Escrevi um pequeno texto para vos dar conta da minha relação com os loucos da minha cidade. Antes devo dizer que escrevi dois textos. Quando li o primeiro fiquei furiosa porque eu era a personagem principal e gritei para a página enquanto a rasgava: esta não sou eu. Eu não sou louca. Respirei fundo e escrevi o segundo, de acordo com o tema.
A começar, que a minha cidade é um espaço de memória que junta nas mesmas lembranças lugares diferentes, às vezes uma ilha toda, outras vezes, um continente longínquo, cidades ao sabor do que eu vou vivendo ao longo da vida. E não será cidade o lugar onde vivemos, independentemente da definição burocrática e autoritária de uma enciclopédia? Começo por recordar a infância, porque é esse tempo que me acompanha neste presente testemunho.
Antes de continuar eu devo dizer-vos que no crioulo cabo-verdiano, não existe a palavra “louco”. Existe a palavra doido, com imensas nuances de acordo com o grau de exposição ao definido como aceitável no pensamento normal. Desde o esquizofrénico, ao visionário, ao fingidor, a alguém incoerente, uma pessoa que “carrega” um espírito de alma desencarnada, um consumido pelas drogas, uma pessoa que está perdida de paixão, alguém com dificuldades de consistência nos comportamentos, verbalização e nas várias adequações, até alguém que não se considera devedor em termos comportamentais e da coerência e consistência intelectual, individual ou e social. Em linguagem curta diria um indivíduo guiado pela ideia de transgressão e liberdade. Muitas vezes pela doença. Ainda há os outros que se acolhem na capa do “diferente” para não serem cobrados pelo que dizem, pelas supostas verdades que revelam e comentam e refugiam-se na impunidade. Impunidade com que a própria sociedade os distingue para se proteger ela mesma das revelações. Outros há que com o tempo se despem do seu nome e das referências e circunstâncias e entregam-se ao papel de vigilante da cidade, de crítico ou de justiceiro verbal e com tanta intensidade o fazem que desistem da sua personalidade normal para se fixarem no gozo dessa personagem.
O que eu quero dizer é que na minha cidade todos, ou quase todos, somos doidos, ou quase doidos, por uma razão ou outra. Até por se fazer poesia. Ou não.
Esta foi uma introdução ao tema que a Organização da Bienal do Livro do Ceará – 2019 me propôs: “Os Loucos da minha cidade”. A segunda pessoa que eu conheci e a quem chamavam “doido” foi um menino, companheiro das brincadeiras, por volta dos meus cinco, seis, sete anos. Mal chegávamos à ilha as crianças começavam a organizar-se, chefiadas pelas mais velhas. Ele tomava conta de mim e protegia-me dos outros meninos que me ameaçavam. Até hoje não lhe posso dar uma idade, mas como o deixavam estar connosco é sinal de que não seria muito muito mais velho, ou possivelmente não lhe davam a importância de ter uma idade. Ele era boteado* e a moleirinha nunca fechou, o que quer dizer que ele nascera com o juízo ainda não formado. As pessoas adultas não gostavam dos meninos boteados porque eles são capazes de adivinhar o que os adultos pensam. Atualmente não sei se essa rejeição idiota se mantém. Preciso de voltar à ilha.
Com o tempo descobri que só se podia chamar doido a alguém quando os médicos assim o decidiam e, nesse caso, eram os doentes mentais. Mas isso foi muito mais tarde e eu já andava a estudar essas coisas.
Tratemos, portanto, da categoria de gente com pensamento diferente: os loucos.
O terceiro doido que eu conheci foi um senhor que andava sempre de fato de caqui. Ele era branco e era conhecido por Bissau porque se dizia que ele tinha chegado à cidade, vindo da Guiné e era comunista. Foi o primeiro comunista que eu conheci. Não sei se ele me inspirou. Depois soubemos que ele fora deportado de Portugal. Por ser comunista, claro. A gente nunca soube onde ia buscar comida. Ele tinha um garrafão que enchia de água perto da minha casa, no Madeiral, junto da Câmara, onde havia distribuição de água.
Também não sabíamos onde ele dormia, mas andava sempre limpo num fato caqui, chapéu e bengala. Alguns rapazes gritavam-lhe Bissau e ele levantava o braço e a bengala para o céu. Mas se era comunista não devia ser para pedir a proteção divina. Talvez fosse para ameaçar o divino por tanta maldade que a vida fazia com ele. Na altura não pensava nada desse seu hábito de levantar a bengala. O meu pai e outros homens de chapéu, quando passavam por ele faziam o gesto de levar a mão ao chapéu.
Conheci outros loucos e outros doentes sociais ou mentais. Na verdade, os rapazes só se atiravam aos doentes mentais porque, acho, os outros, os loucos de verdade impunham respeito.
Eu tenho… Não, não é isso. Dizem que os doidos têm uma certa tendência para se aproximarem de mim e falarem comigo. Ainda há poucos dias, enquanto pensava nesta viagem, eu passava por uma esplanada e um desses loucos da cidade – eu disse loucos? – não aceites, viu-me e veio ter comigo. Se ele não fosse um excluído, eu diria que somos amigos, mas assim, nem procuro arranjar um grau de conhecimento. Puro preconceito meu, reconheço. Ele sabe tudo o que eu faço, e quase todos os passos que dou quando vou ao centro da cidade, onde ele circula. Sobretudo ele sabe quando eu viajo, porque quando regresso faz sempre uma espécie de comemoração e as minhas amigas fazem comentários.
Depois do cumprimento eu disse-lhe: – Não tenho nada para te dar. – Eu não quero nada. Só quero fazer uma caminhada contigo. Preciso de fazer exercícios… E é bom ser contigo. Eu estava com pressa, mas o que me incomodava era ver as pessoas do café à espera da minha reação. Eles sabem que sempre paro para falar um pouco com o meu “amigo”, e incomodava-me que toda a gente me olhasse. Depois de uns metros dei uma desculpa e deixei-o para trás.
– Tantos convencidos, maus caráteres, estúpidos que eu suporto, e me suportam, e esse que só queria fazer uma caminhada comigo, apenas porque transgride as convenções eu corria com ele. Às vezes, olhando-o fico a pensar no que as pessoas me dizem: um dia um desses doidos ainda te ataca. Tarados e hipócritas já me atacaram, doidos e loucos nunca.
São os loucos da minha cidade que me vão contando estórias, que me vão obrigando a ver esta cidade umas vezes com medo, outras alegre ou triste ou absolutamente desarmada, sem preconceitos, sem teorias, sem outros interesses que não as pessoas, apenas com a pele e a alma. São os loucos que me ensinam a olhar os dias e os pores do sol que, naturalmente, são para todos. São?
Para terminar e, sim, para iniciar a fala sobre “A Louca de Serrano”, depois de ter falado do segundo e terceiro loucos que eu conheci vou falar do primeiro louco que eu encontrei na vida. Uma louca, aliás, e eu ainda não tinha idade para fazer conhecimentos. Ela amou-me.
Chamava-me sua menina. Mais tarde soube a sua história. Júlia era seu nome. Mas essa é uma história muito longa.