Kriol Jazz Festival 2024 – mais do que um cartaz, momentos e conceitos

PorPaulo Lobo Linhares,4 abr 2024 17:14

Chegam as noites de Abril à nossa capital. Espalha-se música pelas ruas da cidade. Começou com o AME e depois o palco que um dia jurou fazer com que Cabo Verde também fosse reconhecido mundialmente por um festival de música crioula, carregada de liberdade e muito Jazz – o Kriol Jazz Festival.

O local escolhido, foi a pracinha da antiga escola primaria, no Platô. A nossa escola, onde aprendemos, sonhamos e crescemos. Anos mais tarde, a minha geração volta a aprender, sonhar e crescer …só que agora com a música – que nos é oferecida por músicos que nos são dados a (re)ver.

É interessante olhar para o cartaz deste ano. Sem seguir o calendário cronologicamente, se nos afastarmos um pouco, vemos pequenos agrupamentos conceptuais que – de propósito ou não – se moldaram. Assim só nos resta seguir estrada rumo à “Pracinha Skola Grandi” e mergulhar nos tais conceitos de diferentes cores.

Da Academia para o(s) mundo(s)

É recorrente no Jazz e na música erudita: músicos que usam as bases da academia para consistência no partir para a procura de outras liberdades musicais.

Neste KJF24 temos a abrir este exemplo: JORGE PARDO & ARMANDO ORBÓN – vento e cordas em essência da alma.

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A parceria entre Jorge Pardo e Armando Orbón não é apenas uma colaboração musical: é um encontro de almas apaixonadas pela arte.

Jorge Pardo com sua flauta e saxofone transmite emoções que nos tocam ao ouvir. Sua jornada musical é uma busca incessante da fusão perfeita entre o Jazz e o Flamenco. Transcende fronteiras e culturas.

Fez parte dos instrumentistas do “Novo Flamenco”. No seu curriculum traz colaborações com nomes marcantes do Flamenco e do Jazz como Chano Dominguez e sobretudo do sexteto no qual participou de um dos nomes maiores do Flamenco - Paco de Lucía – o músico fez viajar as raízes do Flamenco por caminhos sem limites. Não terá sido o sorver dessa liberdade que fez com que Pardo introduzisse a flauta de forma doce num ritmo “furioso”?

Armando Orbón, é tradição erudita. A música é herdada na família, e a academia sua formação. Porém, talvez por se reger por uma frase que em entrevista um dia terá dito “é impossível abdicarmos da paixão total quando tocamos”, experienciou as mais diferentes sonoridades musicais em parcerias que foi fazendo entre músicos e países vários. Aos poucos o mundo foi sendo feito de palcos e para Orbón a academia servia assim de sustento para asas que lhe permitem voar-mundo.

STEVE COLEMAN. Voltamos ao já dito: academia que permite bases para a busca de outras sonoridades.

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A palavra-marca de Coleman é, sem dúvidas, “liberdade” – a de rejeitar a catalogação da música por géneros estanques defendendo que em vez de géneros há sim “a música de Coltrane…ou a música de Miles”. Tal visão é coerente com o que depois faz na sua música. Procura as músicas de lugares ou religiões para fazer “a música de Coleman”.

É conhecido no actual panorama do Jazz como profundo pesquisador da música da "diáspora africana” sem limites de fronteiras. Procura ainda as sonoridades de países …do Brasil a Cuba, do Gana ao Haiti, vai ainda a culturas como o Candomblé, ou a Santeira. Suas experiências musicais e palcos compartilhados com outras culturas são pilares fundamentais na sua jornada: a conexão com a música Afro-americana. Já dividiu palcos com nomes como Greg Osby, Cassandra Wilson e Dave Murray.

Acima falamos em “encontros musicais” de Cuba virão mais exemplos. KRIOLATINO é um projecto que une culturas e que o KJF vem explorando ao longo das edições, onde a música é a principal facilitadora de um todo experienciado que fica.

A escola de Jazz Cubana junta-se aos nossos tesouros musicais: Totinho, Khaly Angel e Hernani. Ao som de suas habilidades, duas vozes: a criativa mulher-liberdade, Zubikilla Spencer, e a nova revelação da nossa música - Fábio Ramos.

