Toy Vieira e o Monte Cara

PorCarla Correia,18 nov 2022 9:13

​No Verão passado, a banda Re-imaginar Monte Cara tomou de assalto os palcos portugueses. Uma banda que, reunindo a fina flor das antigas noites lisboetas da Rua do Sol ao Rato, reinventou velhos clássicos, pondo Portugal a dançar.

Com direção musical de Toy Vieira, e Leonel Almeida, Zé António, Manuel Paris, Toy Paris e Cau Paris, para além das participações de Tito Paris, Dany Silva, Rui Veloso e Dino d’Santiago, esta iniciativa do Alcides Nascimento trouxe-me, e com certeza a tantas outras pessoas também, gratas recordações.

Comecei a sair à noite ainda adolescente, entre os 14 e os 15 anos, mais nova do que seria normal na altura. Beneficiava do facto da minha tia, um pouco mais velha que eu e estudante na Universidade do Porto, passar todas as férias escolares e alguns fins de semana lá em casa, fazendo de mim sua fiel companheira de paródias.

Foi com ela que comecei a frequentar alguns espaços em Lisboa. Por vezes íamos a um bar no Bairro Alto, Clave di Nôs, ou ao Koknot, na Rua de S. Bento. Mas quase sempre o destino era a Rua do Sol ao Rato, onde ficava o famoso Monte Cara. Ou, como era vulgarmente conhecido, o Bana.

A escolha era óbvia, por várias razões. Em primeiro lugar porque o nosso amigo Toy Vieira tocava ali. Também porque o espaço era amplo e agradável, animado e seguro, e a música, sob a batuta do Paulino Vieira, era de elevadíssima qualidade.

É preciso não esquecer que o Bana foi a primeira casa lisboeta dedicada à música cabo-verdiana em particular, e do mundo lusófono em geral. Era ponto de encontro para artistas das mais variadas nacionalidades, e passagem obrigatória para artistas em trânsito. Era normal encontrar lá artistas portugueses, angolanos, moçambicanos ou guineenses, que subiam ao palco com os músicos residentes. Naquele espaço, elevou-se bem alto a fasquia da qualidade da música lusófona e pintaram-se as cores com que ainda hoje se rege a noite lisboeta.

Tinha o secreto desejo de lá poder cantar, mas era na altura muito nova e demasiado tímida para pedir que me deixassem subir ao palco. Ainda assim, todo aquele ambiente foi, para mim, uma verdadeira escola que marcou a minha formação musical, e muitos dos caminhos que vim mais tarde a tomar. Entre uma ou outra dança e a fofoquice com a minha tia, dedicava-me a observar e absorver tudo o que podia. Não sem algumas distrações.

A mais curiosa era um jovem que estava lá sempre. Posicionava-se estrategicamente a um ou dois metros de distância de mim, de onde ficava a observar-me toda a noite. Se eu me sentasse, ele sentava-se por perto, se me encostasse a uma parede, ele encostava-se à parede mais próxima. Em todo aquele tempo, nunca foi inconveniente, a não ser por essa, embora respeitosa, insistente, proximidade. Em boa verdade, nunca me incomodou ou me dirigiu a palavra, ainda hoje não faço ideia quem seja. O facto não passou despercebido à minha tia, mindelense de gema. Hoje em dia, talvez o apelidasse de stalker, mas naquela altura, limitava-se a anunciar alto e bom som: oiá, bô sombra ja tchegá!

Mas importante mesmo era a música e as amizades que por ali cresciam.

O Toy Vieira foi sempre um caso à parte. Uma amizade que extravasou para fora do Bana, para a vida, e se mantém intacta até hoje, graças à sua bondade de carácter e à paciência infindável que sempre teve para comigo. Quando a minha tia estava cá, passeávamos ou íamos ao cinema, ele chegou até a ir lá a casa algumas vezes. Gostava da presença benevolente dele, e por isso, de vez em quando, saía da escola e ia bater-lhe à porta de casa, cansal cabeça um gsinha. Em retrospectiva, nunca equacionei que eles tinham tocado a noite toda, e que quando eu chegava ainda estavam a descansar. Nem sequer que era uma miúda a entrar numa casa de homens. Toy, sempre com a sua calma e o seu sorriso, levantava-se, arranjava-se rapidamente e saía comigo. Íamos passeando e conversando até à hora que me levava a casa, sem nunca me ter dito uma palavra sobre o quão inconveniente estava, provavelmente, a ser. Soube anos mais tarde que houve quem me tivesse querido conquistar, e que ele não permitiu que esses seus amigos, mais velhos que eu, se aproximassem de mim. Nas palavras dele, eu era um mnininha dret, e por isso tinha de me devolver aos meus pais tal como me encontrava. Eu confiava nele sem pestanejar, e ele cuidava de mim sem eu saber.

Por essa altura, fizeram uma edição do «Todo o Mundo Canta» na Associação Caboverdiana, e a minha mãe inscreveu-me. O vencedor iria representar a diáspora a Cabo-Verde. Não fazia na altura a menor ideia de como as coisas funcionavam, por isso apenas escolhi as músicas e ensaiei frente ao espelho. Mas ao chegar, percebi que os outros concorrentes tinham instrumentais, ou músicos para os acompanhar. Liguei aflita para o Toy, pedindo-lhe ajuda. Em 20 minutos ele apareceu com a viola, e em 10 minutos ensaiámos duas músicas. E de repente, uma miúda teve um acompanhamento de luxo: também o Armando Tito por acaso apareceu e juntou-se ao Toy para me acompanhar.

Não ganhei o concurso, mas a Celina Pereira, que fazia parte do júri, convenceu os seus colegas a atribuir-me um «Prémio Revelação» e adotou-me desde então, passando a chamar-me de afilhada. A Titina, que assistia ao concurso, falou comigo, aconselhou-me e incentivou-me a cantar mais. Um dia em que tudo podia ter corrido mal, acabou por ser uma tarde memorável, uma experiência marcante graças à generosidade destes amigos. A gratidão e o carinho que tenho por cada um deles é infinita.

Tive oportunidade de trabalhar com cada um deles mais algumas vezes ao longo dos anos. Há escassos meses, estive de novo sob a direção do Toy, quando participei nos coros do EP da Banda Monte Cara. É verdade que nunca subi ao palco do Bana, mas ao participar neste trabalho sinto que se cumpriu um ciclo. E reparo que a vida é circular.

Termino estas memórias dizendo que o Toy Vieira completa este ano 40 anos de carreira. Temos tido, todos, ao longo dos anos, o privilégio de testemunhar o seu talento e criatividade, ouvindo as suas criações que tocam cada um de nós e refletem o seu enorme coração.

Desafio cada um de vós, leitores, que ainda não o tenham feito, a juntarem-se a mim para lhe dar os merecidos Parabéns!

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Autoria:Carla Correia,18 nov 2022 9:13

Editado porSara Almeida  em  18 nov 2022 19:44

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