Nunca imaginei que um navio com a envergadura de “D. João de Castro” tivesse alguma vez aportado Janela, quanto mais ter-se encalhado na praia do Penedo. O navio, conhecido pela gente de Janela como “Jom de Castro”, estava afecto ao Instituto Hidrográfico Português, tendo prestado serviço nos Açores, entre 1941 e 1946, e em Cabo Verde, entre 1945 e 1947, ano do fatídico acidente que conduziu à sua perda total.
“D. João de Castro” foi o primeiro navio a ser construído nos estaleiros do Alfeite, em Lisboa, entre Maio de 1939 e Fevereiro de 1941, tendo sido adicionado aos efectivos da Armada. Foi equipado com sondadores acústicos e outro material necessário à realização de levantamentos hidrográficos. Tinha o comprimento de 66,5 metros, boca de 9,8 metros, calado de 2,80 metros, e deslocava-se a uma velocidade de 13,5 nós. A guarnição inicial era de 66 homens.
Inicialmente ao serviço da Missão Hidrográfica das Ilhas Adjacentes, efectuou os levantamentos hidrográficos das baías de Angra do Heroísmo e do Faial, a sondagem na área da ilha Graciosa, e a sinalização da costa da ilha Terceira e do Faial, incluindo o porto da Horta.
O navio ficou famoso por ter permitido a localização de uma plataforma rochosa, com uma profundidade mínima de 14 m, entre a ilha de S. Miguel e a ilha Terceira, nos Açores. Tratava-se de uma lendária ilha com cerca de cinco quilómetros de diâmetro, de configuração circular, que resultara de um sismo ocorrido nos finais de 1720 e que, devido a erosão, foi dada entretanto como desaparecida.
A partir de Julho de 1945, com a criação da Missão Hidrográfica de Cabo Verde, o navio deu apoio ao levantamento hidrográfico realizado nas ilhas de Santo Antão, S. Vicente, Santa Luzia, Boavista e Santiago.
Grandes descobertas e grandes invenções da humanidade foram obra do acaso. São exemplos disso a descoberta da América, a descoberta da dinamite, da penicilina, do micro-ondas, do viagra, e tantas outras. A descoberta da história do encalhe de “Jom de Castro” foi também, para mim, obra do acaso. Passando em frente à casa de Ti Ntone d’ Ulimpa, e Cacá Canjinha, convidado pelos dois a entrar, não resisti ao meu velho mau hábito de xeretar em álbum d’gente, para apreciar fotografias antigas, e adivinhar, ou perguntar, quem é este, e este?! Quando vi a fotografia, fiquei boquiaberto. Reconheci imediatamente os coqueiros do Penedo, e o caminho para a Pontinha, mas aquele “nevezôn” aí atravessado na praia, que nem uma baleia morta, era uma completa surpresa para mim.
Nunca ouvira a mínima referência a um navio encalhado em Janela, ainda mais um navio com essa dimensão. Mas como é possível que eu, tendo frequentado o Penedo quando criança, tendo sempre convivido em S. Vicente com gente de Janela, nunca tivesse ouvido a mínima referência a um encalhe em Janela?! Não me lembro de ter visto nenhuma ponta de chapa espreitando de dentro do mar, aí no Penedo. Devem ter desmantelado aquilo quase tão completamente, que não ficou nada à vista, embora se diga que lá no fundo ainda existam alguns vestígios.
À minha pergunta, que navio é este, Cacá e Ti Ntone responderam prontamente: “Jom de Castro!” De regresso a casa, passei pela casa de Ti Martin, e Nha Guimar, que também são de Janela. Perguntei-lhes se já tinham ouvido falar de algum navio que tivesse encalhado no Penedo, ao que responderam sem hesitar: “Jom de Castro”! Parece que só eu não conhecia a estória.
Ti Pól (Paulo d’Nininha) lembra-se perfeitamente do acontecimento. Diz que era garotinho, mas que já era entendidinho, tanto que, mais tarde passaria a ir lavar “o café” ao pai, que trabalhou no desmantelamento do navio. Era de dia, o navio vinha lá das bandas de Ponta do Sol; adentrou tanto na baía que, quando quis sair, enfiou a proa numa laja que existe lá no fundo. Foi um ruído tão estridente, o ranger do casco a raspar no lajedo, que as pessoas de Fajã desceram para a bordeira, para ir ver o que se passava lá em baixo. Depois o navio soltou buzina, como que a pedir socorro. Segundo Ti Pól, o navio ficou tão próximo de terra que, aquando das operações de desmantelamento, no início, Lela de Leandro (Lela Catchupada), jovem alto e forte, lavava o Sr. Alhinho ao costado do navio, no “cachassinho”. Mais tarde o Sr. Alhinho construiria um engenho, com um cabo e uma espécie de cesto, tipo teleférico, a que chamavam “vai-vem”, que permitia estabelecer a ligação terra/bordo, no transporte de pessoas e materiais. Essa solução não era novidade, pois eu soube que ele já a havia utilizado em Canjana.
