O fim da pobreza é um processo

PorSara Almeida,1 jun 2019 10:09

Já toda a gente ouviu falar de Micro-crédito. Mas sabe como este tipo de crédito começou e quais os pilares que o norteiam? Nesta entrevista, que é uma espécie de introdução ao pensamento de Mohammad Yunus, o “pai” do Micro-crédito conta a estória desta inovação social por si delineada. De forma simples e directa, fala ainda do conceito de Negócio Social e de como se constroem estes processos de transformação social.

Começando pelo início, em 1976, quando deu aqueles 27 dólares àquelas artesãs, sabia que o que estava a fazer seria algo diferente de “caridade”?

Eu não fazia ideia do que viria a ser. A minha ambição imediata era apenas proteger algumas pessoas dos agiotas. E tive essa oportunidade. Essas mulheres, que trabalhavam com bambu, não tinham dinheiro para comprar esse bambu. Então tinham de pedir emprestado ao comerciante, e então pagar-lhe com altas taxas de juro. Eles ficavam-lhes com praticamente todo o dinheiro do negócio. Perguntei-lhes: “Se eu vos der esse dinheiro, vocês ficam com o lucro para vocês?” E elas disseram que sim. Foi assim que começou. Dei-lhes dinheiro e outras fabricantes de bambu também quiseram. Dei. No total foram 27 dólares.

Mas então houve, no início, um pouco de caridade? E pergunto isto porque sei que é muito crítico em relação à caridade, uma vez que esta não muda o “sistema”.

Não foi caridade, porque disse-lhe que tinham de devolver o dinheiro, que era um empréstimo. Não falei, na altura, de juros. Disse apenas: “devolvam o dinheiro, quando puderem, quando for possível”. Então, eu não estava a dar, estava a emprestar.

Foi, de certa forma, um salto de fé, de confiança nessas mulheres e suas capacidades?

De certa maneira, sim. Fé nas pessoas porque eu tinha esperança que elas pagassem, e elas fizeram-no a 100%.

As garantias mútuas morais também ajudaram a essa taxa de retorno?

Naquele tempo, não havia. Não havia nada. Dei apenas o dinheiro e elas prometeram devolver. Depois, gradualmente, quando começou a tornar-se grande, tivemos de nos organizar. Deixamos de conhecer, individualmente, os beneficiários. Não sabemos quem são. Então agrupamo-los. Juntamo-los. Mas os grupos também passaram por muitas fases. No início, como havia muitas mulheres, encontrávamo-nos com metade na noite de domingo e a outra metade na manhã de segunda-feira. Tornou-se então um grupo por dia. O grupo de domingo, o grupo de segunda-feira, o grupo de terça-feira… Fomos crescendo. Depois vimos que, assim, era muita mistura, uma espécie de trapalhada... Porque umas pessoas estavam a levar o dinheiro para [investir em] vacas, outras para galinhas, etc. Então pensamos que uma boa ideia seria agrupá-las de acordo com aquilo para o que pediam dinheiro. Mas vimos que alguns grupos se estavam a tornar muito grandes, e outros continuavam muito pequenos. Pensamos, “vamos esquecer isto e fazer grupos de 5 pessoas”. Cinco pessoas formam um grupo. Foi passo a passo...

E continuaram a crescer. Como explica este sucesso do Microcrédito, porque em temos outros tipos de empréstimos não é tão comum ver estas taxas de retorno, de quase 100%?

É verdade, mas nós estávamos tão perto uns dos outros, sabíamos o que se passava, e quando fizemos os grupos, tornamos cada grupo responsável por ver se toda a gente estava a fazer o correcto. Se estiverem em dificuldades e não conseguirem pagar, o grupo deveria suportá-la, ajudá-la, de modo a que ela conseguisse ultrapassar o problema. E outra coisa que eu penso que funciona bem é que dizemos: “Se não pagas de volta, não podemos dar-te mais dinheiro. Se devolveres, então damos-te mais”. Isso é um incentivo para pagar pois querem ter acesso a mais dinheiro.

Não sei se no conceito “original” funciona desta maneira, mas aqui é comum que as pessoas que beneficiam de micro-crédito, particularmente das ONG, têm um seguimento, e recebem formação. As beneficiárias dizem que essa vertente é fundamental. Também a disponibilizam?

Não. Nós não gastamos nenhum dinheiro em formações, ou essas coisas. Achamos que elas aprendem umas com as outras.

