A 10 de Junho de 1995, a pretexto da celebração do ‘Dia da Raça’ e da vitória do Sporting numa prova futebolística, um grupo de etno-nacionalistas portugueses saiu às ruas do Bairro Alto, popular local de diversão nocturna em Lisboa, com o único propósito de espancar pessoas negras. O balanço: onze vítimas, uma delas, mortal, de seu nome Alcindo Monteiro.
Nascido no Mindelo, Alcindo vivia no Barreiro, margem sul do Tejo. 27 anos depois da sua morte, continua a ser o rosto-ícone de todas as vítimas de racismo, num país que não assume e não lida com os seus próprios problemas.
Da necessidade de confrontar Portugal consigo próprio, nasceu “Alcindo”, filme documental do realizador Miguel Dores, projecto que resultou de uma dissertação de mestrado em Antropologia Visual e que estreou em Outubro de 2021, no Doclisboa.
O envolvimento de Miguel com a luta anti-racista e antifascista remonta à juventude, mas foi em 2019 que percebeu a urgência de gravar um documentário que recuperasse a memória de uma noite longa para, através dela, discutir o presente do racismo no país dos “brandos costumes”.
“O ‘clique’ dá-se quando eu e muitos de nós vimos, em 2019, uma grande reportagem do Mário Machado [neonazi português e um dos condenados no processo Alcindo Monteiro], em que inclusivamente se refere a este caso. É o ano em que se elege o André Ventura [eleito deputado pelo partido de extrema-direita, Chega], o ano em que se cria o movimento Zero [nas forças policiais]. Vemos a ascensão de um discurso protofascista, fascista, neofascista, podemos usar várias terminologias. Há ideias fascizantes a serem higienizadas na comunicação social. Precisamente nesse momento, quando o Mário Machado vai à televisão e anunciam a manifestação que depois fizeram – ‘o Salazar faz muita falta’ – foi quando decidimos que falar sobre o caso Alcindo Monteiro era falar sobre todo este presente”, comenta.
“Alcindo” assume os acontecimentos do Bairro Alto não como um acaso, um episódio isolado e espontâneo, mas como resultado de um processo social mais complexo e profundo, marcado por violência racial e a sua negação.
“Conseguimos criar um discurso de multirracialismo e de Portugal como país herdeiro duma colonização de proximidade, como forma de justificação da continuidade da guerra colonial e da continuidade de permanência portuguesa nas colónias, num período em que já todos os movimentos de libertação tinham feito as potências europeias abandonar o território africano”, comenta Miguel Dores.
“Esse discurso é reconstruído em período pós-colonial e perpassa todas as organizações, desde a CPLP ao Instituto Camões, a toda uma institucionalidade portuguesa, que tende a tratar qualquer episódio de racismo que aconteça em Portugal, dos mais violentos aos mais contínuos, como uma coisa psicopatológica, excepcional, que não tem nada a ver com Portugal. Um ‘lamentável episódio’ de um país que não tem nada a ver com isso, quando os casos continuam a acontecer e a arrastar-se”, acrescenta.
A pesquisa para o filme juntou testemunhos de familiares e amigos de Alcindo Monteiro, depoimentos sobre o racismo dos anos 90 aos dias de hoje e arquivos audiovisuais, recortes de imprensa e outros documentos. Sem recorrer a um tom persecutório, preocupa-se em ser uma homenagem aos que sucumbiram e àqueles que resistem.
Na viagem que faz entre o passado e o presente, “Alcindo” não passa ao lado dos acontecimentos envolvendo Kuku, Giovani, Cláudia Simões, Bruno Candé ou tantos outros que, em maior ou menor grau, também tiveram eco em Cabo Verde.
“Houve uma sequência de casos que nos obrigou a perseguir aquilo que estava a acontecer. Esse presente onde nós vemos a questão da violência civil contra pessoas racializadas. Essa violência não pode deixar de ser articulada com o momento em que vemos que existem politizações e partidarizações desta questão da invenção de inimigos públicos racializados, sejam ciganos, sejam negros, sejam emigrantes, no geral”, realça o realizador.
Na semana do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, “Alcindo” teve três exibições em São Vicente. Foi a estreia do documentário em Cabo Verde, com projecções no Centro Cultural do Mindelo, Universidade de Cabo Verde e ao ar livre, na Bela Vista, bairro da família Monteiro.
“Para nós, este filme é sobre um momento traumático e sobre uma estrutura de dominação e de poder. Queremos discuti-lo com as pessoas que estão ligadas a essa história. Esta história articula países, momentos e contextos sociais diferentes e nós queremos estar em todos eles”, conclui Miguel Dores, destacando a importância de poder mostrar a longa-metragem à família de Alcindo Monteiro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1072 de 15 de Junho de 2022.