Imaginemos, pois, que toda essa musicalidade se solta da ilha é pelos ventos levemente levada para outra ilha-irmã… também de vales, mares (a tal água-viva) e de natureza musicada. Nesta ilha há búzios, tambor di tabanka, ferinhu, txabeta e o ritmo próprio de cada um e dos vários eus. E se as musicalidades que se soltam da ilha-verde, para a ilha-búzio, encontrarem-se, juntarem-se e misturaram-se em cores-sons e resultados de emo(sons)…
Aconteceu.
Trouxe a etiqueta Sampadiu, pois o escultor que materializou o descrito, já há muito o procurava… a alma dele traduz esse sentimento. Contou-nos que um dia, quis juntar duas nuances da mesma cultura… a da ilha que adotou como dele – e de ilha de Santiago, que um dia quis conhecer de perto: vivenciar tudo, nela entrar e com ela se fundir. Ary Kueka partiu para Santiago – “a ilha de Pantera” e de “mar e luz” …atrás da Tabanka e do Batuku…talvez, em parte, atrás de si próprio…
Sim, o Sampadiu que acima falamos é Ary – que deixou claro que: “a nossa cultura é uma coisa só”. No disco Sampadiu Ary conseguiu demostrá-lo, musical e poeticamente.
No dia 23, esteve no Auditório Nacional para apresentar o disco.
…Viagem – o espectáculo
Nada é por acaso na música. Numa altura em que se fecharam palcos, num momento onde o próprio comportamento do público diminuiu na procura dos espectáculos - esta sexta-feira a música - essa tal que não nos abandona e zela sempre pelos seus seguidores– fez questão de brindar o tempo em que estivemos mais afastados.
Ary não veio sozinho. Com ele um amigo de longos anos – Titita – o cavaquinho do Cordas do Sol. Desembarcaram na Praia. Com eles traziam uma mistura de “humildade-paixão” para o palco, ”alegria-Sintenton” para com quem se cruzassem e muita musicalma para todos. Aliás, Ary e Titita são muito-todos.
Apresentava-se assim um dueto vindo de uma ilha. Mais…um dueto que acresce vários anos de música, estares e sobretudo algo de valioso que esperava só uma oportunidade para se mostrar. E aconteceu neste espectáculo produzido pela Harmonia.
…Uma palavra para definir o momento? Não, pois foi tudo feito de forma tão natural, humilde, coerente e simples, que fazê-lo seria forçar uma definição: normalidade. Apenas, normalidade. Aconteceu e nós tivemos o privilégio de a ter…
…A ilha – o palco
Tudo era coerente. Começando pelo palco que os acolheu. Despiu-se das cortinas e sobre o cru, escolherem-se luzes, que se misturavam com as cores do barro dos potes e moringos, com a palha de esteiras e balaios. Havia também “mochos” e vasora d´tambla…num cenário imaginado por Betty Gonçalves e inSulada.
Todo o músico necessita de uma banda suporte. Não há quadro sem tela. Não haveria “este” espectáculo sem os comandos criativos de Khaly, o balanço perturbante das linhas de baixo de Vando, a impressionante discrição que enche cada espaço necessário de Enos e a energia inesgotável de Magik.
O espetáculo foi feito de paixão. Seria imperdoável se os registos de imagem não fossem feitos por apaixonados. Há muito que percorrem espectáculos atrás iluminações precisas que reflectem cada instrumento, momentos e segundos captados de forma envolvente. Sim, de um lado para o outro do palco… e até nele, sentados no chão, captam emoções musicais (deles, nossas e dos aristas) …Hélder Paz Monteiro, Jorge Freitas e João Pedro Ramos, só paravam quando ficavam inevitavelmente extasiados com a música, pois também por ela, um dia, se apaixonaram.
…. Os personagens – o tudo!
A produção, já esperando a ligação entre os cantautores Ary e Titita, o fluir dos músicos e assim a alma de ambos-uma, fez questão de transformar tudo numa Rota – a “dun Sampadiu”. Ary e Titita quase que se fundiram na onda musical que trouxe Santo Antão à Praia, uma rota que trouxe as montanhas às montanhas, os tambores aos tambores…do Kola aos da Tabanka, tudo a todos e todos a um. Um só sentido possível – Sampadiu. Mas se a fusão musical marcou, esta tinha raízes bem assentes num reino: a ilha de Santo Antão - que oferecia raízes, mas também liberdade para celebrar e buscar paisagens musicais mil.
Foi o tempo certo. Acredito que tenha havido já quem conhecesse Ary há décadas. Mas para o caso era completamente insignificante. O dia foi o suficiente para ver que todo o tempo em e de Ary. Estava compactado no espectáculo. Foi, sim, normal e “de momento”. Sim meu caro Ary – “Amor e maior di ki temp”.
Se Ary é real-natural, Titita é raiz-energia. Um denominador comum: pureza e alma. Vimos poesia que falava de tempo, tempo que contava estórias, estórias de lugares, lugares onde existe, sim, o amor-alma-música – o arco-íris necessário.
Da ilha não abalarão pela força das vossas raízes. Contudo, que as vossas vozes continuem sempre a ecoar… a ecoar pelo mundo em sotaque-montanha…nun grit d’nos fi…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1027 de 4 de Agosto de 2021.