E esse amanhã será feito de privatizações, de mais conhecimento e de novos produtos financeiros. Um dos grandes projectos é a titularização dos fundos e poderá ser fundamental para o avanço de projectos estruturais para o arquipélago.
De ideia considerada impossível a vinte anos de história, que análise podemos fazer a este caminho percorrido pela Bolsa de Valores de Cabo Verde (BVCV)?
A Bolsa de Valores de Cabo Verde foi pensada para responder à necessidade das privatizações. Nos anos 90 foi criado um vasto programa de privatizações que precisava de um instrumento de apoio a esse processo e foi nessa altura que se pensou na criação do mercado mobiliário. Na altura criou-se uma comissão instaladora que teve como objectivo estudar até que ponto era viável ou não criar um mercado de bolsa em Cabo Verde, atendendo à dimensão do país, ao facto de termos um mercado com poucos players, poucos bancos, e trabalhou-se nessa perspectiva. Na altura, pensava-se na bolsa como sendo um local com muita gente, muito movimento…
Uma espécie de Wall Street…
Exactamente, mas não havia a noção que praticamente 99 por cento das transacções não passavam pela sala de mercado. Com o desenvolvimento do sistema electrónico, a maioria das operações passavam por ele. Hoje em dia, também são as próprias máquinas que dão a ordem de compra e venda. Dos anos 90 a esta parte, muitas privatizações passaram pela bolsa. Houve um interregno em 2004/2005, fez-se uma reestruturação e uma nova largada nos inícios de 2005, ano a partir do qual temos estado a funcionar numa base diária, com várias operações. Em 2014, todas as emissões de títulos de dívida pública passaram a ser feitas através da bolsa e nos últimos anos as instituições têm focado nas colocações privadas, que não dão tanto nas vistas, mas que também são feitas pela bolsa.
Estamos a falar de que números à volta do negócio bolsista?
Em Dezembro de 2017, em operação bolsista, tivemos o valor de 67 milhões de contos. No mercado primário temos um valor de 14 milhões de contos. São valores elevados para o país, mas nem tanto em termos de escala global. Temos um mercado de bolsa à dimensão dos projectos que temos em Cabo Verde, mas ainda há muito para andar. De uma forma simples, temos quatro empresas com títulos cotados, onze empresas com obrigações cotadas, temos dois municípios com títulos no mercado de capitais, temos todos os títulos de dívida pública – 191 até ao dia 31 de Dezembro de 2017 – e depois temos também as colocações privadas. Todas as empresas que têm títulos admitidos à cotação têm estado a pagar dividendos, com a excepção da época de crise em que uma directiva do Banco de Cabo Verde limitou o pagamento de dividendos. Isso quer dizer que quem investe vê-se recompensado por esse investimento. Quem comprou títulos de dívida pública também tem estado a receber juros do investimento e só para ter uma ideia, em 2017 foram emitidos títulos de dívida pública no valor de 12 milhões de contos, mais 2,3 milhões de contos por colocação privada, e o rendimento derivado desta operação teve o valor de 2,6 milhões de contos. São dados que demonstram que o mercado de bolsa se recomenda e mesmo em períodos de crise faz-se negócio.
Aliás, os especialistas dizem que é em altura de crise que se deve investir.
Sim, o mercado de bolsa, no fundo, é o barómetro da economia.
Voltando aos números, há uma evidência: há poucas empresas cotadas. A bolsa ainda não é vista pelos empresários como uma alternativa para se financiarem?
A bolsa de valores quando foi concebida tinha como projecto inicial responder a um grupo bem específico de grandes empresas que queriam um espaço para negociar os seus títulos. Por isso é que é apontado, inicialmente, como um mercado para grandes empresas. Por outro lado, as bolsas tinham uma atitude muito mais passiva, ou seja, a bolsa não ia às empresas, as empresas é que vinham à bolsa. Este era o cenário global, mas em Cabo Verde não fugimos muito a estas questões, se formos ver, também se tem a ideia que a bolsa é só para as grandes empresas, mas que grandes empresas temos no país? Se analisarmos o contexto, mais de 90 por cento são pequenas e médias empresas. Mas outro aspecto também fundamental é que nas economias mais desenvolvidas as empresas são mais pró-mercado e em Cabo Verde não temos tanto essa cultura, de correr riscos.