Este tipo de projectos são desafios para os produtores. Kriolatino foi desenhado. Os músicos se conhecem e ensaiam já em solo KJF. Este ano é-nos oferecida a proposta de junção de ilhas e músicas: a música de Cabo Verde dança em ritmo cubano onde as vozes principais serão nacionais. A orquestra, um misto de Cuba e Cabo Verde.

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Continuando na academia de Jazz de Cuba - AFRO CUBA JAZZ PROJECT traz o Jazz Afro – cubano, e tem à frente nome de marca superior do jazz latino: Jorge Reyes. O músico foi escola, instrumentista especializado – contrabaixista e quis a música que Reyes seguisse para a regência de grupos e orquestras. A mais famosa foi a sua participação nos enorme Irakere – tipo de laboratório musical onde se experimentaram e nascem os mais diversos ritmos em fusão - com incidência para a música afro-cubana com bases no Jazz. Fundada pelo mestre Chucho Valdés, Irakere é carimbo de lacre para qualquer músico que tenha passado pela orquestra. Este projecto trará certamente a nata da sonoridade afro-cubana dos palcos mundiais.

As divas que já são divas: são vozes e são nossas

ZUBIKILLA SPENCER e JENNIFER SOLEDAD são vozes que mascam diferenciação num Cabo Verde que sabe a palcos do mundo.

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Zubikilla é voz rara. Apaixonamo-nos à primeira. Quando canta, faz-nos sentir que o belo e a intensidade cantada são possíveis. Por entre resquícios de uma rouquidão arrastada e discreta, contrapõe com subidas e descidas quase singulares e tudo se torna possível, normal e música em profunda subtileza.

Em palco mima-o se preciso for ou então usa-o como confidente – porém, sempre com enorme noção do actuar-momento. Domina o palco como poucos onde a sua imagem de mulher é uma mistura de excentricidade, liberdade e alguma inocência que guardou de criança (terá prometido isso à música? Acredito que sim). É claramente uma das frontwomens de referência da nossa música. Os seus espetáculos são sempre diferentes. Não há lugar para cenários ou conceitos repetitivos que mecanicamente se prestam a encantar o público mais distraído. Será certamente uma das actuações- surpresa deste KJF24.

JENNIFER SOLEDAD é, desde há muito, uma das mais interessantes vozes femininas da nossa música: envolve, junta tonalidades que canta com olhares que lança para a plateia reforçando assim o que passa. É palco cheio, porém, em bailar necessário e sem excessos. Aborda os mais diferentes géneros da nossa música com o mesmo sentir. Arrisco-me a dizer que corre ilhas e torna-as palcos dela.

É voz e veludo que certamente será suportada pela capacidade da banda de músicos que a acompanha - o QUARTETO PRET & BRONK onde o improviso e liberdade dos instrumentistas ampararão a vida em palco de Jennifer. Pret & Bronk estão impregnados de música improvisada que vivem de forma natural. Permitam-me aqui diferenciar “música improvisada” de “Jazz” – uma é parte da outra e não o total, nem a mesma coisa. Porém, a parte do improviso, serve-se quente neste Quarteto.

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De palcos ausentes que há muito deveriam estar presentes

Acima falava de surpresas em certezas. Continuo: depois de Zubikilla… SOREN ARAÚJO TRIO.

Soren Araújo e Helder “Pelada” Rodrigues são dois artistas que escolheram ser também humanos de enorme coração. Denominador comum: a paixão pelas cordas. Violões e guitarras são complemento dos dois jovens e a partilha musical – palavra de ordem.

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Escolheram trazer para este KJF um conceito: sonoridades inspiradas nas montanhas. Há ventos traduzidos para música, ecos musicais das montanhas, traduzidos para cordas. A isso juntamos a forma orgânica das guitarras, num foco constante: o público.

Soren significa também viagens feitas em digressões com nomes como o de Mário Lúcio, onde meticulosamente vai escolhendo sons dos mais diferentes continentes por onde passa. Vive no País de Gales, onde também procurou pelos tais sons e juntou-os à caixinha de música interior onde guarda os demais sons.

