Mário Gavião: É contraproducente criar normas excessivas

PorJorge Montezinho,30 set 2018 8:56

​A Comissão do Mercado de Capitais(CMC) é a entidade reguladora do mercado financeiro da terceira maior economia da África subsaariana, pelos que os desafios, como sublinha o presidente Mário Gavião, são enormes.

Em entrevista ao Expresso das Ilhas, o responsável fala do impacto dos mercados financeiros no crescimento económico, da evolução do mercado angolano, dos desafios da regulação e das medidas políticas do actual executivo para acelerar a abertura da economia aos privados.

Está em Cabo Verde para falar do impacto do mercado de valores mobiliários no crescimento económico. Começo por aqui: qual é esse impacto?

Os dados empíricos mostram que há uma forte correlação entre a economia, ou a macroeconomia, e os mercados mobiliários. E como o mercado de valores mobiliários é muito sensível a estas variáveis macroeconómicas, podemos não conseguir ter o desempenho e o desenvolvimento que os mercados necessitam para apoiar o desenvolvimento económico.

Quando falamos de variáveis macroeconómicas estamos a referir-nos ao crescimento do PIB, às taxas de juro, à inflação, à dívida pública, tudo tem impacto no desempenho do mercado de valores mobiliários.

Tudo, porque pode não gerar mais poupança, a poupança pode não ser canalisada para o investimento, etc. Há um conjunto de dados que condiciona o mercado de valores mobiliários.

Qual tem sido a evolução dos mercados angolanos? Houve alterações no poder executivo, está a haver uma saída do Estado do mercado, há uma maior abertura económica, uma legislação mais amiga dos negócios. Qual tem sido a resposta por parte dos investidores?

Os sinais que vamos tendo são positivos. Temos um novo Presidente da República que aponta como objectivo fundamental a moralização da nossa economia e do nosso Estado. Só assim conseguimos atrair investimento estrangeiro de carteira, no mercado mobiliário. Todas as iniciativas que o Presidente da República de Angola teve nos últimos tempos têm sido de diplomacia económica exactamente no sentido de mostrar aos mercados que Angola tem um novo rumo, um caminho de transparência, da moralização do próprio Estado. Porque só assim o investidor se sente seguro. Temos tido algum reflexo já, algumas instituições têm visitado Angola, temos bom feedback por parte das instituições internacionais como o FMI e o Banco Mundial e isso vai servindo de barómetro. Ou seja, as iniciativas têm dado resultado.

E num curto espaço de tempo.

É verdade. Porque o processo tem sido firme. O discurso do Presidente da República João Lourenço tem sido coerente. Não esqueçamos que mal tomou posse apresentou uma série de medidas, que seriam transitórias mas com efeito para o futuro, que apontavam exactamente para alvos específicos: combate à corrupção, transparência, prestação de contas, auditoria às empresas, redução do peso do Estado na economia. Agora temos de passar para outra fase e exactamente para reduzir o peso do Estado na economia e para diminuir a despesa que as empresas públicas representam para o Orçamento de Estado, o executivo angolano está a trabalhar no plano das privatizações. Já estamos numa fase avançada, provavelmente vai ser aprovado nos próximos dias e foram seleccionadas uma série de empresas para as privatizações. Algumas delas, as que têm condições para tal, serão privatizadas via bolsa e outras seguirão o processo normal. Também assim se mostra a abertura para o investimento privado.

E consegue-se outra mudança importante, concorrência.

Exacto. Enquanto tivermos o Estado com uma presença forte na economia teremos sempre dificuldades em gerir a questão da concorrência, porque temos privados e temos Estado a concorrer com os privados. Nós temos apoiado o executivo neste caminho, quer no programa de privatizações como nas formas de atracção de capital.

A entidade reguladora tem aqui um grande desafio, garantir que tudo decorra com transparência. É o maior de todos ou é um dos?

Diria que é um dos desafios. Felizmente a CMC tem vindo a trabalhar neste sentido. Em termos de regulação temos normas suficientemente bem estruturadas e abrangentes para que o mercado de capitais possa funcionar bem. E digo suficiente porquê? Porque é contraproducente criar normas excessivas. Estamos a falar de um mercado nascente e que é sensível aos próprios custos da regulação, pelo que é preciso termos o equilíbrio necessário. Não podemos ter normas que são para um mercado como o brasileiro ou o português num mercado como o nosso. É preciso temperar com a nossa realidade. Felizmente, hoje, temos uma regulação virada para a realidade do país. A CMC não deixa de estar dentro do contexto angolano.

Tanto que estão todos a crescer juntos, CMC, bolsa, abertura do mercado, e tem de se evitar as desconfianças e, principalmente, a sombra da corrupção.

Exactamente, daí ter referido a coerência do discurso e das acções do Presidente da República. E faz todo o sentido. Acho que é altura de mostrarmos ao mundo que África, e Angola em particular, não é só corrupção. Que há pessoas que trabalham de forma honesta e organizada.

Ao mesmo tempo é uma mensagem para o exterior: nós temos regras.

Precisamente. Não podemos esquecer que Angola emitiu recentemente eurobonds. Se quisermos continuar a ter aceitação lá fora, continuar a fazer emissões e captação de investimento, temos de dar sinais, e estamos a fazê-lo. E os custos de financiamento acabam por ser menores.

Das atribuições da CMC (estimular a poupança e a sua aplicação em valores mobiliários; promover a organização e o funcionamento regular e eficiente do mercado de capitais; assegurar a transparência do mercado e das transacções; assegurar aos investidores e intermediários financeiros informação suficiente, verídica, objectiva, clara, acessível e atempada) quais considera ser as que colocam o maior desafio?

É uma pergunta pertinente, porque vamos tendo alguma dificuldade em lidar com essas atribuições. E porquê? Porque ao contrário de muitas entidades reguladoras nós surgimos primeiro que o mercado, portanto, tivemos de fazer também alguma promoção. E apostámos muito nisso, na criação de condições, e agora estamos na fase de passagem da pasta para a bolsa de valores. Agora estamos a dar importância às outras atribuições, estamos numa fase de mudança, com a preocupação a ir mais a supervisão, a regulação, em dar transparência ao que já existe. Daí a importância da bolsa de valores, fundamental para que a CMC vá tirando o chapéu da promoção e assumir a sua verdadeira vocação. Se não, podemos correr o risco de estarmos muito preocupados com a promoção e não nos apercebermos de situações de supervisão, o que pode ser perigoso.

No site da CMC um dos temas a que é dado muito destaque é a literacia financeira. É o próximo grande desafio?

Perfeitamente. Aliás, temos uma área específica na CMC que lidera esse processo e para nós é importantíssimo. A supervisão só consegue fazer bem o seu trabalho se os investidores conhecerem o mercado. É preciso explicar o que é o mercado, como funciona, o que é uma acção, o que é uma obrigação, o que é necessário ter em conta quando analisamos um balanço, etc. Temos um programa de literacia financeira, trabalhamos com o Conselho Nacional de Estabilidade Financeira, com o Banco Nacional de Angola, com a Agência Reguladora do Sector de Seguros, em acções que devem ser conjuntas para não termos muitas iniciativas avulsas. A ideia é falar do mercado, de forma clara e simples, e para a população em geral, para que as pessoas saibam como funciona, quais são os riscos e também quais são as virtudes, se não houvesse virtudes não haveria mercados. Todas as grandes economias têm uma bolsa de valores forte, tem um mercado de capitais forte, que sustenta o desenvolvimento económico, que financia as empresas.

O mercado financeiro angolano poderá chegar ao mesmo nível do sul-africano, por exemplo? E falo do sul-africano porque é o maior do continente.

Eu vou falar um pouco disso na apresentação que vou fazer. Na verdade é olhar para o contexto angolano, olhar para o contexto africano e perspectivar o futuro. É uma espécie de exercício académico que vou procurar fazer e que aborda exactamente isso: onde podemos chegar? Como podemos estar em termos de capitalização bolsista dentro de 15 ou 20 anos? Não é, portanto, uma projecção de curto prazo. Não queria adiantar já as conclusões (risos)

Não vamos adiantar as conclusões que vai apresentar na próxima quinta-feira, mas diga-me uma coisa, devemos estar optimistas ou pessimistas?

Nós estamos muito optimistas.

É isso que os investidores querem ouvir.

Os dados mostram isso. A nossa economia é a terceira na África subsaariana, só podemos estar optimistas. Agora, é necessário ainda muito trabalho, literacia, a consolidação do quadro macroeconómico, transparência, o funcionamento dos tribunais, Doing Business.

E no Doing Business Angola tem mesmo ainda um grande trabalho pela frente.

Também vou falar disso na minha apresentação. Essa é das tais questões que temos de admitir que temos de fazer muito.

Dependerá muito da vontade política, que parece haver. O que significa que Angola pode dar um salto na tabela de um ano para o outro e não seria algo novo, aconteceu, por exemplo, com o Ruanda.

Exactamente. E o nosso presidente está a fazer o seu papel. Cabe a nós, os executores, fazer o nosso trabalho, criar formas de desburocratização, por exemplo, tornar os processos mais claros, mais rápidos, para que os investidores se sintam mais confortáveis com o destino. Temos de estar todos engajados.


Mário Gavião

Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, onde se especializou em Ciências Jurídico-Económicas. Ao longo do seu percurso profissional, desempenhou funções como responsável pelo Gabinete de Supervisão e Contencioso da CMC, como professor convidado e regente da cadeira de Direito das Sociedades (Universidade Lusíada de Angola), Director do Gabinete de Compliance e Assessor Jurídico Principal do Conselho de Administração no Banco Angolano de Investimentos (BAI), entre outras. Em 2011 fez parte da Comissão de reestruturação e gestão da CMC e em 2012 foi nomeado Administrador Executivo da Comissão do Mercado de Capitais. Em Outubro de 2017, foi nomeado, por Decreto Presidencial, Presidente da Comissão do Mercado de Capitais, ficando responsável pela Instituição.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 878 de 26 de Setembro de 2018.

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Autoria:Jorge Montezinho,30 set 2018 8:56

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  1 out 2018 11:38

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