Causou-me a maior estranheza que um navio hidrográfico, com equipamentos sofisticados para medir a profundidade, cuja missão era trabalhar para garantir a segurança marítima, fosse encalhar assim, de forma inglória, e sem uma justificação plausível, na praia do Penedo. Ouvi a teoria de que o capitão, que já antes estivera em S. Antão, se teria encantado com uma beldade de Janela. Agora que estava de volta, queria exibir-se para a apaixonada, entrando com o navio na baía mais do que devia. Já para o Sr. Valdemar (Val de Finanças, filho de Nho Tiôfe), o navio ia de S. Vicente, e entrou na baía do Penedo sobre máquinas, para desembarcar alguém importante da localidade, que levava à boleia. O mar do Penedo é revolteado, sabias?! O mar embraveceu repentinamente, o navio tentou manobrar para sair, mas já não conseguiu, ficando preso num lajedo lá no fundo. Conta o Sr. Val, que viveu em Janela ainda criança, com o pai, Sr. Teófilo do Rosário, ido de S. Vicente como membro da equipa de desmantelamento do navio, e com o primo, Teófilo Menezes, também ainda criança. Na imprensa portuguesa da época foi relatado que, “O desastre verificou-se quando o navio procedia a trabalhos da sua especialidade, que na generalidade são muito arriscados”. Mas não se tentou explicar, minimamente, o que terá acontecido.
Tornou-se para mim um desafio descobrir a razão por que terá tido tão pouco destaque na boca do povo o encalhe de um navio com a importância de “D. João de Castro”, a ponto de isso nunca antes ter chegado ao meu conhecimento. Eu já tinha ouvido falar do encalhe de um navio em Praia Formosa, durante a fome de 1947, que ficou famoso por ter escapado muita gente de morrer de fome. Será que isso tinha a ver com a pouca importância dada ao encalhe no Penedo? Quando é que tinha acontecido esse encalhe, e em que medida terá influenciado no eclipsar do encalhe no Penedo? Foi o que resolvi pesquisar, para melhor compreender.
O mistério foi facilmente desvendado, graças às facilidades que a internet nos oferece hoje em dia. Pesquisando na internet, descobri que, na madrugada de 25 de Novembro de 1947, por volta das 05H49, menos de dois meses após o encalhe do navio “D. João de Castro”, encalhava em Canjana, um pouco acima de Praia Formosa, um navio americano procedente de Rosário, na Argentina, com destino a Gotenburg, na Suécia, carregado de milho vermelho, conhecido entre nós por milho pantchêra.
O encalhe do navio John E. Schemeltzer **, popularmente conhecido em Santo Antão por “John”, foi tão providencial que levou muita gente a especular (infundadamente, claro) que o capitão teria encalhado o navio intencionalmente, para salvar o povo de morrer de fome, face à recusa de Salazar em permitir que o milho fosse descarregado em Cabo Verde. O navio, que inicialmente ficara preso apenas pela proa, podia ainda ser desencalhado. Mas, na noite em que se acredita que se aguardava a chegada de rebocador para o efeito, uma grande vaga o atravessou sobre os lajedos, pondo fim, definitivamente, a qualquer esperança de desencalhe. Isso reforçou nas pessoas a convicção de que Deus queria que o milho ficasse em Santo Antão, para salvar o povo de morrer de fome. Famintos de todos os cantos da ilha convergiram para Canjana. Dos que não morreram de fraqueza durante a longa e penosa jornada, e conseguiram lá chegar, muitos morreriam arfados, com o milho inchado de água de mar fermentado no estômago; outros, pela disenteria provocada pelo consumo de milho já podre. Mas muitos, que de outra forma não o teriam conseguido, sobreviveram. Grassava por essa altura, em todo o arquipélago, a mais terrível fome de que se tem memória. Morreu tanta gente, e houve tamanha deslocação das populações de um lado para outro, que se tornou impossível a quantificação exacta do número de mortos.
