Recebi então um dos discos da minha vida: “Ney canta Cartola.”
Lembro-me de ainda trabalhar na Virgin Music e quando soube da novidade, tentava imaginar o que seria a junção das duas figuras musicais que para mim cabem na caixinha de “músicos ímpares” que, neste caso, foram pares de um disco onde Ney homenageou o mestre, onde o mundo de cada um deles se encontrava em intercessão musical divina.
Aguardava o disco e levei semanas a pensar como o compraria, qual a melhor data, enfim…coisas que a música nos faz presos em emaranhados feitos de sonho e que um bebé resolve facilmente. Assim, enquanto pensava em fórmulas, em Ney e em Cartola…o Tiago em minutos resolveu tudo.
Tinha então comigo o esperado Ney canta Cartola.
Ouvi-o de novo. Outra e várias vezes…até hoje.
Lembro-me de um colega meu ter-me perguntado se foi mesmo possível juntar dois mundos que à partida se previa serem diferentes… não soube responder....Cartola vem do morro, do samba e Ney do interior do Brasil.
Cartola canta a vida, a partir da observação. Daí nasce poesia, vivência que desagua em sapiência.
Numa entrevista, Ney diz que a música de Cartola é imensamente densa, porém “prazeiroza”....
...Ney é vida na sua expressão mais descontraída, porém densa.
Na verdade, Ney foi sempre uma constância de “improbabilidades” ao longo da sua carreira. Eu chamar-lhe-ia diferenciais que Ney tão bem e de forma natural fez com que jogasse a seu favor e, passo a passo, tempo a tempo, foi construindo o que é hoje um dos maiores artistas da música sul-americana.
Começou por conhecer o significado da palavra diferença quando viveu atribuladas discussões com o pai – militar do exercito brasileiro. Viveu a diferença de pensamentos marcadamente.
Ao sair de casa, pouco tempo depois é engolido pelos ideais Hippies dos anos 60, quando as cores do mundo tentavam distanciar-se da sociedade de então. Viver a diferença voltava a ser palco de Ney.
Esta época terá sido preponderante na vida do artista, como faz questão de frisar em todas as suas entrevistas.
Na verdade, creio ter sido tal pensar-estar o que terá levado Ney as doses de criatividade (eu chamar-lhe-ia genialidade) que lhe permitiram materializar todo o seu pensar artístico num dos melhores grupos de sempre da história da música brasileira – os “Secos e Molhados” - na altura o expoente máximo da diferença, recheada de uma certa inovação em termos de personagens de palco.
Voltando ao disco aqui contado, “Ney canta Cartola”, mais tarde pude ver Ney ao vivo e banda a cantar Cartola onde todo o drama da voz do artista é carregado para o disco e depois para o palco, juntando-se então a vivência e sapiência da vida, do samba e do morro cantada por Cartola.
Ainda tenho comigo a sensação do momento onde tudo se mistura em poesia parida da vida, ao qual se juntava a performance aprendida na vida.
No dia 25 de Maio, no Brasil, Ney foi o homenageado...a mesma homenagem que um dia terá feito ao mestre...só que desta vez foram vários músicos a fazê-lo...
Ney também cantou, dançou, provocou, iluminou-se..
Faz em Agosto 83 anos e prepara dois grandes shows. Uma certeza: há um mundo que hoje certamente espera pelo momento dos dois shows, assim como um dia esperei pelo disco...
Haverá certamente várias prendas que se tornarão bilhetes para o show de Matogrosso.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1176 de 12 de Junho de 2024.