Ensino Universitário Público: marcos cronológicos 1974 • 2000 • 2006 • 2019

PorAdriana Carvalho,13 jul 2021 9:33

Com esta crónica fecho o ciclo dos [Re]cortes no tempo, iniciado no dia 11 de janeiro de 2017.

I

Em maio de 1974, dias após a vitória da “revolução dos cravos” em Portugal, ilustres cabo-verdianos residentes em Luanda manifestaram “a sua inteira adesão à arrancada no sentido de reabilitar Portugal aos olhos do mundo livre e de dignificar os cidadãos portugueses à luz dos direitos do Homem” (Presença Cabo-verdiana, maio 1974, p. 10). Em manifesto enviado à Junta de Salvação Nacional1, exigiram, entre outras reivindicações2, “que seja considerada a criação da Universidade de Cabo Verde, de forma a começar a funcionar já no próximo ano lectivo, em atenção à avidez cultural dos cabo-verdianos e ao alto serviço prestado a Portugal pela cultura cabo-verdiana”.

Segundo José Vicente Lopes3, que nos deu esta informação, a ideia de uma universidade de Cabo Verde é antiga, sendo essa a primeira referência pública ao assunto.

A perceção do ensino universitário como elemento de soberania e desenvolvimento não foi, certamente, alheia ao facto de um dos promotores do manifesto ter sido o cientista e professor universitário Humberto Duarte Fonseca.4

II

Vinte e seis anos depois dessa petição “urgente”, a Universidade de Cabo Verde foi criada por Resolução do Governo n.º 53, de 7 de agosto de 2000. É definida como “instituição federadora das instituições superiores já criadas, geradora de sinergias e capaz de resolver a topologia de instalação dificultada pelo factor arquipelágico, de participar na revolução digital e de garantir a todos a igual oportunidade de apreensão, criação e transmissão do saber”.

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A Semana, 1 de setembro de 2000.

A criação da universidade pública, que deveria começar a funcionar no ano letivo 2001-2002, “teve o vivo acolhimento de João Manuel Varela, professor universitário e único neuro-cirurgião cabo-verdiano”, que declarou que o “governo poderá passar à história como aquele que teve a coragem política de dar este importante passo para o surgimento de uma universidade em Cabo Verde” (idem).

Nem a universidade passou do papel nem o governo passou à história por esse feito.

III

Após esse ato legislativo fracassado, o poder político, as instituições superiores de formação e as autoridades académicas retomaram o debate sobre o modelo para a universidade pública. Foi-se adiando a sua instalação por razões, interpretadas por alguns, como indecisões políticas e, por outros, como manifestações de prudência quanto à sustentabilidade institucional.

Finalmente, em 20 de novembro de 2006, consumou-se a criação da Universidade de Cabo Verde pelo Decreto-lei n.º 53. A Universidade de Cabo Verde apresenta-se “como uma instituição de ensino superior público com a missão de capacitar a nação cabo-verdiana, de modo a vencer os grandes desafios de modernização e desenvolvimento do país”.

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Horizonte, 23 de novembro de 2006.

No seu primeiro discurso como reitor, o Doutor António Correia e Silva reconheceu que “as pedras que se vão colocando na construção da Universidade Pública de Cabo Verde foram trazidas por muita gente e por várias gerações”5.

IV

Em finais de 2019, o governo deu corpo à ideia de se “construir uma valência de ensino superior público na Zona Económica Especial de Economia Marítima em S. Vicente, pois Cabo Verde só pode tirar proveito de todo o potencial marítimo e da economia ligada ao mar, como a pesca, o transporte, a logística, a energia, a biotecnologia e/ou o turismo, se houver uma estratégia assente no conhecimento” (Decreto-Lei n.º 53 de 5 de dezembro de 2019, preâmbulo).

Assim nasceu a Universidade Técnica do Atlântico, que herdou “a experiência e os recursos do Departamento de Engenharias e Ciências do Mar da Universidade de Cabo Verde”. A nova instituição universitária “é parte integrante do Campus do Mar6, concebido como o braço da formação e investigação do projecto da zona especial de economia marítima”.

