No tempo em que ainda havia RDA

PorFrancisco Carapinha,9 mar 2019 8:49

​Numa das minhas últimas passagens pela casa da minha mãe, em Portugal, arranjei coragem para fazer uma arrumação a vários caixotes, com livros e outros pertences meus, que por lá iam ocupando espaço. Entre esses pertences fui encontrar um dossiê contendo registos de partidas de xadrez jogadas nos primórdios da minha ligação com a modalidade.

Decidi trazer esse dossiê para Cabo Verde com a intenção de, aos poucos, ir transcrevendo essas partidas para os formatos que as novas tecnologias nos colocam à disposição e assim preservar um pouco da história, que mesmo não sendo extraordinária é minha e comprova a longa ligação que mantenho com o xadrez.

Só há relativamente pouco tempo tive oportunidade de desfolhar esse dossiê, onde encontrei três documentos cuja história decidi partilhar convosco. Um deles, é a folha de registo da primeira partida de xadrez que joguei oficialmente. Estávamos a 19 de Março de 1977, ou seja, há quase 42 anos, fazendo com que provavelmente eu seja o cabo-verdiano com a mais antiga partida de xadrez jogada a nível oficial. Essa partida foi jogada em Portugal, na cidade de Rio Maior, durante a 1.ª sessão do Campeonato Distrital de Equipas de Santarém em que a minha equipa, o C. D. J. Ulme, defrontou o Clube Riomaiorense, umas das melhores equipas daquele torneio e que contava com dois jovens que eram promessas na altura: o João Rafael e o José Eduardo Deus, este último, meu adversário nesse histórico dia, que foi também o da minha estreia como capitão de uma equipa. Já naquele tempo, apenas com 15 anos, eram-me entregues grandes responsabilidades, que aprendi saber assumir. Responsabilidades estas que não se ganham, mas conquistam-se com a realização de trabalho. Relativamente a essa primeira partida oficial, já tive oportunidade de a reconstituir e verificar o quanto eu era novinho e como facilmente claudiquei perante um adversário muito superior.

O outro documento é também uma folha de registo da partida que joguei no dia 3 de Abril de 1979, na cidade de Santarém. Foi a primeira vez que joguei com um Grande Mestre e logo com Wolfgang Uhlmann, um jogador, na altura, da RDA (República Democrática Alemã) e que tinha participado nos Torneios Interzonais de 1962, 1970 e 1973, tendo no Interzonal de 1970 conseguido a classificação para o Torneio de Candidatos de 1971, ou seja, um jogador de top na altura (chegou a atingir um Elo de 2575). Ao contrário da minha primeira partida oficial, nesta, fui conseguindo dar luta ao Grande Mestre, abandonando ao 52.º lance, sendo um dos últimos a claudicar na simultânea denominada Portugal-RDA, organizada pela Associação de Amizade Portugal – RDA.

Estou a falar de uma altura em que ainda havia duas Alemanhas: a RFA, conhecida por Alemanha Ocidental e a RDA, conhecida por Alemanha Oriental. Esta RDA, um Estado criado em 1949 no território da zona de ocupação soviética, uma das zonas ocupadas pelos Aliados na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, quando o território alemão foi repartido entre os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e a União Soviética. Enquanto a zona soviética deu origem à RDA, a junção das outras três deu origem à RFA. Durante muitos anos, um muro, em Berlim, separava RFA e RDA. Esse vergonhoso muro acabou por sucumbir e finalmente em 3 de Outubro de 1990, assistimos à reunificação da Alemanha.

E é por falar em RDA, e na sua suposta democracia que trago à liça o último dos documentos que enunciei no início desta crónica. Trata-se de uma folha emitida pela ICCF (International Correspondence Chess Federation) em 1983 e onde estão listados os jogadores, e respectivos emparceiramentos, do World Tournament/III/535 (Campeonato Mundial de 3.ª categoria n.º 535). Nessa lista, além do meu nome, está também listado um tal Hans-Jürgen Wastel, jogador da DDR (Deutsche Demokratische Republik). Estávamos numa época em que os lances do xadrez por correspondência eram transmitidos por via postal, a que eu apelidei de romântica, e a inquietude da minha juventude tornava-me num dos defensores das ilusões “democráticas” do Leste. Nessa altura trabalhava, como animador sócio-cultural e desportivo numa autarquia portuguesa, fortemente conotada com aquelas ideologias pró- soviéticas, o que fortalecia a minha ilusão e defesa daqueles regimes, que mais tarde vim a perceber que de democracia pouco ou nada tinham e não passavam de regimes autoritários, ditatoriais onde predominava o unipartidarismo. A partida que disputei com esse tal Hans, da qual não tenho registo nem me lembro do resultado, foi talvez o início das minhas dúvidas e posterior descrença na ilusão das “democráticas sociedades sem classes” apregoadas pelos seguidores pró-soviéticos. Na minha ingénua irreverência de juventude, postal a postal, onde ia enviando os lances para a RDA, ia questionando o meu adversário sobre as grandes liberdades, sobre a excelente distribuição de riqueza da sua sociedade sem classes e de outras maravilhas que nos apregoavam no Ocidente. Estranhamente, estas questões objectivas ficavam sem resposta. O meu adversário que, pensava eu, vivia num “paraíso”, não me respondia para revelar as benesses e virtudes das maravilhas daquele regime. Comecei a ficar desconfiado, até chegar à conclusão que as minhas perguntas nem chegavam ao destinatário porque a nossa correspondência, onde trocávamos simples lances de xadrez, era censurada pelo regime ditatorial comandado, na altura, por Erich Honecker, um sanguinário ditador e um dos responsáveis do Schießbefehl, ordem de atirar em todas as pessoas que tentassem cruzar o Muro de Berlim e a fronteira fortificada.

Com estes três papeis, que me atrevi de apelidar de documentos, na mão, acabei por viajar no tempo relembrando um pouco do início, do já longo, relacionamento que mantenho com o xadrez, que remonta ainda ao tempo em que havia uma RDA e eu acreditava em muitas utopias que a juventude nos permite sonhar.

Já foi há muito tempo!

image

Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 901 de 05 de Março de 2019.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Francisco Carapinha,9 mar 2019 8:49

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  9 mar 2019 23:15

pub.

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.