músicas.
Bom, eu disse ao Miguel que queria fazer um CD para mim, acima de tudo para mim, com as músicas que mais gosto e com as quais me identifico. Aquelas que melhor definem a Cremilda. Acho que não se deve fazer algo só porque os outros querem, só porque outra pessoa se sentirá bem com isso. Musicalmente falando, acredito que se eu gostar do que fiz, se eu me sentir bem com o que produzi e apresentei, quem o ouvir também ficará igualmente agradado. Foi esse pensamento que me norteou na escolha dos autores e composições do repertório. Foi a forma que encontei de ficar satisfeita com o resultado final, embora eu acredite que quando se faz algo por paixão, a perfeição não existe. Encontramos sempre por melhorar, sempre por onde aprimorar o que fazemos. Ao fim ao cabo, gravei as músicas que ouço. Foi como se tivesse transferido para um CD a minha playlist pessoal. O mais interessante é que muitas das músicas acabaram por ser escolhidas por acaso, enquanto procurava “aquela música”, cujo nome não me lembro, cuja letra não me lembro, a própria melodia também já vai se esbatendo na minha memória, mas que quando encontrar, certamente saberei reconhecer. Nesse processo de pesquisa, fui encontrando belas coladeiras que casaram muito bem com o projeto. Quanto aos compositores, confesso que foi a parte mais fácil, pois a nossa terra é abençoada com grandes génios de criação, tanto em quantidade, como sobretudo em qualidade. Assim, aproveitei para consagrar os grandes mestres e dar uma oportunidade de gravar aos jovens talentos que vão surgindo a cada dia, da mesma forma como, a dada altura, também me foi dada a mim, a oportunidade de aparecer.
Já alguma vez experimentou escrever as tuas próprias composições? É algo que te desperte interesse de alguma forma?
Já tentei e senti-me como uma menina da 1ª classe ao tentar aprender a escrever. Não gostei, para ser sincera. Não é algo que me sinta particularmente inclinada para fazer. A minha paixão é cantar. É aí que me sinto bem e acredito que seja esse o meu destino, o caminho que tenho que seguir. Não falta, felizmente, gente com paixão para escrever, por isso eles que escrevam e a Cremilda estará cá para cantar, sempre que quiserem.
Falar de Cremilda Medina é um pouco falar de música tradicional caboverdiana? De onde surgiu essa paixão pela “nossa música de raíz”? É fácil ser uma interprete exclusivamente “tradicional”?
Quando comecei a cantar, isto ainda em casa, enquanto estudava ou ajudava a minha mãe com as tarefas domésticas, não cantava música tradicional. Era sobretudo aquilo que hoje é chamado de “zouklove”. Beto Dias, Dina Medina, Suzana Lubrano. Nessa linha. Mesmo não cantando ainda público, gostava muito de imitar a Suzana Lubrano e a Lura também. Até que um dia, alguém me disse que já tinhamos a Suzana, que já tinhamos a Lura, e pediu-me que eu fosse eu mesma, porque Cremilda ainda só a minha mãe é que tinha. Falando na minha mãe, confesso que veio dela a minha maior influência para enveredar pelo lado tradicional da música de Cabo Verde. Passavamos muito tempo juntas e ela, nas lides da casa, distraía-se cantarolando. Assim fui aprendendo e tomando gosto. Por vezes, ao ouvir determinada música, ela que dizia que lhe fazia lembrar a juventude dela e os momentos passados com a mãe dela, igualmente de volta das tarefas do dia-a-dia. Isso marcou-me e fez-me querer fazer algo que possa no futuro dizer a um filho meu “olha, isto lembra-me do tempo em que eu e a minha mãe arrumávamos a casa pela manhã”. Foi assim que nasceu em mim a necessidade de preservar pe perpetuar aquilo que é nosso, aquilo que nos identifica como povo. Não estou sozinha. Felizmente somos muitos com esse pensamento e a trabalhar nesse sentido. Evoluíndo e adaptando-nos à modernidade de forma natural, mas sem esquecer de onde viemos e do que nos faz ser quem somos. Curiosamente, quando oiço a nossa música, principalmente as coisas mais antigas, tenho uma estranha sensação de dejá vú e sinto-me viajar para um tempo que, mesmo não tendo vivivo, me deixa saudades. Quero que os meus filhos amanhã sintam essa mesma “saudade” e acredito que isso venha a acontecer. Basta terem a mente aberta. Muita gente não gosta da música tradicional, porque nem sequer lhe “dá uma oportunidade”, nem sequer se predispõe a ouvi-la, ou fá-lo já predisposto a não gostar.
O que nos reserva o futuro? Para quando um novo CD? E um DVD ao vivo, já pensaste nisso?
O CD está para próximo... e mais não digo! Para além do mercado fonográfico hoje em dia não comportar lançamentos muitos frequentes, sou bastante criteriosa na escolha do repertório e não quero correr o risco de escolher uma música que não me diz nada e consequentemente interpretá-la duma forma que depois não me agrade. Não seria justo comigo, nem com o compositor. Já em relação ao álbum Folclore, penso que poderia ter dado algo mais de mim mesma, de modo que para o próximo trabalho, quero fazer justamente isso. Entregar-me de corpo e alma. Quanto ao DVD, não me seduz. Posso vir a mudar de opinião no futuro, mas por enquanto, não é algo que esteja nos meus planos. Não gosto de câmaras, não gosto muito de me ver, na verdade só agora é que me vou acostumando a ouvir-me cantar. gosto de viver “o momento” e faço por vivê-lo com intensidade. Perpetuá-lo num DVD não me diz muito. Quem sabe um dia?