Milho de “John” foi transportado para outros cantos da ilha, por pessoas que o foram aí arranjar, para seu consumo, troca ou venda, percorrendo enormes distâncias, a pé ou de bote, como é o caso dos marinheiros de Janela. Como é compreensível, o encalhe de “John” praticamente eclipsou o encalhe de “Jom de Castro”. Este último não era um navio cargueiro e teria a bordo apenas as provisões necessárias à alimentação da sua tripulação durante alguns dias. Portanto não ajudou ninguém a escapar da fome. O encalhe do “John”, esse sim, apesar de distante, ajudou gente de Janela a sobreviver, ou, pelo menos, a mitigar a fome. Os marinheiros e mergulhadores de Janela desempenharam um papel importante na recuperação de milho do fundo do mar de Canjana, e no seu transporte para Janela.
Naturalmente que o encalhe no Penedo teve impacto positivo na vida da comunidade, embora não imediatamente. Desde logo pela quebra da rotina característica dos lugares pequenos e isolados, com a movimentação de muita gente de fora. Inicialmente a tripulação do navio, e posteriormente a movimentação de gente na tentativa de o salvar; depois, o aumento da população, ainda que provisório, com a presença do Sr. Alhinho (e família) e da sua equipa de desmantelamento, levada de S. Vicente, incluindo alguns elementos vindos de Lisboa.
Para além do aumento da actividade económica que isso gera, há ainda que ter em conta os empregos locais que os trabalhos de desmantelamento propiciaram. Diz-se que havia na equipa do Sr. Alhinho um português que bebia diariamente um litro de grogue. Observa o Sr. Valdemar que, durante esse tempo registou-se em Janela a presença quase constante de navios, num S. Vicente vai, Janela vem, primeiro Gilica, e depois Bita, no transporte das chapas do navio.
Dada a notícia do encalhe, foram tomadas algumas medidas na tentativa de resgate do navio, embora desde o início se tivesse ficado com a consciência de que a situação era difícil. Foi enviado para o local um rebocador, proveniente da Guiné, e uma equipa de especialistas, proveniente de Lisboa. Mas, no dia 19 de Outubro, 17 dias depois do encalhe, dava-se o navio como definitivamente perdido. Procedeu-se à recolha do maior número possível de salvados. A tripulação, que na altura era composta por 30 pessoas, foi transferida para S. Vicente em rebocadores, e posteriormente repatriada para Lisboa. “D. João de Castro” continuaria ainda por um bom tempo jazendo na praia do Penedo, até ser repatriado, também ele para Lisboa, cortado aos pedaços, às mãos da equipa do Sr. Alhinho, numa operação que só terá terminado no primeiro semestre de 1952.
As operações de desmantelamento estavam a cargo da firma Virgílio Correia, proprietária dos navios Bita e Gilica, utilizados nas operações de transporte. O Sr. Alhinho era o representante da empresa no terreno, e dirigente de todas as operações. Deixou marcas físicas em Janela, como por exemplo a instalação do guindaste no embarcadouro, que serviu para o embarque das chapas resultantes do desmantelamento do navio , e terá instalado outro no Paul. Infelizmente, já não existe nenhum dos dois.
O Sr. Alhinho, Alexandre Maria Alhinho, de seu nome completo, foi a figura central na história dos dois encalhes, levando e trazendo gente de um lado para o outro, e terá contribuído para entrelaçar as duas histórias, a ponto de as pessoas se confundirem sobre qual dos encalhes terá ocorrido em primeiro lugar. Na verdade, apesar de o encalhe em Janela ter ocorrido em primeiro lugar, o Sr. Alhinho foi para aí só depois de terminar a operação de transbordo do milho em Canjana. Concluída a operação de desmantelamento de “João de Castro”, regressaria a S. Vicente, com a equipa de trabalhadores que tinha levado para Janela, reforçada com novos trabalhadores aí contratados. De S. Vicente partiriam de novo para Canjana, agora para o desmantelamento de “John”. Em Julho de 1952, uma comitiva de esposas e filhos dos trabalhadores, que não tinham ido para S. Vicente de barco, sairia de Janela para Canjana, a pé, tendo aí chegado antes dos que iriam de S. Vicente, segundo o Sr. Valdemar, um dos principais narradores desta estória.
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*Adaptado - Texto originalmente publicado no Facebok, quatro anos atrás, em 02/10/2017, no 70º aniversário do acontecimento.
** - Ver crónica “John”, publicada no Expresso das Ilhas em 25/11/2020.