Mas considera que esse apoio que dão, na literacia financeira e de negócios, é importante?

É importante, mas nós não gastamos nenhum dinheiro nisso. Porque qualquer dinheiro que gastemos nisso é um custo para eles. Têm de pagar de volta, então tentamos colocar o custo tão baixo quanto possível.

Defendeu a criação de um banco do povo em Cabo Verde. Já tivemos uma experiência a esse nível [o Novo Banco] que, por vários motivos, não correu bem. Isto para perguntar: como se garante a sustentabilidade destes bancos?

A mesma coisa aconteceu nos EUA. Explicaram-me que tentaram usar o micro-crédito muitas vezes, centenas de vezes, e todas as vezes falharam. Então, não há hipótese de que funcione nos EUA? Podes fazê-lo centenas de vezes, podes falhar centenas de vezes. Mesmo assim, eu digo que irá funcionar. Perguntam porque falharam e eu digo: falharam porque não sabem como fazê-lo. Não culpem as pessoas. Se o vosso banco falhou foi porque as pessoas que estavam por detrás do banco não souberam como fazê-lo. Não é culpa do banco, não é culpa das pessoas. São os designers e implementadores que falham. Não o povo.

Mas como garantem que um Banco voltado para o Micro-crédito cresça e seja sustentável?

Começamos com 27 dólares, e emprestamos mais de 3 mil milhões de dólares por ano [NR: no Grameen Bank, banco fundado por Yunus]. Ninguém garante nada. Acontece, não há ninguém “de cima” que garanta. Nada garante. Sabemos que está a funcionar, continuamos a fazê-lo da mesma maneira e temos os mesmos resultados todos os anos.

Entretanto há dados que apontam que um beneficiário demora 5 a 15 anos a sair da linha da pobreza. Como podemos acelerar este processo?

É como quando tens um bebé. Queres acelerar o processo [de crescimento], mas se o alimentas demais, ele morre. Assim, há uma natureza intrínseca ao processo, o que pode ser feito. Não podes acelerar o processo. Não podes ter um bebé hoje e amanhã ele estar a andar e a correr. Não é possível. Plantas uma semente, não tens uma árvore no dia seguinte. Nem sequer tens uma folha. As folhas demoram a brotar. Esperas. O mesmo com as coisas humanas. Podes ajudar, tentar ver se há algo que podes fazer que ajude a melhorar, que ajude a que as coisas funcionem melhore, mas não esperes que, de repente, mude tudo. Não vai mudar. Em tudo há um processo.

Temos hoje vários tipos de micro-crédito, que penso poderem reduzir a dois principais: o das ONGs e associações sem fins lucrativos e o dos bancos comerciais, que é mais um instrumento da banca. Que diferença vê entre estes tipos?

A única diferença que eu vejo é que alguns chamam a um certo tipo de crédito, micro-crédito, mas usam esse processo para ganhar dinheiro com os pobres. Ora, o Micro-crédito não deve ser um instrumento para ganhar dinheiro com as pessoas pobres. Isso é ser um agiota. Nós desenhamos o Micro-crédito como um negócio social, no qual a intenção não é ganhar dinheiro. É ajudar as pessoas a sair da pobreza. E cobre-se o custo. É isto.

Mas não é necessário lucro para poder crescer. Para poder ter mais dinheiro para emprestar, para ter mais funcionários e balcões, etc?

Não precisamos disso porque somos um banco. Temos depósitos. As pessoas depositam o dinheiro e nós emprestamos o dinheiro às pessoas. Não é dinheiro do lucro, é dinheiro dos depositantes. É isso que define o banco. É por isso que é muito importante ter um banco para os pobres.

Aqui em Cabo Verde, a aposta no micro-crédito passa pela ambição de fazer a passagem de uma economia ainda muito informal, para uma economia formal. Essa passagem tem em si impactos, nomeadamente em termos de alargamento da base de cidadãos que paga impostos. Como isto se insere no seu conceito de Micro-crédito?

Nós tratamos o Micro-crédito como um negócio social. No negócio social pagamos impostos. Então, não há a questão de pedir que estejam isentos dos impostos. Não é isso que queremos. O negócio social é um negócio como os outros. A única questão é que não obtemos lucros. Os bancos convencionais não fazem isso, não podem fazer isso, porque querem lucro e, no processo, tudo se complica. Se removeres a ideia de lucro, torna-se tudo muito simples.

