Era como se tivéssemos o semi-divino Aquiles correndo ferozmente atrás da zenoniana tartaruga: por mais rápido que se deslocar nunca poderá alcançar a vagarosa tartaruga. É claro que estamos ante um dos célebres paradoxos do pré-socrático Zenão de Eleia, mas quando nos anos 20 do século passado com som e fúria Réti Tartakower e Breyer anunciaram o advento da Escola Hipermoderna do Xadrez, muitos mestres torceram o nariz e amaldiçoaram as novas ideias que a história haveria de registar como a última grande revolução no jogo dos reis.
O que ensinava a escola hipermoderna? Justamente paradoxos não menos escandalosos que as aporias do filósofo de Eleia: não sair nunca com o peão do rei, não ocupar nunca o centro (o controlo é mais eficiente do que a ocupação, apregoavam), etc. Assustada e escandalizada, a comunidade reagiu prontamente baptizando as aberturas com os mais extravagantes e pejorativos nomes: Defesa Índia do Rei, Defesa Índia da Dama, Defesa Nimzo-índia, Abertura Orangotango, etc. Era, diziam os detractores, como se o nobre jogo dos reis fosse depositado nas inábeis mãos de um pele vermelha ou de um simiesco animal. Estranhamente as crianças e adolescentes têm demonstrado um raro fascínio pelas ficções índias de Karl May (o Karl mais famoso e mais lido na Alemanha que o próprio Marx) e…os jovens mestres, pelo menos do início da carreira, um apego inexplicável pelas defesas índias.
Com o que entraríamos na partida da semana. Pretas: Garry Kasparov; Brancas: Smbat Lputian; Defesa Índia do Rei. A partida que a seguir veremos é quase fotocópia daquela outra não menos famosa em que Fischer derrotou com as pretas Donald Byrne. Em ambas as partidas o vencedor tinha apenas 13 anos e ao som da trompeta hipermoderna davam as primeiras mostras do seu tremendo potencial. Juntamente com Bobby Fischer, Kasparov é dos mais célebres praticantes deste jogo que veio do oriente e se espalhou por todo o planeta. Genial dentro das 64 casas do tabuleiro, como o americano, as actuações de Kasparov fora do círculo da sua competência, têm evidenciado muitos pontos discutíveis: o abandono da FIDE (Federação Internacional do Xadrez) em 1993, a criação e destruição de várias associações de xadrez.
Não menos constantes são suas opiniões políticas – no tempo da Perestroika era pró-Gorbatchov, para logo de seguida tornar-se pró-Yeltsin. Mas as nossas opiniões são coisas efémeras e, no caso de Kasparov, podemos sem prejuízo ignorá-las, que não afectam em nada as suas partidas – provavelmente as melhores que a longa história do xadrez produziu. Vejamos uma das primeiras amostras da sua inesgotável força:
Lputian X Kasparov, Tbilisi 1976.
1.d4; Cf6 2.c4; g6 3.Cc3; Bg7 4.e4; d6 5.f3; Cc6?! 6.Be3; a6.7.Dd2; Tb8; 8.Tb1; 0-0 9.b4; e5 10.d5; Cd4! 11.Cge2; c5!12.dxc6; bxc6! 13.Cxd4; exd4 14.Bxd4;Te8!15.Be2; c5!16. bxc5; Cxe4!! 17.fxe4 Dh4+ 18.g3?!; Txb1+; 19.Rf2
Posição após 19. Rf2.
Kasparov não defende a sua Dama
19...Tb2!!20.gxh4;Txd2.21.Bxg7;Rxg7. 22.Re3;Tc2. 23.Rd3; Txc3+!24.Rxc3;dxc5.25.Bd3; Bb7.26.Te1; Te5! 27.a4; f5 28.Tb1; Bxe4 29.Tb6; f4!.30.Txa6; f3. 31.Bf1;Bf5. 32.Ta7+;Rh6. 33.Rd2; f2. 34.Be2; Bg4! 35.Bd3;Te1.36.Tf7; Bf5.37.a5; Bxd3! 38.Txf2; Tf1. Acabou, diria Manuel Morais.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 868 de 18 de Julho de 2018.