Assim, há viagem e montanhas que se abraçam de Santo Antão aos longínquos verdes britânicos.

Contudo, havendo viagens, será preciso âncoras. Para tal foi escolhido Alex de Figueiredo, baterista que aqui garantirá o “prender de Soren e Pelada à terra “.

É um dos expoentes da nova geração de instrumentistas cabo-verdianos onde um nome assina por baixo: Ndu Carlos.

O resto será deixarmo-nos levar por três dos melhores instrumentistas da nossa música…que com mais experiência ou menos estrada, não tenho dúvidas de que será trio que nascerá para marcar a nossa música. … nas ilhas e além mundos.

A este subtítulo acrescento o enorme TIBAU TAVARES aqui acompanhado por uma banda significativa – MUNGANGA BAND. Tibau, em Cabo Verde, ia aparecendo. Entretanto, a robustez do nome de um dos mais peculiares compositores do Maio, ia-se fazendo em palcos internacionais.

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Criou “marca própria” e linha que nos envolve desde que o começamos a ouvir, quer seja na voz dele, ou em interpretações de outros cantores. Muitas vezes esquecido, ou melhor, não lembrado, chega sem pressas a um palco conceituado de Cabo Verde. É elevado em festival conceituado.

Tibau é intensidade simples, música complexa e compositor que nos arrebata.

"Munganga" e Tibau Tavares levam-nos a uma jornada emocional através de paisagens sonoras refinadas. Traz com ele uma orquestra de músicos de elevadíssima qualidade. Ao ouvir o disco, parece-nos ser Amik Guerra o condutor musical que auxilia Tibau, fazendo elo de ligação entre as ideias do compositor cabo-verdiano e a banda. Amik traz com ele experiências de palco com: Célia Cruz, Gonçalo Rubalcaba, Roy Hargrove, Michael Brecker, Jimmy Bosh e projectos como Buena Vista Social Club ou Afro-Cuban All Stars. É imperativo que Amik também conheça os nossos músicos…não será esta a maior riqueza do KJF – pode fazer os tais encontros musicais? Estou certo de que acontecerá. Nós precisamos de informação que vem de fora e de novas experiências.

Dos mestres-mundo … A música quis os dois nomes em Cabo verde, e o universo ajudou.

É raro, e só temos de agradecer que tal tenha acontecido.

HERMETO PASCOAL e SALIF KEITA estarão entre nós. Pisarão o mesmo chão musical do que todos nós amantes da música.

HERMETO PASCOAL não se define…vivencia-se. Lembro-me do primeiro espetáculo que vi. Preparava-me para como habitualmente começar a receber as primeiras notas do espetáculo e consequente interiorização para que gradualmente a viagem prosseguisse. De repente, no minuto primeiro, tudo se desconstruiu em mim: não houve tempo para preparativos. A vigem começou de repente, quando fui autenticamente preso pelo que ouvia. Flutuei e não mais parei até ao fim do espetáculo, momento esse que me lembro de ter voltado ao anfiteatro. Não sei por onde estive durante o espetáculo, mas sei com quem estive: a sensorial mestria de Hermeto.

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O Bruxo dos Sons, considerado "o músico mais impressionante do mundo" por Miles Davis, com quem fez enorme amizade, e que no dia em que se conheceram, terá sido convidado pelo trompetista para uma luta de Box no ringue da sala.

Acredito ter ficado conhecido pela sua enorme humildade. Não aceitou o convite de Paco de Lucía para juntos tocarem por achar que não estava à altura do guitarrista. Rege-se pelo amor, pela natureza, que diz ser fonte constante de inspiração desde criança – os seus primeiros brinquedos foram os sons e fez a sua primeira flauta com uma abóbora. “A música é o que é gostoso na vida, não importa se você é pintor ou jogador de futebol: tudo o que é bom, é música”, defende Hermeto.

Sim mestre, o que nos ensina transcende a música. Sim mestre, acreditamos quando diz que “na minha opinião, o público é o verdadeiro deus da música”. Cultivemos, pois, a humildade perante a música do bruxo Hermeto.