Quando ganhaste o prémio de Melhor Morna do Ano, nos CVMA, lembro-me de ver o Tito Paris dirigir-te palavras muito carinhosas, enaltecendo o teu talento e a tua dedicação à elevação da nossa cultura musical. Tempos depois, juntaram-se para uma regravação do Nôs Morna de Manêl d’Novas. Como foi trabalhar com um ícone da música de Cabo Verde, como é o Tito?
Foi uma autêntica surpresa para mim. Algo absolutamente inesperado. Sou fã incondicional do Tito Paris, independentemente ter ter ou não gravado com ele. A voz dele mexe muito comigo e tem o condão de me transportar para “lugares muito especiais”, sempre que o oiço cantar. Acima de tudo, vejo nele alguém que sempre preservou o que é nosso e que nunca virou as costas áquilo que mais e melhor nos identifica. Voltar as costas às nossas raízes é como que voltar as costas aos nossos pais. É renegar a nossa identidade. Hoje orgulho-me das pessoas me associarem à morna e à coladeira, de saberem de antemão o que vão ouvir num corcerto meu e de mesmo assim fazerem questão de lá ir. E ver o Tito enaltecer isso, mexeu muito comigo, acabou por me fazer gostar ainda mais dele e descobrir um ser humano notável, por detrás dum grande cantor.
Que avaliação fazes do nosso panorâma musical atual?
Vivemos um momento saudável. A candidatura da morna a Património Imaterial da UNESCO, veio colocar os holofotes sobre a nossa música, em particular no que respeita à vertente tradicional e essa exposição acrescida tem favorecido a produção, em todos os géneros, desde a morna à coladeira, passando pelo funaná, batuko, tchabeta, mazurca e por aí a fora. Têm florescido novos talentos, há mais espaço para as pessoas aparecem e a própria aceitação do público é maior. Está longe ainda de ser perfeito, mas já foi muito pior. Hoje temos condições de promover e divulgar a nossa música, exportando-a e levando com ela a nossa imagem. Mas temos sempre de dar primazia áquilo que é verdadeiramente nosso. Porque a identidade de Cabo Verde está na musicalidade do nosso povo.
Quem te acompanha pelas redes sociais, sabe da tua paixão pelos animais, paixão essa que te leva inclusivamente a contribuir para inúmeras causas ligadas à preservação e proteção de algumas espécies. Conta-me mais sobre esse teu lado.
Sempre tivemos muitos animais na casa dos meus pais. Chegamos a dada altura de ter 14 gatos e 2 cães. A minha mãe tem por hábito recolher animais abandonados e cuidar deles e eu devo ter herdado esse lado “zoológico” dela. Sempre que posso, dou o meu contributo à Associação Bons Amigos e tudo o que puder fazer para os ajudar na promoção do maravilhoso trabalho que fazem, podem contar comigo. Faz-me bem ajudar os animais. Sinto que assim faço a minha parte para um Mundo melhor, para um Mundo onde haja menos crueldade e descaso para com os animais. Por vezes penso que o problema está na própria sociedade. As pessoas duma maneira geral, não medem as consequências dos seus atos, não pensam naquilo que poderá acontecer àqueles animais, se os abandonarem. Já fui criticada por dar mais atenção a animais do que a pessoas que eventualmente estejam carenciadas, mas quanto a isso digo que o que a mão direita faz, a mão esquerd não precisa de saber. Faço sim, ajudo sim, mas não sinto necessidade de o divulgar a todo o momento. Tento associar-me a causas de cariz social e solidário. No lançamento do meu CD, 10% das receitas dos shows reverteram a favor do serviço de pediatria dos hospitais Agostinho Neto e Baptista de Sousa. Penso que pode ser feito muito mais, pela sociedade. As pessoas precisam dissociar-se da ideia de que ajudar é somente dar dinheiro, comida ou medicamentos. Às vezes simplesmente sentarmo-nos para ouvir alguém e lhe levar uma palavra de incentivo. Quem mora na rua, não o faz por vontade própria. Não escolheu ir para a rua. Foi a vida que o levou. Devemos estender a mão a essas pessoas e não esperar que a iniciativa de pedir ajuda parta delas.
Tens uma voz forte e uma presença bastante expressiva em palco, mas ao mesmo tempo aparentas alguma timidez e introversão no dia-a-dia. És também uma pessoa muito ligada à tua família. Quem é realmente a Cremilda Medina fora do palco?
Quando comecei a cantar, sentava-me, fechava os olhos e passava a noite inteira sem interagir com as pessoas. Preferia até cantar para plateias pequenas. Era muito tímida. Fora do palco sou muito reservada. Gosto de estar no meu canto. Adoro o mar, a natureza, gosto de conversar com as pessoas, ao vivo porque tenho uma certa aversão ao telefone. Não sei explicar porquê, mas não sou muito amiga de falar ao telefone. Quanto à minha familia, posso afirmar convictamente que nada é mais importante para mim do que eles. Sou dum tempo em que todos os anos, no início do ano lectivo, antes irmos para a escola, o meu pai se sentava connosco, dava-nos os concelhos que achava mais importantes, fazia as suas recomendações e terminava com uma oração para abençoar-nos a nós ao ano que teriamos pela frente. Cresci numa familia que desejaria que todos pudessem ter tido a oportunidade ter também. Sempre tive muita gente em meu redor, muito calor humano à minha volta. Vem daí a minha força para viver.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 926 de 28 de Agosto de 2019.