Riscos elevados tornam Cabo Verde pouco atractivo para os investidores. Além disso, uma dívida pública elevada provoca fuga de capitais, aumento dos juros e, em último caso, a bancarrota das nações.
A primeira grande questão é: os Estados podem falir? “Claro que sim”, respondia a senhora Angela Merkel, em 2008. Antes, um estudo do Fundo Monetário Internacional, feito pelos economistas americanos Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, investigou crises financeiras nos últimos 800 anos e concluiu que as falências dos Estados são um “fenómeno universal”. Muitos países, na verdade, já faliram mais de uma vez.
Aliás, em média, a cada ano que passa, há um país que entra em falência, ou seja, fica sem dinheiro para pagar as dívidas. Em pouco mais de 200 anos registaram-se 290 crises bancárias e 70 bancarrotas.
A Espanha, por exemplo, está habituada a estas andanças. Em 200 anos faliu 14 vezes, sete das quais no século XIX, mas estreou-se muito antes: a primeira vez que decretou falência foi em 1557.
Reincidente é também a França, que em menos de cem anos foi quatro vezes à bancarrota. A Alemanha nem sempre foi a «menina bonita» da Europa. Faliu a seguir às duas guerras mundiais. Nos anos 20 um café chegou a custar quase 7 contos cabo-verdianos e o preço duplicava em poucos minutos.
Portugal também já faliu por sete vezes. Em 1891, a crise foi desencadeada com a falência de dois bancos importantes (o Banco do Povo e o Banco Lusitano). Na altura, a função pública sofreu na pele o aperto do cinto: os salários caíram 20% e Portugal ficou 10 anos sem conseguir financiamento externo e um dos primeiros cortes foi nas obras públicas (na altura na construção das vias férreas).
Em 1976 a falência voltou a estar iminente. Mário Soares, na altura à frente dos destinos do país, pediu dinheiro emprestado à Alemanha. Em vez de uma transferência bancária, recebeu um avião a meio da noite. Era o FMI a chegar.
Na década de 80, o país viu-se forçado novamente a negociar um empréstimo com o FMI. Mais uma vez liderado por Mário Soares e Mota Pinto, e com Ernâni Lopes como ministro das Finanças, os portugueses tiveram de enfrentar uma forte desvalorização do escudo, o disparo da inflação para quase 30%, o aumento dos impostos e o crescimento do desemprego.
A última bancarrota mais mediática, o caso da Argentina, tem quase 15 anos e é dos mais negros. A intervenção do FMI foi um fracasso. O país seguiu as recomendações do Fundo (cortes orçamentais e aumentos de impostos) e com isso foi-se afundando. No final de 2001, as coisas pioraram exponencialmente quando o FMI negou um novo financiamento ao país. À revolta social juntou-se a queda do Governo e a bancarrota. Na altura os argentinos deixaram as suas casas com todo o dinheiro que tinham e foram depositá-lo nos bancos do Uruguai, o paraíso fiscal na América Latina. O governo congelou o acesso às contas bancárias, limitando os levantamentos a cerca de 20 contos por pessoa e por semana. Sem dinheiro, começou a violência nas ruas, a pobreza duplicou, atingindo quase metade da população e a fome espalhou-se. O Governo parou de emitir passaportes porque não tinha dinheiro para os imprimir.
Regressemos a 2008, o alarme da crise ecoava em todos os gabinetes de todos os governos. A Grécia iniciava uma espiral desenfreada rumo à derrocada financeira. Em Itália a dívida pública chegava aos 106 por cento do PIB. Até então, a Itália era considerado um país que tinha uma taxa de poupança sólida e onde os orçamentos deficitários não constituíam um problema. Para o governo bastava que os Títulos do Tesouro tivessem compradores e o ministro das finanças italiano classificava aquele tipo de investimento como “o mais sólido e seguro”. Claro que nem toda a gente compartilhou a mesma opinião, nem mesmo os italianos. Um título da dívida italiana, transaccionado no início desse ano, só encontrou compradores depois do governo de Roma ter aumentado generosamente a taxa de juros.
A dívida pública cabo-verdiana está actualmente nos 121,2 por cento do PIB, segundo as contas provisórias do 4º trimestre de 2015, do Ministério das Finanças, a que o Expresso das Ilhas teve acesso. 197.372,5 milhões de CVE, o que representa, em termos absolutos, um crescimento de 11,1% em relação ao stock do mesmo período do ano anterior, dados do mesmo documento.
Numa análise desagregada do stock, constata-se que a dívida interna situou-se em 45.998,1 milhões de CVE, o que corresponde a 28,2% do PIB. A dívida externa constitui a maior parcela da divida do Governo Central. Atingiu os 151.374,5 milhões de CVE, correspondendo a 92,9% do PIB [o total dos desembolsos externos por credor estão disponíveis na edição online do Expresso das Ilhas]. Ao contrário, por exemplo da Itália, Cabo Verde não recorre aos mercados, 99,8% da divida tem uma maturidade remanescente de longo prazo e com a taxa média anual em torno de 0,98%.
Mas, independente da forma como um país escolhe pagar a dívida, serão sempre os contribuintes a arcar com a conta final. Na realidade, o único momento em que é possível saldar o défice através da poupança do governo é durante períodos de boom económico, quando o governo pode aumentar impostos ou reduzir a despesa.
Em Cabo Verde, o serviço da dívida, no período referido no relatório do Ministério das Finanças, totalizou os 11.252,2 milhões de CVE, sendo 7.154,6 (sete milhões, cento e cinquenta e quatro mil contos) para as amortizações e 4.097,5 (quatro milhões e noventa e sete mil contos) para os juros.