Ainda temos empresários demasiado conservadores?
É um pouco a nossa herança cultural. Porque vir ao mercado implica abrir o capital, partilhar a parte accionista com os outros e muitas vezes há essa reticência à partilha. Além disso, as empresas optam preferencialmente pela dívida. Porque recorrer à bolsa obriga a uma série de requisitos que muitas empresas não conseguem atingir: governance, prestação de contas, auditoria. É por isso que há um trabalho a fazer para chegar lá. Temos estado a caminhar em direcção das empresas, mas ainda há uma distância que tem de ser diminuída. Porque quem vai investir são as pessoas e querem ter salvaguardado que o investimento vai ter retorno. No fundo, tem de haver uma troca, quem vem ao mercado tem de trazer informação para os que querem investir e estes terão de investir mais vezes. Independentemente disso tudo, há outros nichos que estamos a absorver para dar resposta às empresas que não podem vir ao mercado regulamentado, por isso temos a colocação privada, não só para as empresas que não têm acesso ao mercado regulamentado se poderem financiar, como para as que podem, que numa primeira fase podem experimentar a colocação privada como, digamos, uma experiência.
Tem-se visto isso em economias em desenvolvimento, criar modelos para que as pequenas e médias empresas também acedam à bolsa.
Estamos a trabalhar no sentido de haver uma solução para esses casos. É lógico que não poderemos responder a todos, mas pelo menos há um nicho específico, com características específicas, virado para empresas que tenham um potencial de rendimento maior e assim possam inspirar mais confiança junto dos investidores. Mas aqui estamos a falar na criação de um segundo mercado que responda a isso. Hoje em dia temos investidores que investem por categorias, uns mais na tecnologia, outros no ramo imobiliário e há outros que se sentem mais habilitados a colocar os seus fundos em investimentos que, apesar de apresentarem um maior risco, têm também uma maior possibilidade de compensar o investimento feito. É dentro dessa perspectiva que queremos criar novos instrumentos. Aliás, para as pequenas e médias empresas a ideia é pensar numa espécie de pacote que inclua não só financiamento, mas também a capacitação das próprias empresas para poderem responder a estas necessidades de auditoria, ou de competitividade.
Uma capacitação dada pela própria bolsa?
Não só pela bolsa, mas em parceria com outras instituições que prestam este tipo de serviços, no sentido de encontrar respostas para as pequenas e médias empresas. Porque uma coisa é certa: há investidores que querem investir, mas só o fazem tendo em conta a empresa e o risco. E as empresas terão também de saber oferecer para receber os fundos necessários para alavancar os seus projectos.
No fundo, será uma forma de dar mais dinâmica ao mercado bolsista cabo-verdiano, apoiando-se nestas PME’s que representam mais de 90 por cento do empresariado nacional?
Numa perspectiva mais geral, sim. Porque essa é também a nossa perspectiva: mais títulos emitidos, alargar a base dos investidores, mas também queremos inovar noutros produtos que não apenas os mais básicos.
Como disse no lançamento das comemorações dos 20 anos da BVCV, há desafios, mas também oportunidades. Agora fala em novos produtos. Quais?
Quando falo em novos produtos refiro-me à questão da titularização dos fundos, que é algo em que estamos a apostar fortemente. Porque a ideia passa por encontrar soluções internas para as questões internas. Temos uma necessidade de financiamento para investimentos na área da requalificação urbana, no sector turístico, imobiliário, etc., ou seja, estamos a falar dos fundos de turismo, ambiente e rodoviário. O que queremos fazer é estruturar o financiamento, alavancando esses fundos. Ou seja, posso antecipar recursos, financiar as actividades dentro desses âmbitos – requalificação urbana, saneamento, acessibilidades – tendo por objectivo aumentar a capacidade do país em atrair mais turistas, ou melhorar as condições em que as empresas operam. Porque se o país cresce, o mercado também cresce. Esse trabalho começa com os fundos, mas será alargado a qualquer outro activo que seja possível autonomizar e negociar nos mercados, como produtos bancários.
Como irá decorrer o processo?
Vou dar o exemplo do fundo do turismo. Temos assistido ao crescimento do sector turístico nos últimos anos, à volta dos 10% a 12%. Falar do crescimento do número de turistas é falar também do aumento da contribuição turística. A perspectiva de crescimento para os próximos anos continua em cerca dos mesmos 10% a 12%. Isso quer dizer que nos próximos anos, a contribuição turística vai continuar igualmente a aumentar nessa proporção. Admitindo esse crescimento, hoje eu posso antecipar entre 60% a 80% desse valor, numa perspectiva entre 5 a 10 anos. Ou seja, daqui até 2028, posso antecipar essas receitas, tendo por base a previsão anteriormente falada, e financiar as actividades. Como se consegue isso? Crio uma sociedade veículo e todas as receitas que entrarem no futuro terão de ir para essa sociedade, para servirem de pagamento das amortizações e dos juros do investimento que fui buscar ao mercado.
E porque não ir buscar 100 por cento do fundo turístico calculado para esses anos?
Por uma questão de minimização de riscos. Antecipa-se 60% a 80% porque temos de ter em conta que pode haver flutuações na procura turística do arquipélago, porque há variáveis que não prevemos. Esta solução já existe noutros países e há investidores que consideram este tipo de operação menos arriscado. Por isso creio que haverá muitos interessados.
Quando estarão esses títulos no mercado?
Durante o ano de 2017 alterou-se a legislação para permitir esta solução. Neste momento estamos na fase de operacionalização. A proposta que temos sobre a mesa é que ainda neste primeiro trimestre a sociedade veículo terá de ser criada.
Mas, como ficou acordado, o fundo do turismo será para usar pelas autarquias em investimentos de recuperação urbanística, só para dar um exemplo. Mediante as suas necessidades de financiamento, eles vão recorrer a estes títulos?
As necessidades já foram todas levantadas. Uma das vantagens é que obrigou a que todos os municípios fizessem esse levantamento e já sabem para onde querem que o dinheiro vá. Ou seja, em vez de estarem a receber pequenos montantes por ano, podem agora receber quatro ou cinco vezes mais esse valor e podem pensar de forma mais estratégica em projectos estruturantes para o município. Esta solução tem essa vantagem, não se perdem oportunidades e fazem-se investimentos que atraem outros.
Ou seja, já há certezas com o que se vai fazer com o dinheiro.
Exactamente. Todo este processo serviu também para isso. E tenho a certeza que em 2018 vamos ver muitos projectos alavancados desta maneira. Temos estado, aliás, a receber indicações muito positivas de investidores tanto internos como externos. Além disso, ficamos com a certeza que o dinheiro vai mesmo para esses projectos e não, por exemplo, para resolver problemas de tesouraria. É essa necessidade de prestação de contas que precisa de ser criada.
2018 será também um ano de privatizações. Se assim for, pensa que isso irá dar um impulso também forte à BVCV?
No passado tivemos um papel relevante nesse processo e estamos a contar também que nesta nova fase possa acontecer o mesmo. Mas a proposta vai um pouco mais além, para que no futuro, se essas empresas precisarem de um aumento de capital, ou de contrair um empréstimo, haja já toda a informação necessária para esses processos, uma vez que tiveram de a prestar quando recorreram à bolsa para as privatizações. Portanto, se o mercado já conhecer as empresas, mais facilmente estas obterão financiamento. Porque as empresas que melhor se conseguem financiar são as que têm nome no mercado, que dão informação que inspira confiança aos investidores. Portanto, com este processo, queremos também trabalhar o historial da empresa para que as pessoas possam investir. Hoje, o grande inimigo do mercado é a falta de informação.
Por falar em informação, a literacia financeira é uma das preocupações da Bolsa. Pensa que será necessário um esforço grande para ensinar, no fundo, como funciona o mercado financeiro?
A literacia financeira é um desígnio nacional. Deve começar logo no ensino primário e todos os players, bolsa, bancos, etc., temos essa obrigação, seja ensinar a importância da poupança, seja ensinar a melhor forma que as pessoas têm de aplicar os seus recursos. Aliás, a crise financeira teve essa falta de conhecimento como base.
Foi a ignorância que criou a crise financeira?
Claramente. E os países que melhor souberam sair da crise foram aqueles onde a literacia financeira era maior. Claro que há produtos complexos, que nem todos podem compreender, mas tem de haver um conhecimento mínimo. Mais, tem de haver toda uma cultura virada para a finança. Como disse antes, saber a importância do poupar, ter a noção do futuro. É uma responsabilidade que temos: educar as próximas gerações. Como já a tiveram as gerações anteriores, por trás da história do dinheiro guardado no colchão há toda uma noção de futuro, enquanto hoje passámos para uma sociedade mais imediatista, mais de consumo exagerado, sem pensar no amanhã. E se não poupamos, ficamos à mercê da poupança externa. Temos estado a fazer o nosso papel, temos parcerias com universidades, com escolas, tentamos englobar outros players, e vamos fazendo. Avançando um pouco mais, estamos agora a criar um instituto de mercado financeiro e de capitais para podermos responder a essa questão da literacia financeira de forma mais autónoma, onde teremos formações direccionadas seja para estudantes, seja para investidores quando há produtos novos que queiramos lançar no mercado.
Falamos muitas vezes em Cabo Verde da dimensão pequena do mercado, de todos os mercados. Em relação à Bolsa de Valores, qual poderá ser o seu papel no contexto africano, e mesmo mundial?
Hoje em dia quando se fala em país pequeno pergunto-me até que ponto a dimensão do país interessa. Quando vemos países como a Suíça, ou o Luxemburgo, vemos países pequenos, mas vemos também grandes praças financeiras mundiais. Como o conseguiram? Porque criaram um modelo de negócio que interessa a todos. Em Cabo Verde também temos de ter um modelo de negócios, porque há coisas que sabemos fazer e fazemos bem. A Bolsa está aqui, mas os investidores são globais. Cada vez mais há pessoas na Índia, na China, atentas a todas as oportunidades e que investem globalmente. Para tirarmos proveito disso, temos de estar ligados com outros mercados e temos de ter projectos com dimensão que atraiam a atenção desses mercados.
Ser mais ambicioso é que marca a diferença?
Sim, mas tem de partir de todos os players. Nós temos ambição, mas queremos que os empresários, os investidores, sejam também ambiciosos. Porque por mais condições que criemos, se não tivermos empresas ou investidores não chegamos lá. Tem de ser uma ambição de todo o país. Dinheiro há, precisamos é de projectos que sejam atractivos para que os investidores coloquem lá os seus recursos.
Como antevê o cenário do mercado de capitais a médio prazo?
A Bolsa de Valores de Cabo Verde tem estado a crescer. Atendendo à perspectiva de se avançar com o processo de privatizações, atendendo às novas soluções de financiamento sobre a mesa, atendendo ao excesso de liquidez que actualmente existe, atendendo que cada vez mais temos melhores e maiores empresas, atendendo que haverá cada vez mais a necessidade de diversificação de risco e o reconhecimento da relevância do mercado, atendendo que muitas empresas que recorreram uma vez ao mercado e que regressam a segunda e a terceira vez, penso que o mercado tenderá a crescer e, logicamente, a bolsa acompanhará esse crescimento.
O que é para si a bolsa ideal?
A bolsa é um mercado de trading, portanto, para mim, a bolsa ideal é aquela em que há muita liquidez, muita compra e venda de títulos, com plataformas cada vez mais modernas. No fundo, um ecossistema financeiro onde as pessoas sabem mais, investem mais e ganham mais.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 844 de 31 de Janeiro de 2018.