Que nem todas as exposições se medem pelo mesmo compasso.
Em algumas, o que há para ver é nada
o que há para ouvir é grito
e para sentir em comunhão
é mágoa.1
I
Ao longo da segunda metade do século XIX e primeira do século XX, Londres, Paris, Lisboa e outras cidades europeias organizaram exposições transnacionais, amplos espaços cosmopolitas de afirmação do poder económico e geopolítico, onde se ostentaram os símbolos da modernidade e do avanço tecnológico. Visitadas por milhares de pessoas, tornaram-se lugares apetecíveis para a propaganda dos impérios através da promoção de produtos e manufaturas, exibição da fauna e dos súditos colonizados.
Cabo Verde, domínio ultramarino de Portugal, participou em diversas exposições internacionais [recebeu medalhas de ouro pela qualidade de alguns expositores nas Exposições Universal de Londres (1862), Internacional Portuense (1865) e Colonial no Porto (1934)]:2
1862: Exposição Universal de Londres junto aos jardins da Royal Horticultural Society, Londres. 1865: Exposição Internacional Portuense, organizada pela Associação Industrial, no Palácio de Cristal no Porto. 1894: Exposição Insular e Colonial Portuguesa no Palácio de Cristal no Porto. 1885: Exposição Universal de Anvers, Bélgica. 1900: Exposição Universal de Paris em Champs de Mars. 1929/30: Exposição Ibero-Americana de Sevilha. 1931: Exposição ColonialdeParis no Parque de Vincennes. 1934: Exposição ColonialPortuguesa no Palácio de Cristal, Porto. 1938: Exposição de Cabo Verde em Lisboa, Semana das Colónias organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa. 1940: Exposição do Mundo Português no Terreiro de Belém, Lisboa. |
II
Na Sociedade de Geografia de Lisboa, Júlio Monteiro Júnior teve acesso aos “elementos com que Portugal, como potência colonizadora, pretende figurar na próxima Exposição Colonial de Paris” (1931). Um painel, que representa a cultura da purgueira e apresenta o cabo-verdiano usando tanga, causou-lhe perplexidade e indignação:
“De tanga, porquê?3
Pode-se admitir que numa terra onde a percentagem de analfabetos, incomparavelmente menor do que na metrópole, é apenas de 12%, havendo lugares onde desce a 8 por cento, pode admitir-se que haja nessa terra quem ande de tanga? Não. E menos admissível é que alguém nos force a usá-la, oficialmente na Exposição de Paris, ofendendo o nosso orgulho de civilizados”.
Três anos volvidos, o Diário de Lisboa, de 23 de junho de 1934, publicou a seguinte notícia:
“São nove mulheres e dez homens, que se vestem à europeia, como todos os aborígenes4 de Cabo Verde”.
Em 18 de julho de 1934, o Notícias de Cabo Verde publica uma notícia do jornal “Novidades” de Lisboa, de 1 de julho de 1934, que dá conta da representação da colónia no Palácio de Cristal no Porto, “que surpreendeu e empolgou os visitantes”:
“Delicadeza, fino trato, compostura, civilização. De feições europeizadas, indumentária cuidada, limpeza, aprumo, os caboverdeanos têm uma apresentação magnífica, própria de quem vive em contacto com a civilização, com os diversos povos que, nos grandes cruzeiros, tocam diariamente o famoso arquipélago”.
Após o encerramento da Exposição o jornalista Machado Saldanha declarou, no jornal O Eco de Cabo Verde de 31 de outubro de 1934, que “no capítulo de difusão de instrução, a colónia que na Exposição tenho a honra de representar tem justos títulos de orgulho”. Elucida:
“Da sua população, que atinge 154.182 indivíduos, 92.285 falam e escrevem português, e dêstes, 14.000 têm títulos de habilitação. A percentagem de analfabetos é apenas de 45,5. No conjunto da Nação, refere esta estatística um progresso apreciável até mesmo sobre a Metrópole, onde, segundo a última estatística, de 6.825:883 habitantes, os analfabetos se contam em 4.626:988.”
No catálogo da Exposição de Cabo Verde em Lisboa, organizada pela Sociedade de Geografia em 1938, reconhece-se que
“Ao invez do que é vulgar observar-se em exposições coloniais, nesta não se verifica a multiplicidade e o exotismo de objectos e instrumentos indígenas, de caraterizada e primitiva factura; êste facto, longe de traduzir um defeito, só serve para evidenciar a acção eminentemente civilizadora de Portugal. (…)
Os caboverdeanos são ávidos de instrução. O número de analfabetos não vai além dos 20 a 30%. (…) O nível de bem-estar e de confôrto é, para as classes médias caboverdeanas, idêntico ao da Metrópole.”4
Como se documenta nas fontes consultadas, os indicadores idealizados e a valorização excessiva das capacidades dos cabo-verdianos eram ostentados como troféus da política lusitana de assimilação.
Foi-se, assim, construindo o mito da alfabetização na colónia assimilada, suportado pela manipulação dos números – taxas variáveis consoante a proveniência, oscilando entre 12 e 45% de analfabetos na retórica colonial e 66% na estatística publicada na colónia5.
Termino com uma nota de humor na apreciação crítica da mundividência colonial da autoria de José Inocêncio Silva, no livro Panoramas caboverdianos (1944) 6: “E passe a impressão errónea de que em Cabo-Verde se veste tanga, – de que há cubatas – de que há costumes gentílicos – de que há leões, feras, ursos e outros animais ferozes [esclarece que] só há leões racionais – leões gente, que vendem coisas nas suas lojas, às suas gentes: Leão Cohen e Leão dono da «Casa do Leão» em Sam Vicente, e Dr. Leão [de Pina] Conservador do Registo Predial, na Praia”.
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1 Maria Estela Guedes (In Mourão, José A.; Matos, Ana Mª Cardoso de & Guedes, Mª Estela (coord.) (1998). O mundo ibero-americano nas Grandes Exposições. Lisboa: Ed. Vega.
2 Monografia-catálogo da exposição de Cabo Verde (1938). Sociedade de Geografia de Lisboa, p. XXV; Notícias de Cabo Verde, 20 de outubro de 1934; documentos do Fundo da Secretaria-Geral do Governo, caixas 73 e 74, ANCV.
3 Subtítulo do artigo “Um protesto – A propósito da Exposição Colonial de Paris”, Notícias de Cabo Verde, 3 de maio de 1931, pp. 2, 6.
4 As palavras ‘indígena’ e’ aborígene’ são sinónimas. Significam “o que é natural do lugar ou país que habita”. O termo ‘indígena’ ganha a conotação colonial de indivíduo não civilizado de raça não branca. O estatuto de indígena não foi aplicado nas colónias portuguesas de Cabo Verde, India ou Macau.
5 Monografia-catálogo (1938) …, pp. 8, 59.
6 Diploma legislativo n.º 302 de 25 de agosto de 1931.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1005 de 3 de Março de 2021.