Cize, o delírio dos fãs e uma traição da energia eléctrica no Mindelo antigo

PorCarlos Filipe Gonçalves,19 abr 2021 9:52

Investigador Musical e Jornalista
Investigador Musical e Jornalista

A Morna “Flor di Nha Esperança” de Cize no disco vinil 45 rpm editado em meados dos 1960 pela CASA MIMOSA, S. Vicente – Cabo Verde, foi divulgada numa página Facebook num post * de 27 de Agosto de 2020 que foi um retumbante sucesso: mil e duzentas partilhas!

O clip é constituído por uma colecção de fotos e extratos de documentários sobre a cidade do Mindelo dos anos 1930/40, a música tem a seguinte apresentação: “Gravação realizada por Djack Monteiro (que toca violão) nos anos 60 com a jovem Cesária Évora. Um disco EP foi lançado e nunca mais foi comercializado.” Recebi este clip via Messenger (através do qual deverá ter outros milhares de envios) com a seguinte indicação: “Cesária Évora – Flor di Nha Sperança – Gravação inédita…” Mas, para minha surpresa, não reconheci a voz da Cize naquela gravação! Parecia uma outra pessoa a cantar. Comentei para a pessoa que enviou a gravação: impossível, não é a voz da Cize, deve ser um engano! Preocupado, contactei o meu amigo Tey Santos (baterista), em Mindelo, coloquei-lhe a questão, ele me confirmou: sim, é a voz da Cize! Mas, continuei a não acreditar e mantive a minha posição, pois tinha a certeza que não era esse o timbre da voz da Cize, que conheço muito bem.

Passaram-se uns meses, acontece que no início deste ano de 2021 quando estava à procura de músicas e informações para um dos meus trabalhos em curso, encontrei na minha colecção, os dois primeiros discos vinil da Cize, com o título “Melodia Caboverdiana”. Resolvi então recordar/ ouvir essas gravações antigas que um amigo há muito me oferecera, mas ainda não tinha ouvido… sei lá, porquê? Talvez porque ainda tinha bem presente os inícios da Cize na Rádio Barlavento. Coloquei o disco, no prato da minha nova aquisição, um moderno gira-discos que pode ser ligado ao computador e fazer cópia para o digital! Qual não é o meu espanto, o disco parece estar numa rotação errada… Mas lá vou escutando… O pessoal daqui de casa, alerta-me: “Que música é essa? Esse disco não está bom!” Foi, quando me lembrei da tal gravação da Cize e do vídeo que eu tinha recebido! Instintivamente, resolvi trocar de gira-disco, passei para um velho aparelho que tem motor central, estroboscópio e botão de “pitch” que permite regular a velocidade, algo essencial para uma boa restituição. Coloquei o disco a rodar, acertei a velocidade e… Surpresa total! A voz da Cize surgiu límpida, com aquele timbre que todos conhecemos!

Pensei com os meus botões: afinal o timbre de voz, não muda assim tanto, ao longo dos anos; na altura desta gravação em 1964 a Cize tinha 23 anos, logo já tinha passado a adolescência, quando eventualmente teria uma voz um pouco mais a cair pelos agudos. Mas… mesmo assim, não ao ponto de ser outra voz… e o andamento da morna, estava acelerado. Neste ponto, convém que eu confesse, a minha memória auditiva é superior, à visual: lembro-me e recordo das pessoas pela voz. Quando me aparecem pessoas que não via há muitos anos e não estou a reconhece-las, costumo dizer: fala um pouco por favor! Então, recordo logo quem é a pessoa.

Acreditem, fiquei intrigado, com esta situação daquele disco, com um som estropiado. Deduzi, deve haver algo de errado na velocidade da gravação. Fiz então um teste com vários outros discos, num e noutro gira-discos. Tudo normal, apenas com este disco da Cize havia essa diferença! Concluí então, que poderia ter havido um problema com a gravação do «original» há muitos, muitos anos. Talvez a gravação tivesse sido realizada, num momento em que a corrente eléctrica, não estivesse de acordo com o «standart», o que originou uma velocidade ligeiramente mais baixa dos motores do gravador! Logo, quando da reprodução com um «standart» normal da corrente eléctrica, a gravação fica ligeiramente acelerada, os sons, ficam mais agudos! A gravação foi depois para a prensagem (sem se corrigir o erro da velocidade) … e os discos ficaram com um defeito.

