Já’j pintál
Ca é bô cor… perdê bo valor
Catem sentimente… dor subi… la na céu
Bô sonhe ta f’cá na tchon
Ta vivê costa pa munde
Ta vivê d’um sol quadrode
Já’j abri sê quintál d’cruz
Oh… Nossa Senhora da Luz
Bem dzême porquê já’j ôfrêcê
Criston já perdê sê surrise
Na dor, d’um vida cançode
Dormi na tchon, cubrid d’giada…
Corrêpa cais… ba shpiá vida…
Na shperança… na mar i tchuva
– Já’j Pintál, Letra e Música Jorge Lima Gomes / Djin Djob,
in Single “Amor & Música”, 2021, de Djin Djob
No início, a profissão era muito discriminada, se comparada a outras tantas como, por exemplo, às de curtidores e carniceiros. Ao longo do tempo, foi ficando mais popular e, a partir de 1305, na Inglaterra, quando o Rei Eduardo I decretou que a medida de uma polegada deveria equivaler a três grãos secos de cevada, estabelecendo, assim, a padronização inicial para a fabricação de calçados entre os sapateiros, tornou-se tendência mundial.
Nos dias de hoje, lamentavelmente, a profissão corre o risco de desaparecer, tendo em vista a chegada das grandes indústrias do ramo.
Essa introdução para dizer que, quase por acaso, por mão de um amigo, descobri a Sapataria JArte, uma sapataria no Mindelo onde se faz consertos e forração e, o que é mais instigante, todos os tipos e tamanhos de sapatos. Saí de lá fascinado, com esse lugar tão emblemático, bem como com a encomenda de um par de chinelas de couro, bompabocêdescansápê, e o compromisso de feitura de um par de sapatos para quando houver material.
Ser sapateiro é uma tradição de família que vem de diazá na munde e tocador de violão também, conta Jorge Lima Gomes, melhor, Jorge Sapatêr, 52 anos, nascido e criado na Soncente.
O avô, Lela Bans, que emigrou para a Argentina e por lá morreu, chegou a ter uma pequena fábrica de sapatos com treze empregados. Já o pai, Raúl Sapatêr, jogador do Amarante, trabalhou na Fábrica de Sapatos dos irmãos Pereira onde desenvolveu a sua arte. Foi ele quem confeccionou o primeiro par de sapatos para o Bana, nos finais dos anos 50, quando este ia viajar para o estrangeiro. O Jorge herdou a profissão e os dons do pai. Sapateiro exímio – o pai, sim, esse é que era bom, diz na sua modéstia – e tocador de violão, trabalhou na Fábrica de Calçados SOCAL, unidade fabril que marcou uma época em São Vicente, tendo fechado as portas em 1992. Na sequência, Jorge transita para a Fábrica de Confecções GROWELA, de donos portugueses. Sentindo-se explorado, pega no seu violão e compõe Já’j Pintál, gravado nos EUA pelo músico cabo-verdiano Djin Djob. As filhas, Jessica e Jecileida, de 22 e 18 anos respectivamente, seguem as pisadas do pai. Estudantes universitárias, são também sapateiras na Sapataria JArte, oficina localizada na rua transversal à Rua do Tribunal, coincidentemente muito perto da antiga Fábrica de Calçados dos irmãos Pereira.
De se comemorar que ainda exista em São Vicente – ilha que, aliás, sempre teve tradição e grandes artesãos no fabrico e na reparação de sapatos – uma Sapataria JArte, para preservar este ofício que vem, sistematicamente, desaparecendo por falta de incentivo. Fica o desafio aos jovens, para que procurem conhecer e dar continuidade a essa bela arte!
Ao despedir-me, Jorge Sapatêr, compensou-me com Vint Escud, uma coladeira de sua autoria:
Ranjame vint escud
Pam t’má um grogue
Nha sangue t’koiôde
Nhas mon ti ta tremé
Nha corpe ti ta tremé
Casta de coza ê êss
Logue k’um ced dêss
Mi te spiá trabôi
Pam pode t’má um café
Nho Mateus d’zé
Grogue ê tê peskôss
S’el t’môbe cabeça
Grogue pol na sê lugar
Grogue ê um problema
Grogue ê um dilema
- Vint Escud, Letra e Música Jorge Lima Gomes / Helder “Cipi” Cipriano
in Álbum “Solera D’Nha Vida”, 2018, de Rosa Mestre
- Ó Nice, por esta não esperavas, disse-me o meu amigo com uma palmada nas costas.
Simplesmente fantástico!
_________________________________________________________
Entre as letras, um porto de abrigo
“O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto”
– Conceição Evaristo, escritora e poeta brasileira,
in Cadernos Negros, vol. 15
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1033 de 15 de Setembro de 2021.