A segunda grande questão é: como é que a dívida pública interfere com a economia de um país? Negativamente. Muito negativamente. Olhando ao passado recente e tendo em consideração as consequências vividas no momento actual, a discussão em torno dos reais efeitos da dívida e a sustentabilidade financeira das economias tem-se intensificado entre académicos, políticos e mesmo por toda a sociedade em geral.
A literatura tem prestado atenção não só ao impacto que a dívida pública provoca no crescimento, mas também aos canais através dos quais se efectiva esse impacto. E são várias as formas através das quais um elevado nível de dívida poderá afectar o desempenho da actividade económica, não só na vertente de curto prazo como na lógica de longo prazo.
A fuga de capitais é um exemplo de um canal através do qual a dívida pública poderá provocar um impacto adverso no PIB, essencialmente nos países menos desenvolvidos. No estudo de Cerra [Cerra, V., Rishi, M., & Saxena, S. C. (2008), “Robbing the riches: capital flight, institutions and debt”, 2008], os autores demonstram que existe uma forte evidência da relação entre a dívida pública, a fuga de capitais e o consequente impacto no PIB. Para os autores, a acumulação de dívida tende a estimular fugas de capitais, nomeadamente nos países menos desenvolvidos. De acordo com Cerra e Saxena, as economias menos desenvolvidas sofrem a chamada “the coil of a poverty trap” (armadilha da espiral de pobreza) e isso acontece mais especificamente nos países do continente africano, caracterizado por nações com custos de transporte elevados, produtividade agrícola baixa, condições geopolíticas desfavoráveis e custos com surtos de doenças bastante elevados. Tais condições geram, em simultâneo, baixos níveis de poupança e um nível de capital abaixo do mínimo necessário para iniciar um processo de industrialização.
Cabo Verde já perdeu mais de 430 milhões de dólares em fluxos ilícitos de capitais entre 2003 e 2013, como revelou o último estudo da Global Financial Integrity e que o Expresso das Ilhas avançou no final do ano passado. Em média, por ano, foram mais de quatro milhões de contos que ficaram por cobrar pelas Finanças cabo-verdianas, valor que equivale, por exemplo, aos juros pagos pelo governo pelo serviço da dívida. Ou seja, a cada doze meses, Cabo Verde perde o equivalente a 3,5 por cento do Produto Interno Bruto do arquipélago.
Outro canal através do qual a dívida pública elevada poderá provocar efeitos hostis no crescimento de médio e longo prazo é o aumento das taxas de juro de longo prazo. Baldacci e Kumar [“Fiscal deficits, public debt, and sovereign bond yields”, Working Paper do FMI, 2010] analisaram o impacto dos défices e da dívida pública nas taxas de juro de longo-prazo e concluíram que quanto maior o nível de dívida pública, maiores serão as taxas de juro de longo prazo, sendo que a grandeza desse aumento dependerá de condições específicas de cada economia (taxa de poupança privada, demografia e qualidade das instituições). Os resultados demonstraram que um aumento do rácio dívida/PIB em um ponto percentual está associado a um aumento das taxas de juro entre 2 a 7 pontos-base. Para além disso, Conway e Orr [“The process of economic growth in New Zealand”, 2000] salientam que esse impacto é influenciado pelo nível inicial de dívida. Na opinião dos autores, quanto maior o nível de dívida pública, maior é a percepção de que os governos terão menos capacidade de cumprir as suas obrigações, provocando o aumento do crédito de risco. Desta forma, o risco de pressões inflacionárias, associada a países com excesso de dívida, provoca um aumento das taxas de juro nominais de curto prazo.
E, é claro, uma das consequências mais graves é a fuga dos investidores a sete pés. Os homens de negócios evitam países com dívida elevada, por causa dos riscos inerentes, o que tem repercussões no crescimento económico e na criação de emprego. Sem investimento não há novos postos de trabalho.
Os indicadores económicos e financeiros do Banco de Cabo Verde, de Dezembro de 2015, confirmam a degradação do desempenho da economia em 2015, sobretudo por causa da retracção dos investimentos: há uma diminuição de cerca de 15% do Investimento Directo Estrangeiro conjugado com uma forte retracção do investimento público e uma estagnação do crédito ao sector privado.
Confirma-se igualmente o que os artigos do Expresso das Ilhas já tinham afirmado: as medidas tomadas pelo BCV, em Fevereiro de 2015, não tiveram o efeito esperado. Apenas aumentou o crédito a empresas públicas (cerca de 2 milhões e 300 mil contos), mas isso por causa das garantias avançadas pelo próprio Estado. O único ponto positivo é a subida significativa das remessas dos emigrantes, em cerca de 3 milhões de contos, que vieram contribuir para suavizar o impacto do fraco desempenho da economia nacional no rendimento disponível das famílias.
E é no bolso dos cabo-verdianos, no fundo, que a alta dívida pública e o baixo crescimento económico acaba por reflectir-se. O índice de preços no consumidor, referente a Fevereiro deste ano, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, mostra uma descida da taxa de inflação. Em termos simples, é uma regra do mercado: não havendo procura os preços baixam e se os preços baixam, as margens baixam, os lucros baixam, há menos produção e menos consumo. E foi o consumo que as políticas económicas tiraram aos cidadãos.
A dívida pública é sustentável? Não há uma definição unânime de sustentabilidade da dívida, mas a literatura especializada defende que a dívida pública é sustentável se puder ser reduzida (ou estabilizada) para um conjunto de hipóteses e políticas plausíveis. Isto é, a diminuição da dívida não deve depender de valores irrealistas para o crescimento económico, impossíveis de atingir, ou de ajustamentos orçamentais extraordinários, inexequíveis de aplicar.