A melhor maneira de fazer sair da pobreza é não pensar em dinheiro.

Se eu emprestar dinheiro a uma pessoa pobre, e tiver um dólar de lucro, esse dólar para mim não é nada. Mas para o pobre é muito. Então, eu posso conter-me e dizer “não quero este dólar, este é o meu negócio social, eu faço isto porque quero ser útil”. Pode ser feito e é isso que o negócio social é.

No Micro-crédito, qual deve ser o papel dos governos?

Nós dizemos sempre aos governos para ficarem longe. Não se envolvam...

Mas não é preciso regulação?

Regulação é precisa, mas algumas vezes a regulação é contraproducente. Criam-se obstáculos. Deve servir apenas para garantir que o micro-crédito está a ser feito de forma honesta. Que quando dizem “não estamos a tirar lucro”, não estejam secretamente a ganhar lucros. Isso é que têm de ver. Só isso. Mas a regulação deve ser apropriada. Não aquela velha regulação, que impõe e que não funciona.

O Micro-crédito é cada vez mais reconhecido, mas nas finanças internacionais ainda é uma “nota rodapé” (nas suas próprias palavras). É paradoxal reconhecer as suas vantagens e impactos, mas, mesmo assim, não lhe dar peso significativo?

O mundo é um mundo de fazer dinheiro. Num mundo assim, as pessoas pobres não são atractivas. Com elas não se faz dinheiro. Então porque hão-de lidar com as pessoas pobres? É por isso que os bancos são criados para as pessoas ricas.

Mas quanto mais pessoas estiverem incluídas numa “classe média”, mais clientes que possam pagar aos bancos terão…

Quando digo ricos significa pessoas que estão “bem de vida”, não significa super-ricos. Em outras palavras, eles não vão às pessoas que não têm muitos meios. Porque eles não conseguem farejar nenhum lucro aí. Então eles vão as pessoas com as quais podem fazer muito dinheiro. Logo. Ficam-se por esse nível, não o baixam.

O conceito de Negócio Social defende que somos todos empreendedores. Se formos todos empreendedores, como ganhamos escala, como teremos funcionários, como saímos das actividades de subsistência?

Está a perguntar, se todos formos empreendedores, quem trabalhará para nós? Havemos de lá chegar, mas isso é um estágio muito elevado. No meio-termo temos muito trabalho a fazer, por isso não se preocupe com algo que vai acontecer muitos anos depois. Quando aí chegarmos, trabalharemos nisso. Imagina que tu és uma empreendedora e eu sou um empreendedor. Eu tenho um negócio e preciso de um contabilista, tu és contabilista, então temos um negócio conjunto, Eu não tenho de te contratar, tu tornas-te minha parceira.

É uma questão de parceria?

Claro.

Tipo as cooperativas?

Talvez… mas nas cooperativas, cada um está a trabalhar para algo, é uma questão de filiação. Essa é a diferença.

Zero desemprego, zero pobreza e zero emissões de carbono [como escreveu]. Vimos que, por exemplo, com o colapso dos mercados 2008, pouco ou nada mudou. Mas vemos hoje uma cada vez maior consciência ambiental, a nível mundial. Poderá ser essa consciência a chave para a mudança? Para um sistema mais equilibrado socialmente?

A consciência não muda nada. É a acção que muda. Então a consciência tem de se traduzir em acção. Hoje estamos cientes, mas não fazemos nada e mundo está a decair. Então temos de ser activos, temos de assegurar que a queda não é grande.

Temos também um mundo cada vez mais voltado para a tecnologia. Como é que a tecnologia nos pode ajudar a sair da pobreza?

A tecnologia pode ajudar-nos a sair da pobreza, a tecnologia pode-nos levar à pobreza. A tecnologia é uma coisa neutra. A questão é o que nós projectamos para a tecnologia. Assim, é o propósito da tecnologia que faz (ou não) as coisas acontecer.

Para terminar. Nas últimas décadas milhões de pessoas saíram da pobreza. Milhões continuam na pobreza. Como continuar a ter esperança?

Temos de ter esperança. Se se desistir da esperança, não há nada por que viver.

Mas acha que estamos melhor, que já estamos um passo à frente?

Sim. Estamos avançando, definitivamente.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 913 de 29 de Maio de 2019. 

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Autoria:Sara Almeida,1 jun 2019 10:09

Editado porJorge Montezinho  em  2 jun 2019 15:14

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