O turismo interno é considerado um produto novo e emergente em toda a África. Em Cabo Verde, no entanto, a incipiência deste parece ser ainda mais vincada. As ilhas, mesmo que fisicamente pouco distantes, são quase inacessíveis devido aos custos dos transportes, à sua irregularidade e escassez. Resolver as ligações inter-ilhas será, pois, o gatilho para a promoção deste tipo de turismo (e não só). E para quem acha que o mercado emissor cabo-verdiano não compensa, atente em dois valores que sendo baixos merecem alguma atenção: 10% e 4,3%.
(Já vamos aos números. Primeiro, as pessoas.)
“Eu nunca saí de Santiago.” Jussara tem 19 anos e, embora conheça a ilha onde nasceu relativamente bem, nunca foi além da sua fronteira marítima. É fácil perceber os motivos, até porque a sua história não é muito diferente da de muitos cabo-verdianos. Os pais, não sendo muito pobres também não possuem rendimentos que lhes permitam dar-se a certos “luxos”, como esse de viajar. O dinheiro faz falta para garantir saúde e educação para os seus quatro filhos. A família, pelo menos aquela com quem têm um relacionamento mais próximo, mora ou em Santiago, ou na Diáspora. Quem está no estrangeiro é que costuma cá vir, “mas não todos os anos”.
Na realidade, não são pois muitos cabo-verdianos que se possam gabar de conhecer bem, in loco, o seu país. O mundo esgota-se ao esbarrar com o mar ou com o céu.
Números em ascensão
Há séculos (milénios…) que os limites físicos não constituem impedimento à circulação. Muito menos em pleno século XXI onde milhões e milhões de pessoas viajam amiúde. Em 2014, e só falando de quem viaja em turismo, houve 1.133 milhões de turistas internacionais – de chegadas internacionais, usando termos técnicos. Um número que segundo a Organização Mundial de Turismo, OMT, deverá crescer na ordem dos 3.3% anuais até 2030.
No total, a maior parte deslocou-se de avião (54%) e mais de metade (53%) viajou por motivos de ócio.
Falando apenas de turistas internos, estima-se que tenham sido entre 5 a 6 mil milhões (de acordo com o “Panorama do Turismo 2015”, da OMT).
E Cabo Verde? O panorama ainda não é brilhante. Mas mesmo assim (e agora os números) os residentes em Cabo Verde corresponderam, no segundo trimestre deste ano, a 10,1% das entradas nas unidades hoteleiras do país e a 4.3% das dormidas. Os dados são do Instituto Nacional de Estatística (INE) e mostram valores ligeiramente acima dos que tem vindo a ser registados – em 2014, por exemplo, estas entradas foram de cerca de 8.5%.
E, no entender de Carlos Pires Ferreira, Secretário-geral da Câmara de Turismo esses 10% justificam já, pelo menos, “um outro olhar para o mercado interno”. Até porque este é um mercado que pode fazer alguma diferença na mitigação dos efeitos da sazonalidade turística (ver caixa).
E esse olhar, essa atenção começa, no entender deste especialista, e outros profissionais do turismo, por uma questão fundamental: os transportes, principalmente os aéreos.
Voo-ando…
Como acima referido, há cada vez mais gente a fazer turismo, inclusive dentro do próprio país, e o avião é o transporte preferido.
Mas em Cabo Verde, é precisamente na área dos transportes que se encontra um dos maiores constrangimentos.
“Os preços são elevados – basta ver que o salário mínimo é de cerca de 11.000, mais ou menos quanto custa uma viagem de avião para o Maio. Em algumas ilhas há mesmo dificuldade de acesso, os voos são irregulares e há falta de transporte marítimo. Um dia há viagem, noutros que não, e há viagens que podem ser canceladas. Há, portanto, uma grande incerteza em termos de viagens. Um grande défice, mesmo.”
Bino Santos, director de marketing da Girassol Tours resume assim, os factores que considera terem mais impacto (a nível) do turismo interno.
O preço é também uma questão destacada por Carlos Pires Ferreira.
“Ainda temos muito trabalho para fazer na promoção do turismo interno e isso tem a ver sobretudo com o lado do preço, que influencia e muito a decisão de viajar”, frisa.
Em termos de transportes, o secretário-geral da Câmara de Turismo realça que o constrangimento a nível dos transportes (aéreos e marítimos) também se coloca “em termos da sua intermodalidade”.
Ou seja, seria importante aqui olhar para as duas formas de transporte de forma integrada, “fazer um nicho de transportes marítimos e transportes aéreos, para um pacote, por exemplo, para o fim-de-semana, ou mesmo nas férias com maior duração”.
A melhoria dos transportes levanta ainda uma outra questão que é melhoria das próprias infra-estruturas – portos e aeroportos – que suportem o aumento do fluxo.
Mas, ultrapassado este constrangimento – custo, qualificação dos transportes, acreditam os especialistas – está aberto o caminho ao crescimento do turismo. Interno, sim, mas também internacional. Mais, está aberto o caminho a uma melhoria das condições de vida nas diferentes ilhas, com consequências positivas para as suas população e combate ao êxodo.
Voltando ainda ao ponto central – o turismo interno – é ainda de apontar que muitas vezes um nacional que queira passar uma semana numa outra ilha acaba por pagar mais por essas férias do que um estrangeiro que venha da Europa.
E o principal factor deste aparente contra-senso quilométrico tem a ver, novamente, com o preço dos transportes.
“Pode-se conseguir um voo charter da Europa para a Boa Vista a um bom preço e isso já minimiza o custo. Mas ir da Praia à Boa Vista fica – só a viagem – à volta de 18 / 20 contos. Adicione-se o preço do pacote de alojamento, o valor dispara. Fica mais caro do que o pacote europeu”, explica Bino Santos, lamentando que, devido aos preços nacionais em vigor, as agências e operadores não consigam oferecer pacotes a melhores preços.
