Importa começar pelo início e perceber o que distingue e aproxima economia azul de economia marítima. Kátia Neves, economista, em representação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em Cabo Verde, ajuda-nos a estabelecer as diferenças.
“A economia marítima engloba os sectores produtivos que estão relacionados com o mar e também a forma como estes sectores exploram os recursos para a produção de produtos e serviços. Temos como exemplo a exploração dos recursos oceânicos para as pescas, aquacultura, a questão da exploração dos minerais, por exemplo, do petróleo, actividades que se realizam ao longo da costa, como é o caso do turismo. Na economia azul, o conceito, a abordagem são diferentes, ou seja, essas actividades devem ser feitas visando a sustentabilidade dos ecossistemas oceânicos, intervindo de forma positiva, ou seja, executadas para que os ecossistemas marinhos se mantenham resilientes, sustentáveis e duráveis ao longo do tempo”, resume.
Para o biólogo Pedro Geraldes, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), actualmente em Cabo Verde, a colaborar com a organização não-governamental Biosfera, a exploração dos recursos, para ser duradoura, só pode ser ‘azul’.
“Na minha óptica, parece-me que há coisas que se misturam. Até que ponto é que se pode falar de uma economia azul que não se sobrepõe, em determinadas partes, à economia marítima?”, questiona.
“Quando falamos do sector das pescas e do sector do turismo, se não forem sustentáveis, daqui a alguns anos, podem ser 2 ou 20, deixam de existir. Temos muita tendência a dividir o mundo em caixinhas”, responde.
A construção de uma economia azul – que liga mar e terra – é um desafio complexo, que supõe mudanças na forma como encaramos o sistema produtivo e que obriga à passagem de um modelo de produção linear, para um outro, circular. A bióloga oceanógrafa, Corrine Almeida, acredita que, para ser bem-sucedida, a economia azul deve ir além da sustentabilidade ambiental, ao encontro da sustentabilidade económica e social.
“O sistema de produção tem sido feito de forma linear. Pega-se na matéria-prima, ela é processada e são libertados vários resíduos que são colocados de lado. A ideia da economia azul é procurar aproveitar, por exemplo, as saídas de carbono e utilizá-las para produção de microalgas que podem ser utilizadas na alimentação, como fertilizantes. É utilizar a inovação tecnológica para fazer com que, ao invés de ser linear, a economia seja circular. Isto levaria a menor custo ambiental, geraria menos resíduos, criando mais empregos e maior igualdade social”, explica.
Clarificamos: a economia circular é um tema em voga, associado a uma mudança de paradigma e uma resposta aos problemas ambientais. Ao contrário da “extracção, produção e eliminação”, a economia circular foca-se em manter o valor dos produtos e matérias-primas durante o maior período de tempo possível.
Docente e investigadora da Universidade de Cabo Verde, Corrine Almeida lamenta que os debates que se têm feito sobre a economia azul a aproximem da economia marítima, precisamente, por não incluírem uma ‘visão circular’ de exploração de recursos.
“Será uma questão de mudar mentalidades e espero que nos preparemos para assimilar, de facto, esse conceito”, ambiciona.
Também para a FAO a aposta deve ser ‘azul’. Kátia Neves realça a necessidade de se transformar a abordagem.
“Há uma tomada de consciência, por parte dos países, de que a forma como a exploração dos recursos marinhos está a ser feita não é sustentável”, identifica.
Cabo Verde adoptou, em 2015, a Carta para a Promoção do Crescimento Azul. Na remodelação governamental no final de 2017, foi criado um Ministério da Economia Marítima, com um ministro, José Gonçalves, e um secretário de Estado, Paulo Veiga. Ao longo de vários anos, no actual governo ou naqueles que o antecederam, o mar e as suas oportunidades têm estado no centro do discurso político – até 2016 falava-se de ‘cluster do mar’ – mas o caminho entre a teoria e a prática não tem sido fácil.
A Cabo Verde Ocean Week, em Novembro (ver caixa), será o evento mais mediático relacionado com a estratégia do governo, mas ao longo do ano têm-se sucedido encontros em torno da temática. Em Abril, durante o lançamento do Plano Nacional de Investimento para a Economia Azul, o secretário de Estado Paulo Veiga afirmou que a economia relacionada ao mar constitui “o coração da economia” cabo-verdiana. Mais recentemente, em Setembro, Veiga ambicionou “uma mudança de atitude para a sustentabilidade do ecossistema”.
A grande pergunta à procura de resposta continua a ser a mesma: de que forma um país arquipelágico pode tirar o melhor proveito do mar que o rodeia?
É também isso que quer saber Belarmino Lucas, presidente da Câmara de Comércio de Barlavento. “Como fazer com que os recursos que temos disponíveis no mar, ou relacionados com o mar, possam ser benéficos para a nossa economia, possam propiciar a criação de empregos, o crescimento do PIB, a melhoria do bem-estar e da qualidade de vida das populações?”
“Nós tivemos a experiência, se calhar conceptual, do cluster do mar. Neste momento, estamos a orientar-nos pela proposta do Governo para a Zona Especial de Economia Marítima, que aposta, sobretudo, na criação de bases logísticas para actividades ligadas ao mar. Toda a ilha [de São Vicente] com uma organização e um ordenamento territorial vocacionados para este propósito de desenvolvimento de actividades com ligação ao mar. Estamos a falar, inclusivamente, do turismo ligado a actividades náuticas. Tudo isso com o seu enquadramento regulamentar próprio, incentivos fiscais específicos, uma legislação específica que permite atrair investimentos, mas tudo isso, naturalmente, tendo como orientação geral a gestão racional desses recursos e a sua sustentabilidade”, sintetiza, com um alerta: “este é um projecto de gerações”.
No final de 2017, a FAO assinou com Cabo Verde um acordo ao abrigo do qual é disponibilizado ao Governo um milhão de dólares para a promoção da economia azul. Kátia Neves, da organização, recorda que no mar “as oportunidades são várias”.
“A forma como vamos gerir estes recursos, conservá-los, tratar de assegurar que a população obtém os benefícios é que tem de ser alterada, feita com a colaboração de todos os sectores”, estabelece.
“O grande desafio para os pequenos estados insulares e, no caso, Cabo Verde, vai ser sempre como fazer a gestão e a fiscalização de uma zona extremamente grande. Também como podemos mobilizar os parceiros, sejam eles privados, nacionais ou internacionais, para garantir que conseguimos dar respostas a uma população crescente, em termos da sua segurança alimentar e emprego”, antecipa a economista.
Os desafios colocados pela economia azul não têm resposta fácil. Ao mesmo tempo que se exige sustentabilidade – para se ter durabilidade – reconhece-se que muitas das medidas que forem tomadas agora só produzirão efeitos a longo prazo, para lá do nosso tempo, e ao fim de muitos ciclos políticos. Este desencontro de tempos é, também ele, desafiante.
“Se não adoptarmos determinadas políticas azuis e determinadas políticas de sustentabilidade, só vamos notar daqui a 100 ou 150 anos”, antevê Pedro Geraldes.
Alterar consciências implica repetir ideias, explicar causas e efeitos e encontrar alterativas para quem não tem tempo a perder.
“Às vezes é difícil tomar estas decisões numa perspectiva curta, porque a vida das pessoas depende disso”, reconhece.
“É bom continuarmos a falar sempre nos mesmos assuntos, para que comece a haver mudança de mentalidades”, remata.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.