Projecto em São Vicente resgata o Pano d’Obra do esquecimento anunciado

PorNuno Andrade Ferreira*,16 nov 2025 7:27

Atelier do Vale Agroflorestal, manutenção do cultivo de algodeiros pelo grupo (Neve Insular, 2022)
Atelier do Vale Agroflorestal, manutenção do cultivo de algodeiros pelo grupo (Neve Insular, 2022)

Conhecido pelos seus padrões complexos e muito precisos, este tecido, feito em tear manual, não é produzido há mais de vinte anos. No Madeiral, está agora a ser resgatado.

O Colectivo Neve Insular, em São Vicente, está a trabalhar para devolver vida a uma tradição quase esquecida — o Pano d’Obra. Um novo projecto, com coordenação geral da Oficina de Utopias, procura resgatar a arte, trabalhando em todo o ciclo de um dos elementos mais antigos da identidade cabo-verdiana.

A actual etapa do Matriz Têxtil Insular decorre até 2027, com o apoio da Cooperação Portuguesa. Durante séculos, o algodão cresceu espontaneamente nas ilhas, adaptado à aridez e ao solo rochoso. A industrialização relegou a sua relevância para segundo plano.

A investigadora Rita Rainha explica que, hoje, quase ninguém domina as etapas do processo produtivo, da plantação ao tear.

“Um dos grandes objectivos do projecto é conseguir recriar pelo menos um exemplar e montar o que chamamos de kits — um conjunto de lisos que funciona como a programação do tear, por assim dizer. A ideia não é que sejamos nós a produzir, mas sim que os artesãos recuperem a autonomia. Com esses kits, poderão continuar a tecer, pois ainda existe mercado; o que se perdeu foi o know-how”, refere.

Recuperar, preservar e devolver o conhecimento é o que tem sido feito desde a ideia original. Assim continuará a ser, pelo menos, ao longo dos próximos dois anos.

“O projecto surgiu no âmbito do salão Created in Cabo Verde, em 2018. Na altura, o tema desse salão era o padrão da panaria cabo-verdiana enquanto matéria criativa. Eu e a Vanessa, que é co-autora do Colectivo Neve Insular, pensámos: é preciso voltar a cultivar, é preciso iniciar na semente, recuperar o saber da transformação. Neste caso, fizemo-lo com o mestre Marcelino Santos, que partilha connosco esse conhecimento”, diz.

No Vale do Madeiral, as formações em agroecologia e tecelagem decorrem semanalmente, envolvendo a comunidade local, que aprende a plantar, colher e transformar o algodão em fio. É o caso de Meladine Delgado.

“Conseguimos criar o nosso próprio emprego, porque sabemos que muitas das nossas mulheres estão em casa, sem ocupação. Através deste projecto, conseguimos criar uma fonte de rendimento e um negócio para o futuro. No início, não sabia nada, mas agora já sei fiar. Comecei sozinha e, neste momento, já somos um grupo de sete mulheres. Convido outras mulheres a participarem”, desafia.

Agricultura, arte, design, educação, mas também empreendedorismo. Para garantir que o renascimento e a valorização do algodão em São Vicente não são apenas um entusiasmo momentâneo, foi preparado um plano estratégico, desenhado pelo consultor Rui Levy.

“Dando-nos as directrizes daquilo que temos de atingir nos próximos dois anos e meio, mais ou menos, porque vai ter de ter viabilidade económica ou financeira — a soberania económica, como as promotoras gostam de referir”, explica.

A criação de uma associação é parte essencial do plano, garantindo autonomia, longevidade e escala. Conciliar tradição e inovação também é parte da estratégia, redesenhando relações entre pessoas, terra e memória. É assim que a designer Vanessa Monteiro encara a iniciativa.

“O Pano d’Obra tem uma complexidade muito grande, em termos de design e da sua base, que é bastante matemática. Neste sentido, acreditamos que o design entra enquanto ferramenta que, aliada a outros instrumentos e áreas de utilização, agrega valor, além de permitir um trabalho mais metódico, para que seja algo reproduzível”, comenta.

“Pela nossa investigação, feita no interior de Santiago, percebemos que há mais de duas décadas que o Pano d’Obra, efectivamente, não é produzido. O que precisamos, nessa perspectiva do design, é juntar todas essas peças e trazer todos os elementos”, acrescenta.

Para o presidente da Associação Agro-pecuária Calhau e Madeiral, Ederlei Rodrigues, o Matriz Têxtil Insular traz, desde logo, uma nova dinâmica económica, com a criação de oportunidades de rendimento. Mas há outras vantagens.

“O algodão existe de forma selvagem, mas a primeira vez que o cultivámos foi no centro agroecológico, no âmbito do projecto. O algodão tem uma grande importância porque, além de fornecer o fio, também serve de ração para os animais. Além disso, funciona como barreira contra o vento para quem faz agricultura em campo aberto, permitindo unir o útil ao agradável”, exemplifica.

O trabalho em curso com o Pano d’Obra ganhou força com o recente reconhecimento do Pano de Terra como património imaterial nacional. Rita Rainha acredita no potencial da articulação entre instituições, nomeadamente o CNAD – Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design.

“Em 2018, havia apenas um mestre artesão, uma única pessoa que sabia fiar, e já quase ninguém dominava as técnicas de tingimento. Os saberes estavam em vias de extinção. Acredito que o trabalho interinstitucional e também interdisciplinar é essencial, porque cada equipa contribui dentro do seu métier. Acredito que esse trabalho conjunto, sempre envolvendo as pessoas, torna possível não deixar morrer esses saberes”, confia.

O Pano de Terra é, na tradição cabo-verdiana, um termo genérico para os tecidos produzidos em tear manual. Entre eles, o Pano d’Obra destaca-se como a forma mais complexa, com padrões que percorrem a peça de cima a baixo.

*com Lourdes Fortes

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1250 de 12 de Novembro de 2025.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira*,16 nov 2025 7:27

Editado porSara Almeida  em  16 nov 2025 18:20

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