Dina

PorCarla Correia,28 jul 2021 11:30

Há gente assim, de olhos abertos para o mundo. Saiu do avião um pouco assoberbada. Não sabia o que esperar. De repente, o mundo tornava-se assustadoramente largo. Mesmo assim seguiu em frente, decidida.

À espera dela, as pessoas com quem iria ficar. A sua nova família, um casal jovem de professores. A recepção foi calorosa, o que amenizou as incertezas dela. Também não eram completos desconhecidos, a dona da casa era também de Cabo Verde, da sua ilha, gente d’morada. O pai dela já havia trabalhado para a família dessa pessoa. Sabia estar em boas mãos.

Há gente assim, que confia.

Levaram-na para casa, ajudaram-na a instalar-se, a tomar um banho para lavar o cansaço daquela longa viagem. Tinha pela primeira vez um quartinho só para si. Deram-lhe um lanche: uma sandes e um copo de leite. Só aí é que as coisas correram mal, porque começou a sentir-se mal-disposta e vomitou. A dona da casa depressa percebe a asneira: dera leite de vaca a uma menina criada com leite de cabra! Fez o possível para lhe acalmar o estômago. A partir dali, tudo foi entrando na rotina.

Há gente assim, que se adapta.

A função inicial dela era apenas tomar conta da bebé enquanto a dona da casa preparava as suas aulas. Mas à medida que se ia acostumando e conhecendo os cantos à casa, ia tomando mais algumas tarefas. A certa altura, já dava conta de tudo sozinha, tornando-se uma ajuda indispensável, porque era despachada e forte. E um pouco ‘bruta’ também, mas era parte do seu charme. À noite, sentava-se na sala a ver a novela, e no intervalo corria para lavar a loiça do jantar. E volta e meia ouvia-se um estilhaço de vidros, ‘lá se foi mais um copo...’. Copos e pratos tinham de ser substituídos com relativa frequência, mas tinha sempre a cozinha arrumada a tempo do genérico da segunda parte.

Há gente assim, que faz por aprender.

Recomeçou a ir à escola. Mais tarde, depois de completar o 9 ano com aulas nocturnas, pôde frequentar um curso de cozinha. Tempos, aliás, gulosos para a família, porque ela vinha para casa treinar as receitas aprendidas. Naquele tempo, era comum chegarem a casa depois de um dia de trabalho ou de escola e serem recebidos com o aroma delicioso de croissants de chocolate acabados de fazer. Já para não falar do frango que ela repetia várias vezes para dominar a técnica de o desossar por completo, deixando-o intacto, para depois o rechear com ovos, chouriço, cenoura e outras delícias. Concluído o curso com distinção, acabou por arranjar trabalho na área. Casou-se, teve dois filhos, vive na sua própria casa. Deixou a casa onde trabalhou tantos anos, mas não a família. É, também, a família dela.

Quem antecipava esta vida cheia àquela menina que chegava a Lisboa, vinda de São Vicente, ainda com o cabelo preso em dois totós redondos?

Há gente assim, que faz pela vida.

Em S.Vicente, no Lameirão, no alto de uma pequena elevação, situava-se uma casa modesta, feita de blocos de cimento. Pouco havia ali à volta, a não ser outras casas semelhantes a alguma distância. Não tinha porta nem janelas, apenas as paredes cinzentas se erguiam na terra batida. Lá dentro, reinava a escuridão mesmo durante o dia, mal se conseguindo enxergar os parcos haveres. Era a casa de senhor Armando e nha Djina. Senhor Armando trabalhava como guarda em várias propriedades, no Morbey, no Monte Verde. Era conhecido pelo elevado número de filhos, suficientes para formar a sua própria equipa de futebol, mas com a particularidade de serem todos da esposa. Não se lhe conheciam fidj d’fora. Nha Djina passou a maior parte da sua vida grávida.

Na rua, o sol castigava. Mas não impedia todas aquelas crianças de brincar, correndo e rindo atrás de uma bola de trapos.

Há gente assim, feliz mesmo com o pouco que tem.

Uma dessas crianças era a Dina.

A Dina, que se levantava todos os dias de madrugada. Deitava à cabeça a lata de leite que o pai tinha ordenhado e ia vender o leite lá pa morada.

A Dina, que com esse dinheiro ia comprar provisões para trazer para casa, regressando com o cesto carregado à cabeça.

A Dina, que fazia todo esse caminho descalça e sem quebra-jejum.

A Dina, que só ia à escola depois de completar todos estes mandados.

A Dina, que quando soube que a irmã mais velha recusou ir para Portugal trabalhar numa casa de família, declarou que iria no lugar da irmã.

A Dina, que bateu o pé e não aceitou um não dos pais.

A Dina, que olhou para o futuro que ali a esperava e quis outra coisa.

A Dina, que deixou a família e entrou num avião para Portugal à procura da chance de uma vida diferente.

A Dina, que quando aterrou em Portugal só tinha 11 anos.

11 anos.

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Autoria:Carla Correia,28 jul 2021 11:30

Editado porSara Almeida  em  29 jul 2021 9:57

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