“O Exemplo de Baltasar Lopes”, apresentado por Amílcar Spencer Lopes

PorExpresso das Ilhas,6 mai 2023 10:59

Para celebrar o dia do nascimento do seu patrono e integrado nas comemorações do Dia do Professor Cabo-verdiano, a Escola Secundária Baltasar Lopes, na Ribeira Brava, São Nicolau, convidou Amílcar Spencer Lopes, para fazer uma palestra sobre Baltasar Lopes (BL). Spencer Lopes elegeu “O Exemplo de Baltasar Lopes”, como tema da sua comunicação. Com a devida autorização do autor, o Expresso das Ilhas transcreve dois extractos dessa comunicação, feita no dia 21 de Abril, como forma de relembrar esse ilustre professor, jurista e literato, que nasceu em 23 de Abril de 1907 e faleceu a 28 de Maio de 1989. Note-se que os números citados no texto ora publicado referem-se à lista bibliográfica do autor.

A primeira lição, ou melhor, o primeiro exemplo, que temos de colher da vida de BL é este de um aluno, ou se quiserem, de um menino e jovem, estudioso, responsável e cumpridor dos seus deveres.

De regresso a Cabo Verde, BL passa a dar aulas no Liceu de S. Vicente, ao mesmo tempo que exerce alguma advocacia, não para ganhar dinheiro, mas sim para ajudar as pessoas que, tendo, por qualquer motivo, necessidade de ir ao Tribunal, não podiam custear as despesas com um advogado. Estamos, pois, perante o segundo exemplo: o de um homem frugal, solidário e disponível para ajudar o seu povo a enfrentar as dificuldades, do dia-a-dia.

Por essa altura já existia em Cabo Verde um grupo de intelectuais, na sua maioria jovens, que se juntava para falar e discutir sobre literatura e planeava criar uma revista. Dou a palavra ao menos jovem desse grupo, João Lopes, patrono da nossa Biblioteca Municipal, que na altura contava 35 anos:

No meio desta euforia toda, caíram como uma dádiva de Deus, dois elementos que viriam mudar completamente o rumo disperso das nossas actividades, coordenando, congregando, selecionando valores. Refiro-me à chegada, vindos de Lisboa, do Dr. Baltasar Lopes e, mais tarde, do Dr. Aurélio Gonçalves” (3).

É dessa maneira que vai nascer a Claridade – revista de arte e letras, cujo primeiro número saiu em 1936 e de que Baltasar Lopes foi o principal dinamizador. Note-se que Aurélio Gonçalves só chegaria a Cabo Verde, em 1939. Isto é, quando a Revista já ia no seu terceiro ano, de publicação.

Segundo Baltasar, preocupava o grupo “sobretudo o processo de formação

social destas ilhas, o estudo das raízes de Cabo verde” (in Cabo Verde visto por Gilberto Freyre, 1956).

Reparem que, nesta afirmação, desponta a faceta de investigador de BL. De homem preocupado com a realidade circundante. Preocupado com a origem das coisas e com a vida do seu povo, que procura estudar e compreender. É o terceiro exemplo que convém registar, na trajectória desse jovem, de então.

“Caçador de Heranças” (4) como ele, modesta e sugestivamente, se autodefinia, Baltasar Lopes, de forma paciente e aplicada, ia ao baú da história e do quotidiano destas ilhas, vasculhar o legado deixado pelos nossos avós, que ele integrava, processava, enriquecia e transmitia, por sua vez, às gerações mais novas.

De facto, ele e o grupo por ele liderado recolhem dados, que analisam, escrevem sobre essas questões, publicam, despertando a curiosidade do leitor para a importância das mesmas.

Basta consultar os três primeiros números da revista Claridade, para darmos conta desse trabalho meticuloso e pioneiro de busca das raízes e de afirmação da cabo-verdianidade.

Claridade é, assim, uma voz colectiva, que investiga; que efectua e promove a realização de estudos nos domínios da linguística, antropologia, etnologia, sociologia e tantos outros ramos das chamadas Ciências Humanas e Sociais.

O núcleo residente no Mindelo induzia os seus pares espalhados pelas ilhas, a remeter apontamentos, recolhas de folclore, artigos opinativos. Ao mesmo tempo, o Professor BL, aproveitando a diversidade de origem regional dos seus alunos, aprendia, estudava, comparava, fonemas, expressões, dizeres, atitudes e arregimentava, por outro lado, novos soldados, para aquilo a que ele chamava, “pensar o nosso problema” (5).

