Cléo Diára : “Costumo dizer que tenho muitas águas”

PorNuno Andrade Ferreira,8 jun 2025 7:44

Cleo Diára e Sérgio Coragem em cena do filme “O Riso e a Faca” (Divulgação)
Cleo Diára e Sérgio Coragem em cena do filme “O Riso e a Faca” (Divulgação)

Nasceu na Praia, brincou nas ruas do Paiol, mas ainda criança mudou-se para Lisboa, onde cresceu e se fez actriz. Acaba de vencer o prémio de melhor interpretação feminina na secção Un Certain Regard, do Festival de Cannes. Está “aos poucos” a entender a dimensão do que lhe aconteceu. Falou ao Expresso das Ilhas sobre isso e muito mais.

Nasceste na Praia e aos 10 anos viajaste para Lisboa. Fala-me do país que deixaste e do país que encontraste?

Digo sempre que a minha imagem de Cabo Verde, e que eu não quero que se mexa, é das brincadeiras nas férias, dos vizinhos, da minha avó e dos meus irmãos, quando ainda a maior parte da família estava reunida, porque depois, com a emigração, uns foram para França, outros para os Estados Unidos e acabámos por nos separar. Aos 10 anos, venho para Portugal, onde passo a maior parte da minha vida.

Há esse entre-lugar da Cleo que nasceu e viveu até aos 10 anos em Cabo Verde e da Cleo que se muda para Portugal e passa a maior parte da sua vida em Lisboa.

Até que ponto esse entre-lugar te define como artista?

Costumo dizer que tenho muitas águas. Uma delas é a minha mãe, a minha irmã, os meus amigos. A outra é Cabo Verde, que para mim é coração, água que se move dentro de mim. O imigrante que quer sempre sentir que faz parte de algum lado. Muitas vezes estamos aqui em Portugal, não somos vistas como portugueses e queremos ter alguma terra em que possamos enraizar os pés. Cabo Verde é esse sítio que eu quero reclamar.

O teu percurso artístico tem muito de memória e transformação. Também tem resistência?

Tem, tem. Acho que os corpos negros na diáspora têm essa vivência, essa resistência de podermos existir, de podermos ser quem somos. De contarmos histórias na primeira pessoa, não ficarmos sempre a dar o nosso corpo à história de outras pessoas. Podermos falar da nossa narrativa sem estereótipos, sem o olhar de fora.

Essa resistência também é poder contar a nossa história na nossa própria visão.

Um repto tão actual…

Acho que sempre foi. Para as pessoas negras, parece que estamos sempre a começar alguma coisa, e não. Estamos na continuação de alguma coisa, de caminhos que já foram abertos por outras pessoas. Sempre existimos, sempre contribuímos, sempre fizemos parte. Se calhar, não fomos inscritos na história, se calhar, houve certos apagamentos, mas sempre contribuímos, sempre fizemos.

Fala-me sobre o projecto Aurora Negra. O que levou à sua criação?

A Isabél Zuaa, que é uma actriz que trabalha aqui e no Brasil, contacta-me e fala-me sobre um projecto que ela queria fazer. Eu falo da Nádia Yracema e da Ana Valentim e digo que seria bom nos conhecermos. Na altura, não conseguimos financiamento para levar adiante esse projecto, mas ficou ali plantada essa vontade.

Passado algum tempo, a Nádia percebe que abriram as candidaturas para a Bolsa Amélia Rey Colaço. Candidatamo-nos e vencemos. É assim que começa a Aurora Negra.

Há muito de manifesto neste projecto ou vocês não o encaram dessa maneira?

Não o encaramos dessa maneira, mas como celebração. A celebração das nossas histórias, da nossa vivência, da nossa comunidade, da nossa relação com Portugal.

Obviamente, tem um pouco de manifesto, de recontar a história, quando invocamos mulheres que já existiram, mas, acima de tudo, é uma celebração.

“O Riso e a Faca”. Fala-me sobre esta experiência que te valeu o prémio de Melhor Actriz na secção Un Certain Regard, do Festival de Cinema de Cannes.

Foi uma experiência intensa, porque gravámos na Guiné-Bissau. Foram três meses, estávamos todos deslocados das nossas casas. Alguns momentos foram duros, mas também muito gratificantes. Foi a personagem a que eu dei mais de mim, até o meu nome emprestei.

E quanto ao prémio…

Estou a entender o prémio aos poucos, pela reacção dos outros, porque toda a gente diz que é grande, “fizeste história”.

Eu dei, dei muito, trabalhei imenso, imenso mesmo. Amava ir para o set de filmagens, tudo fazia sentido. Foi muito gratificante e levou algum tempo para entender tudo o que aconteceu.

Como é que podemos criar espaços de circulação artística em que vozes de outros, nomeadamente de artistas de países africanos de língua portuguesa, cheguem até nós?

Pode ser a partir de um sonho que eu e as ‘auroras’ temos, que se chama Quilombo e que é um festival onde podemos abarcar artistas de Moçambique, da Guiné, de Angola, de Cabo Verde, também do Brasil, de Portugal.

Temos de continuar a trabalhar e a abrir espaço para conversarmos mais. Um espaço comum pode ser importante para nos voltarmos a conhecer. Temos muitas coisas em comum em que não precisamos falar. Gostava muito que esse espaço existisse. Um espaço de experimentação, de novos artistas, juntamente com artistas consagrados.

A entrevista completa a Cleo Diára está disponível em radiomorabeza.cv, podcast Repórter Morabeza.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1227 de 4 de Junho de 2025. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Nuno Andrade Ferreira,8 jun 2025 7:44

Editado porSara Almeida  em  8 jun 2025 10:39

pub
pub.

Rotating GIF Banner

pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.