Vejamos. Numa agência de viagens portuguesa o seguinte anúncio: Hotel três estrelas na Boa Vista. Sete dias. Viagem Lisboa – Boa Vista. Transfer, visto. Preço pacote:712 euros. No mesmo hotel. Praia-Boa Vista. Alojamento 600 euros (preço promocional) . Viagem: cerca de 150. Total: 750 euros.
Entretanto foi noticiado que a TACV vai adquirir três novos aviões ATR, para renovar a sua frota. A operação irá alargar a sua capacidade operacional inter-ilhas e a transportadora de bandeira espera ainda que, ao garantir aviões mais económicos e eficientes, consiga reduzir nos gastos de combustível. Se isso se irá traduzir em baixa efectiva de preços ao consumidor, essa já é outra história.
Hotel Família
“A percentagem de cabo-verdianos que conhecem o país é muito pequena. Se conhecerem, conhecem duas ilhas, ou porque têm lá família, ou porque vão em negócio, não por motivos de lazer”, observa director de marketing Bino Santos.
Também Carlos Pires Ferreira considera que, embora alguns cabo-verdianos viajem exclusivamente para fazer férias, estes constituem ainda uma “percentagem ínfima.”
Assim, a maior parte dos viajantes cabo-verdianos acaba alojada em casa dos familiares e restringe o seu conhecimento das ilhas aos lugares onde tem parentes que o possam acolher.
As estatísticas do Turismo do INE, referentes às movimentações dos hóspedes no 2º trimestre deste ano (as mais recentes) não discriminam os motivos das entradas e dormidas. Mas não será errado concluir que a maior parte corresponde a viagens de negócios. A curta duração da estadia – 2.5 noites – parece confirmar esta ilação. No mesmo sentido, a divisão por ilhas mostra que aquela que registou mais dormidas de cabo-verdianos foi Santiago (8452), que acolhe a capital.
(Só para comparar, entre turistas residentes no Reino Unido (actualmente o maior mercado emissor), apenas se registaram 225 dormidas em Santiago, contra 132.374, na Boa Vista).
Mais uma vez, acredita-se, os preços não ajudam. O preço médio de um quarto num estabelecimento hoteleiro em época baixa, de acordo com o Relatório do Turismo do INE, de 2014, era de 3.797 escudos. Em época alta, a média subia aos 4.181 (sendo que os hotéis registam a maior subida de 6.181 para 7.303).
Algumas unidades já optam por promoções, principalmente em época baixa mas esse esforço parece não ser ainda suficiente.
Talvez seja preciso um pouco mais, e nesse sentido, considera Carlos Pires Ferreira seria importante um esforço noutro sentido. A começar pela “redução da fiscalidade”, fomentando-se uma “fiscalidade mais amiga do investimento e da economia”.
Isso é fundamental para um “pacote mais competitivo, e mais sensível ao preço. Vejamos, por exemplo, a questão do IVA. É agora de 15.5%, se mantivéssemos a 6%, para a hotelaria , para a restauração, e também para serviços ou empresas de excursão, penso que isso seria importante. Seria uma grande mais valia para nos aqui criarmos competitividade intrínseca”.
O secretário-geral da câmara turismo reforça que é necessário “ser capaz de criar competitividade intrínseca para gerar valores internamente”, evitando assim ficar de alguma forma reduzidos “à desgraça alheia” – nomeadamente as tragédias que têm vindo a acontecer a outros destinos concorrentes como a Tunísia.
Vale a pena promover
Apesar da incipiência e diversos constrangimentos ao turismo interno em Cabo Verde, este deve ser promovido.
Em todo o mundo, cada vez mais, isso acontece e acredita-se que este nicho vá crescer, acompanhando ou até ultrapassando tendências de turismo internacional, nomeadamente em África.
Ambos os entrevistados defendem essa aposta na promoção. Bino Barros refere que embora o turismo inter-ilhas seja pouco, por razões já referidas, há uma boa adesão às excursões dentro da mesma ilha. Em Cabo Verde, como em todo o mundo, as pessoas gostam de conhecer e usar o seu tempo de ócio para passear.
Nas férias, fins-de-semana ou feriados, muitos cabo-verdianos procuram fazer essas excursões. Mas se por um lado isso mostra o potencial que este tipo de turismo poderia ter na economia local, a experiência aponta também no sentido contrário. Quer isto dizer que uma eventual promoção bem sucedida de levar os cabo-verdianos a outras ilhas e com isto dinamizar a economia fora dos all inclusive talvez não seja assim tão linear.
“As agências e operadores de turismo têm tentado fazer o seu trabalho e tentar incentivar e criar propostas, mas mesmo assim os pacotes mais vendidos, neste caso pela Girassol Tours, para as ilhas, são pacotes all inclusive” para o Sal e Boa Vista, especifica.
De qualquer modo, o director de marketing, considera que há um trabalho a fazer.
“Não basta dizer que somos um país de turismo”, é preciso fazer um trabalho nesse sentido. E isso passa por “promoção e incentivos” que neste momento considera não existirem.
Para o secretário-geral da CT, Carlos Pires Ferreira, por seu lado, a aposta numa estratégia de promoção é importante para motivar os cabo-verdianos e residentes a fazer turismo no seu país.
Isso, e, atentar aos custos e voos (ver Caixa). A partir daí tudo “acontece naturalmente: a qualidade das cidades, da oferta da restauração…” Enfim, acontece o turismo.
Notícia Relacionada: