Na penúltima parte desta entrevista trazemos recordações das grandes figuras sãovicentinas e praienses com as quais se cruzou Ramiro Barbosa Vicente, o mestre recentemente homenageado pela Associação de Xadrez da Praia, em tributo à sua já longa e venturosa carreira.
Quais são as grandes figuras com quem se cruzou ao longo a sua carreira?
Ramiro Barbosa Vicente – Como pratiquei o xadrez tanto na Praia como no Mindelo vou enumerar jogadores das duas cidades. A começar pelos já referidos Dr. Baltazar Barros e Raúl Barbosa Vicente, o Luís Gomes Barbosa Matos, o Rocha, o Henrique Vera-Cruz, o Noel Pinto…
Podia falar do estilo de alguns desses jogadores?
Havia o Arménio Vieira que era um jogador seguro, mas pecava por falta de imaginação. O Neneni [Daniel Pires] jogava e continua a jogar bem, mas era muito nervoso e de vez em quando tinha umas saídas que comprometiam o seu jogo. Acho que é esta uma das razões por que nunca chegou a ganhar um campeonato ou torneio, ao passo que eu ganhei, ganhou o Arménio. Quem mais ganhou?
O Noel Pinto?
O Noel era um belíssimo jogador, mas, não sei porquê, dificilmente ganhava campeonatos. Ele um dos poucos que tinha um livro de xadrez na Praia. O outro era o pai do também jogador Carlos Tavares. De resto, acho que ninguém mais tinha livros. O Dr. Baltazar devia ter muita coisa, mas não mostrava a ninguém.
E o Ovídio Martins ganhou algum torneio?
Não me recordo.
Além de grande poeta, Ovídio Martins era também praticante do xadrez. Como é que o recorda?
Ele era um jogador razoável, mas comigo ele não conseguia ganhar. Ganhava a muita gente, lembro-me até de um campeonato realizado na Embaixada de Portugal em que somou várias vitórias, mas quando nos defrontamos ele perdeu e daí para a frente não conseguiu fazer nada. Ele era mais velho que nós todos e acho que essa circunstância teve a ver também com os seus resultados. Lembro-me que quando o desafiava, ele dizia ‘quero jogar só uma partida’.
Nos primórdios da independência surgiram também xadrezistas estrangeiros que frequentavam o Café Cachito. Qual deles era o melhor?
Havia um médico soviético [Dr. Oleg] com quem jogava na esplanada da Praça Alexandre Albuquerque. Este jogava bem. Há outros cooperantes estrangeiros que passaram pela Praia, mas não me dei por isso.
Havia um tal Stanko que também jogava futebol.
Não, como dizemos no xadrez, o Stanko era leve.
Quais são as suas anedotas preferidas do xadrez praiense?
A minha preferida é aquela do Curado [José da Cruz] que terá sido provavelmente o jogador mais lento que surgiu na cena xadrezista praiense. Quando era questionado porque passava tanto tempo a reflectir sobre o seu próximo lance, ele esclarecia que antes de jogar tinha que responder impreterivelmente a 50 itens e isso demorava o seu tempo. Primeira pergunta, o meu Rei está em perigo? 2ª, a minha Dama está ameaçada? 3ª, as Torres estão seguras? 4ª, devo jogar o Bispo ou o Cavalo? 5ª, tenho algum peão indefeso? Analisadas todas as ameaças reias e imaginárias, passava à fase seguinte: 6ª, o que posso fazer? 7ª, o que pode fazer o meu adversário? 8ª, devo atacar no centro, ou na ala do Rei ou da Dama? 9ª, posso sacrificar algum material para enfraquecer o roque adversário? 10ª devo manter a tensão no centro, ou trocar um dos peões? É claro que são questões que qualquer jogador coloca antes de jogar, mas acho que ele exagerava um pouco. O Curado era um grande amante do xadrez, lia muito e sabia alguma teoria, mas os seus resultados não estavam à altura da sua paixão pelo jogo.
É claro que sem teoria, que é a prática dos mestres, não se vai longe no xadrez.
Eu nunca dei grande importância à teoria. Para dizer a verdade, eu não sei anotar os lances. Não é nada do outro mundo e aprende-se isso em meia hora. Quando comecei a jogar não nos preocupavámos muito com os aspectos teóricos do xadrez. Aliás, quando aprendi a jogar, nunca imaginava que pudesse algum dia vir a disputar um campeonato. No Fogo não havia essa tradição, e em S.Vicente a teoria não era o mais importante.
Onde é que se jogava xadrez na Praia? Começou no Café Cachito?
Quando vim do Fogo, em 1972, já lá jogavam. Não sei se antes havia outro local. Jogávamos também muitas vezes na Radio Clube. Lembro-me inclusive que o primeiro campeonato que o Dr. Baltazar ganhou, foi disputado ali. Depois, quando o Cachito fechou, o jogo parou e só depois da abertura do Café Sofia é que retomamos o xadrez.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 785 de 14 de Dezembro de 2016.