A Doutora Raffaella Gozzelino, na cerimónia de posse de reitora da Universidade Técnica do Atlântico, anunciou “o começo de uma nova era de internacionalização que permitirá a Cabo Verde aprender com os países mais desenvolvidos, alcançar a excelência de que tanto se precisa para ter sucesso no aproveitamento económico, planificação, gerenciamento, valorização da formação técnica profissional, do ensino superior e da investigação científica tecnológica”7.

Uma nova era

De facto, em finais de 2019, começou “uma nova era” para o ensino universitário público, que passou a ser constituído por duas instituições universitárias, uma com sede na Praia e outra com sede em Mindelo.

Perspetiva-se um futuro promissor para o ensino superior no Arquipélago. Mas, para esse futuro acontecer, deverá ser concedida centralidade à educação universitária nas políticas públicas, propiciando-se, assim, com o envolvimento da comunidade científica e da cidadania, um novo rumo para o ensino superior, que pressupõe, inevitavelmente, a modernização das instituições que o integram num quadro de referência internacional.

Notas finais:

1. Ao rever o texto reparei que o número 53 identifica todos os diplomas fundacionais de universidades públicas em Cabo Verde (2000, 2006, 2019). Registo apenas um facto curioso sem dele retirar qualquer significado interpretativo.

2. Com esta crónica fecho o ciclo dos [Re]cortes no tempo, iniciado no dia 11 de janeiro de 2017. Sem ter cumprido a periodicidade mensal anunciada, ao longo de 40 crónicas, recuperei de arquivos e memórias lapsos da história da educação em Cabo Verde, integrei-os em narrativas na observância de que “os factos são sagrados, as opiniões livres”8, tentando, por vezes, içar pontes passado - presente. Um bem-haja a todos os que leram, [re]cortaram e… gostaram.

________________________________________________

1 A Junta de Salvação Nacional foi o órgão de governo que assegurou o poder em Portugal, após a vitória do Movimento das Forças Armadas em 25 de abril de 1974 e até à constituição do I Governo Provisório em 16 de maio de 1974.

2 O Manifesto de Luanda continha onze reivindicações, sendo a terceira referente à criação de uma Universidade em Cabo Verde. As outras reivindicações reportam-se, entre outros assuntos, à extinção da polícia política portuguesa PIDE/DGS, da organização da juventude Mocidade Portuguesa e do jornal «O Arquipélago», sendo ainda exigido “que seja facilitada a divulgação do programa e das ideias dos cabo-verdianos que lideram movimentos no exterior, nomeadamente o PAIGC”.

3 José Vicente Lopes divulgou o Manifesto publicado na Presença Cabo-verdiana na notícia “Criada Universidade de Cabo Verde”, A Semana, 1 setembro de 2000, p. 5.

4 Outros subscritores do Manifesto, além de Humberto Fonseca: Yolanda Morazzo, Edgar Gomes Santos, Alcides dos Santos Fialho, Alfredo Furtado de Azevedo, Manuel Monteiro Duarte, Antero Barros, Filinto Elíseo de Meneses, Francisco Moreira Correia, Alfredo Avelino A. C. e Sousa e Carlos Victor F. R. Monteiro.

5 Horizonte, 23 de novembro de 2006.

6 O Campus do Mar, em Mindelo, é constituído pelas seguintes instituições: Universidade Técnica do Atlântico, Instituto do Mar e Escola do Mar.

7 Expresso das Ilhas, 20 de agosto de 2020 (ed. digital).

8 Máxima do jornalista Anthony Oliver Scott, citado em Carr, E. H. (1961). What is History. London: Macmillan.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1023 de 7 de Julho de 2021.

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Autoria:Adriana Carvalho,13 jul 2021 9:33

Editado porAndre Amaral  em  26 abr 2022 23:21

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