Hoje, ouvia Nina Simone pela milésima… e primeira vez – o ser musical que provavelmente mais admiro. Se pudesse traduzir graficamente seria uma linha constante. Creio que todos os que gostam de Nina também assim o sentirão, digo eu.
Quando os músicos são sempre eles próprios, prendem-nos, absorvem-nos e vão mais longe: quase que nos mostram que a música só faz sentido para partilha de emoções. Numa biografia, Nina terá dito que quando está em palco só lhe interessa o partilhar o que realmente sente – o emocional do momento – da alegria à tristeza. Aliás, a filha terá confessado que o grande problema da mãe foi ter sido sempre 100% ela própria.
Liberdade – a palavra que permitiu que a cantora e compositora pudesse assim o ser. Depois de um célebre espetáculo, perguntaram-lhe o que é a liberdade, ao que ela responde: “não sei definir a liberdade, é algo que se sente, sendo assim impossível descrever” … apesar de mais tarde ter confessado que dois momentos traduzem a liberdade para ela: para além do palco – os primeiros 3 anos de vivência com a filha e o período em que viveu na Libéria.
Nina tem várias fases, várias músicas para vários estádios da vida. Talvez isso a torne coerentemente preciosa. Começa em criança por aprender música clássica e os compositores de renome do piano. Depois de anos de aprendizagem para os exames de uma das mais famosas escolas dos EUA, terá sido aprovada…porém recusada a sua inscrição. Vivíamos os anos do racismo assumido americano da década de 50. Desapontada muda de cidade e começa a carreira em casas de música. Rapidamente ganha nome, ganha palcos, ganha carreira e prestígio. O piano era o seu parceiro e o palco, seu espaço de liberdade. Contudo, o que continua a ver a acontecer com os negros americanos não a deixa em zona de conforto e começa a usar a música como facilitadora de mensagens. Torna-se claramente “a voz musical dos direitos civis”, entrando aqui em nova fase da sua carreira… abdicando da estabilidade da fama dos palcos – como o do conceituado espetáculo de “At Carnegie Hall” – gravado em disco e de audição obrigatória.
Quase no mesmo ano, também numa gravação ao vivo de vários espetáculos - “Nina Simone In Concert” – é registada um dos mais poderosos temas de intervenções anti-racismo de sempre – o tema “Mississippi Goddam” – que passa a tema-referência dos movimentos de protestos. A voz de timbre único começa a carregar discursos que incomodavam mais. Diminuem os espetáculos e Nina parte então para a terceira faze da vida dela – a partida para a Libéria, onde procura encontrar-se e conseguir a receita para a tal revolta interior que sentia. Diz ter encontrado liberdade na Libéria, mas por anos esqueceu-se do piano…o peso da liberdade confortava-a …enquanto a ausência da música deixava vazios.
Anos mais tarde parte para Paris e os espetáculos voltam, mas já numa Nina em que as inconstâncias e procuras pessoais passam a incapacidades agora medicadas. Contudo a artista continua e começa a ser definida como a “cantora que com base numa disciplina clássica adquirida, foge e encosta-se à liberdade do Jazz” – sobretudo do Blues. A música de Nina fugia às classificações – era própria, originalmente dela.
Continuou a passá-la ao público que após o tempo de ausência ainda tinha Nina bem presente: as “rainhas são inesquecíveis” …
A sua música povoa-nos. A sua inquietude interior torna-se magia quando compreendida como por exemplo nas letras de “Stars” ou “Don’t Let Me Be Misunderstood” – … sim, “But I’m just a soul whose intentions are good…Oh, Lord, please, don’t let me be misunderstood”.
Foi a criança treinada para ser a primeira negra a tocar numa sala de espetáculos enquanto as crianças brincavam.
Foi jovem que não desistiu da música, e partiu à sua procura – tendo criado o teu próprio género musical.
Foi guerreira e sábia defensora dos direitos civis, numa América podre e num “Mississippi Goddam” – que gritou tão alto tornando-se eco sobre as manifestações de milhares.
Também cantou de forma sublime o amor, ou um amor-protecção, na beleza de “I Loves you Porgy” …tendo com este tema deixado tinta para que outro mestre – Keith Jarrett, fizesse do mesmo outro momento de pura beleza…
Mas acima de tudo foi mulher em tempos conturbados. Foi mulher de Março e de todos os meses e dias… foi feminina(e)mente bela em discreta superioridade.
Ahh, antes de morrer, Nina Simone recebeu um diploma honorário da escola que um dia não a deixou continuar (ainda bem…) os seus estudos da música clássica.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1111 de 15 de Março de 2023.