Manuel Lopes, outro destacado integrante do Grupo Claridoso asseverou que a atitude foi a de “fincar os pés na terra”.

Isto é, ir à origem do processo histórico e à raiz das condições em que viviam os cabo-verdianos e recolher elementos que permitissem um conhecimento consistente da realidade sociocultural de Cabo Verde. De posse desse conhecimento empírico, fundamentar a especificidade étnico-cultural do povo cabo-verdiano.

O programa não estava expresso. Nunca terá sido formulado tão claramente, por razões óbvias. A verdade, porém, é que, é evidente, hoje, para qualquer observador, que no “pensar o nosso problema” estava implícito o propósito da afirmação da cabo-verdianidade e da busca de soluções para Cabo Verde e para a sua gente.

É na revista Claridade que BL começa a publicar extractos do seu romance CHIQUINHO, que ele viria a dar à estampa, em 1947, o primeiro romance verdadeiramente cabo-verdiano e marco indelével da literatura mátria.

É, outrossim, nesses anos de empenhada actividade literária, que se revela a faceta poética de BL. O seu outro eu, com o nome de Osvaldo Alcântara (OA) a Polícia Política de Salazar levaria mais de três décadas para descobrir quem era esse tal O.A. Baltasar, que não ia à missa, na poesia era, como ele dizia, religioso.

A poesia de OA é, no entender de Gabriel Mariano (6) – outro natural desta ilha periférica – uma poesia de inquietação social. Isto é, “uma poesia cujo sujeito é o povo e cujo objecto são os problemas concretos desse povo”. Uma poesia de voz colectiva, que põe em relevo “as vicissitudes da movimentação vital do povo, no espaço em que exercita a sua capacidade de sobrevivência”.

De facto, através da poesia, BL dá voz à vivência quotidiana e ao sentir do povo destas ilhas. Nela BL revela, por outro lado, um profundo sentido metafísico da vida, um domínio soberbo do verbo e um conhecimento apurado da idiossincrasia cabo-verdiana. Osvaldo Alcântara é, ainda, o arauto convicto e indeclinável da Manhã Futura.

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Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.

Estamos, assim, perante um quarto exemplo: de um intelectual comprometido com as causas que preocupam e condicionam o normal desenvolvimento da sua Comunidade. Um líder visionário, que congrega, influencia e anuncia os tempos que ao de vir.

Já como reitor do liceu, defendeu a ideia da instalação de um Conservatório de Música, em S. Vicente e, juntamente com o professor de música José Reis, gizou um programa de ensino de música que, só não foi avante por falta de interesse das autoridades oficiais.

Quanto ao Ensino Técnico, BL defendeu a criação desse ramo de ensino, em SV. E, quando as autoridades oficiais levantaram a questão de um Director capacitado para gerir a escola, ele que na altura era Reitor do Liceu Gil Eanes ofereceu-se para colmatar a brecha e, durante dois anos, acumulou as suas funções de Reitor do Liceu, com as de Director da Escola Técnica do Mindelo, assegurando o surgimento e a afirmação, em tempo breve, de uma administração autónoma. Ele foi, assim, oficialmente, o primeiro Director dessa Escola.

Homem de pensamento e de acção, BL ainda teve ciência, arte e energia para, nos primeiros anos da década de trinta, do século passado, participar activamente nas reuniões da Associação Comercial de Barlavento, em representação do pai, ou para como activista social, conceber, nomeadamente, a célebre marcha dos trabalhadores, encabeçada por Nhô Ambrósio, em 1934, um momento histórico de protesto contra a situação de desemprego e fome que assolavam a ilha de S. Vicente.

Estamos, portanto, perante a figura de um homem que se integrou de pleno na sociedade do seu tempo, e se consagrou de corpo e alma ao serviço do povo destas ilhas.

Oiçamos a proclamação feita pelo seu outro eu – Osvaldo Alcântara – no poema Ressaca, “A minha principal certeza é o chão em que se amachucam os meus joelhos doloridos, mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores, na linha de todas as batalhas”.

Parece-me, utilizando ainda uma expressão querida do mestre, que “não é preciso pôr mais nada, na carta”!

Fico por aqui, que o tempo é limitado e o tema, um mar sem fundo e sem fim.

  Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.

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Autoria:Expresso das Ilhas,6 mai 2023 10:59

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  8 mai 2023 8:11

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