SALIF KEITA. Celebrar a diferença, enaltecendo-a através da música é tema que sempre regeu os caminhos de Keita. Dura foi a luta contra a discriminação a que foi submetido desde criança por ser albino, característica ligada ao azar na cultura mandinga. Por tal, foi renegado pelo pai, e quando quis ser músico, de novo ergueram-se obstáculos. Keita pertence à linhagem real, o que não se recomenda a música enquanto profissão. Das dificuldades fez vitórias quando mais tarde vira a actual “Salif Keita Global Foundation”, que defende a discriminação dos albinos.

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Nasce no Mali, oásis musical africano, onde a sonoridade do Blues é marcante.
Muda-se cedo para Bamako,onde se junta à banda “Super Rail Band “ para, no ano de 1973, juntar-se aos clássicos “Les Ambassadeurs”.
Em finais da década de 70 é-lhe reconhecido o mérito, surgem alguns prémios e, na década de 80, muda-se para o grande palco da então world-music – Paris, onde desperta a atenção de produtores e músicos como Zawinul, Carlos Santana, …e do mundo. Vivia-se a explosão da (então) world-music de Peter Gabriel. Salif era nessa altura nome de destaque o que lhe permite mergulhar na música e construir a sua própria sonoridade. Uma certeza: as raízes da música do Mali nunca foram descuidadas apesar das influências musicais e instrumentais serem cada vez mais ecléticas.
No seu último álbum “Un Autre Blanc”, o interesse pela mescla musical resultante do que o músico foi coleccionando ao longo do tempo: influências do Pop fundem-se com as sonoridades do Mali, com Funk, mas o essencial é sempre a típica sonoridade que Keita consegue numa fusão perfeita entre África (onde o precioso embalar da música do Mali ou as marcadas percussões de ritmo elaborado estão sempre presentes) e o Pop – o tão falado Afro-Pop, que na opinião de grande parte da crítica, o músico terá sido o percussor.

Se acima me referi à sensação que tive quando vi Hermeto pela primeira vez, o mesmo acontece com Keita: guardo a energia contagiante que o palco e músicos de Salif emanam e que não nos deixam parar.
Conforme afirmou, não estará longe da reforma. Tenciona voltar à sua terra natal e dedicar-se por inteiro à sua fundação. Cabo Verde terá o privilégio de receber a “voz de ouro” que continua a encantar a África e o mundo.

SANTROFI estará nas três surpresas que creio serem destaque neste KJF24. Falei de Zubikilla, do Trio de Soren Araújo e termino com os SANTROFI. O grupo é tempestade de ritmo e energia, cuja música é clara celebração da vida e da alegria. Com som contagiante e cativante, levam-nos a uma viagem emocionante através das paisagens sonoras do Gana, onde cada nota é uma explosão de paixão e vitalidade. Com eles, o palco transforma-se em um altar de música, onde dançamos ao ritmo da vida.

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Há décadas, sobretudo por entre Gana, Serra Leoa e Nigéria surgia um ritmo que baseava os seus cânticos e instrumentos na cultura tradicional desta parte do continente africano a que se juntou instrumentos eléctricos do Ocidente. Por entre sopros consistentes e trabalhos de teclado específicos, a marca maior são as energéticas guitarras que trazem ritmos em alegria viva e festiva.

Santrofi é um colectivo novo e dinâmico de jovens músicos que responderam à chamada de um dos baixistas mais conhecidos deste género musical e da geração anteriores. O objectivo é celebrar a música highlife de raiz, a possíveis influências, mas não fechando as portas a outras influências. Fizeram-no indo desde o funky soul até ao afro-beat.

A paixão pelo que fazem fez explodir o sucesso, e palcos europeus passaram a tournées habituais. Vários foram os festivais percorridos e chegaram a ser referência de famosos festivais e organizações como o FMM - Sines e a WOMAD.
São explosão em palco, próprio para noites, onde queremos que a música seja menos mansa connosco.

Assim, a Pracinha espera-nos…nela o palco KJF é certeza e a música… mundo.

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Autoria:Paulo Lobo Linhares,4 abr 2024 17:14

Editado porSara Almeida  em  5 abr 2024 14:18

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