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Aqueles dois primeiros discos da Cize, julgo/presumo agora, não tiveram o sucesso esperado naquela época, porque a qualidade da gravação terá influenciado nas vendas, aliás, ouvi dizer que restou uma certa quantidade de discos daquela edição, que têm sido vistos/adulados como peças de museu e testemunho de uma época. Até tem havido comentários/especulações sobre o andamento daquela Morna, o que não é verdade, pois, está acelerada devido a um problema técnico. Fiz então uma gravação daquela Morna deste disco em apreço com a velocidade certa e que enviei ao gestor do referido site; esta (nova) gravação** é na verdade a restituição correcta daquilo que foi gravado em condições precárias, numa noite do já longínquo ano de 1964 em casa do Gustavo Silva Albuquerque, na Rua dos Descobrimentos, mais conhecida por Rua de Papa Fria (hoje Aurélio Gonçalves) ali no alto de Nhô Lelo. Contou-me isto em entrevista o próprio Gustavo (já falecido) que o técnico de som da Rádio Barlavento e quem fez a maior parte das gravações naqueles anos de 1955 a 1970.

Recorde-se, quando em meados dos anos 1960 a Cize gravou aquele seu primeiro disco em Mindelo, o cantor Bana também gravou em Dakar o seu primeiro 45 rpm intitulado “Bana - Chante 4 Succés des Iles du Cap-Vert” (c/as músicas: Fervura; Dilinha; Distino Negro; Amdjer Coque e Bafa) um disco com uma grande qualidade de som e de interpretação, cf. a capa do disco: “Acompagné par Luis Morais e son Ensemble (Conjunto Caboverdiano – Dirigido: por Luis Morais)”. Naquela época, uma vaga discos de qualidade superior vindos da Holanda, inundou o mercado cabo-verdiano e destronou a produção local, a partir de gravações precárias realizadas em Mindelo.

Hoje se compreende, talvez sejam estes, alguns dos motivos da ausência da Cize da cena discográfica de 1964 até 1987! Cize ficou em Cabo Verde, não foi à Holanda e naquela época, a música era o império dos homens; a novidade do cantor Bana e do conjunto Voz de Cabo Verde, embalou os cabo-verdianos, bem como a novidade dos instrumentos eléctricos, o que ditou para um segundo plano a música do “pau e corda” que ficou restrita às serenatas e actuações nos bares e noites cabo-verdianas, lá onde se acantonou a Cize durante quase vinte anos. Só muito mais tarde ela teve oportunidade de ser levada a Lisboa, pela OMCV (Organização das Mulheres de Cabo Verde) para gravar um disco e pouco depois apareceu alguém com visão que a levou para a França onde começou a carreira internacional que todos conhecemos.

Finalmente, salta à vista a incrível situação de como a uma «instabilidade» da energia eléctrica no Mindelo dos anos 1960, tenha causado uma traição, que ditou o destino de dois discos, que guardam muitos segredos de uma época e que só viriam a ficar célebres, cerca de 30 anos depois! Como tenho escrito, o sucesso da Cesária Évora, foi uma vingança do destino. Mais uma vez, se cumpriu a máxima: os últimos, serão os primeiros. Agora, estranho, é uma gravação na rotação errada, fazer tanto sucesso! Será, que apenas a força do sucesso da Cize, poderá ser a explicação?

* Link para Cize, morna “Flor di Nha Esperança” – Versão do vídeo com o som errado/acelerado: cvgo.in/1mg

** Link para o novo post da morna “Flor di Nha Esperança” – Versão do vídeo com o som correto: cvgo.in/1mf

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1011 de 14 de Abril de 2021. 

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Autoria:Carlos Filipe Gonçalves,19 abr 2021 9:52

Editado porClaudia Sofia Mota  em  19 abr 2021 16:43

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