“A informatização é a chave para diminuir a margem para a corrupção”

PorJorge Montezinho,29 jan 2023 9:47

Osvaldo Rocha, Director-Geral das Alfândegas de Cabo Verde
Osvaldo Rocha, Director-Geral das Alfândegas de Cabo Verde

As Alfândegas controlam todas as mercadorias que entram e saem do país e cobram as taxas e os impostos respectivos. Mas a sua missão vai mais além, são também um motor de desenvolvimento do país e têm ainda a função de proteger os cidadãos, quer seja lutando contra os tráficos, quer seja impedindo a entrada de produtos proibidos. Além disso, têm ainda o papel de conservação do património, com a fiscalização da saída de obras de arte, de peças arqueológicas e das espécies da fauna e da flora protegidas. A 26 deste mês assinalou-se o Dia Internacional das Alfândegas, pretexto para esta entrevista com o Director-Geral das Alfândegas de Cabo Verde, Osvaldo Rocha.

Quais são, neste momento, os principais desafios que enfrenta a Alfândega cabo-verdiana?

Cabo Verde quer construir uma administração aduaneira moderna, para isso seguimos as recomendações internacionais. Há muitas já efectivadas, que delineiam o caminho para nos transformarmos. Neste contexto, existem recomendações internacionais para a criação de uma janela única de comércio externo e esse é um dos grandes desafios que temos neste momento. É um projecto que já está em curso e iremos optimizar muitos procedimentos e eliminar muitas repetições. De uma certa forma, vamos harmonizar todo o processo de importação, exportação e trânsito de mercadorias, numa combinação de informação que é transacionada entre os diferentes actores. Ou seja, mais transparência e mais rapidez. Mas há outros desafios, como o desembaraço das pequenas encomendas. Têm-se tomado boas medidas para aumentar a rapidez. É um sector dentro das alfândegas com uma certa especificidade que tem a ver com as remessas familiares e sempre nos criou muitos constrangimentos. É um tema difícil de tratar, já se montou um novo modelo e estamos numa fase de retificar o que precisa de ser retificado para conseguir o que se pretende.

De facto, há anos que se fala das pequenas encomendas. Havendo mudanças, havendo tecnologia, o que ainda provoca atrasos?

Os operadores – polícia fiscal, alfândega, ENAPOR – sempre trabalharam em colaboração no processo de entrega dessas pequenas encomendas. O atraso muitas vezes é provocado pela demanda, ou seja, é sazonal, com épocas em que temos essa dificuldade de entrega. Mas o novo modelo envolve novos actores – os agentes transitários. Cada um dos vários transitários que há em Cabo Verde vai agora participar no processo de entrega das mercadorias aos seus clientes, ou seja, são mais elementos a trabalhar. Com este novo modelo acabamos por sentir-nos mais confortáveis. Já passou a fase mais complicada, o mês de Dezembro, houve algumas reclamações, mas menos do que aconteceu nos últimos anos. Sentem-se melhorias significativas. Este processo requer mais alguma aprendizagem, dos próprios transitários, mas estou certo que quando chegarmos ao final do ano e a mais uma época alta certamente que não vamos ter mais esse problema. É uma reforma, geralmente não se gosta, sabemos qual é o impacto inicial, mas esses atrasos sazonais do passado deviam-se muito à falta de mais integrantes no processo.

Por falar em integrantes no processo, como tem corrido toda a colaboração com as partes interessadas – polícia fiscal, ENAPOR, agora os transitários – em toda a cadeia logística?

Há uma colaboração extraordinária. Nunca vi na minha carreira profissional. É um sentimento de querer resolver as questões. As tutelas reúnem-se ao mais alto nível para pensar problemas e adoptar soluções – como na questão nas pequenas encomendas, que tentamos resolver de forma integrada.

Referiu a questão das soluções. O senhor vem da área das tecnologias, e sabemos que a transformação digital tem impacto em todos os sectores, em termos das alfândegas, onde estamos e onde precisamos de chegar?

À Alfândega, neste percurso de modernização, as soluções tecnológicas chegam constantemente. Os nossos processos aduaneiros, numa percentagem elevada, estão informatizados, e queremos caminhar para o zero papel. Numa ou outra situação aparece ainda um processo em papel, mas temos constituída uma equipa para ir digitalizando todos os processos.

O desalfandegamento totalmente digital será possível num futuro próximo?

Claramente. O que lhe posso dizer, neste momento, é que quando chega uma mercadoria o processo já é todo digital praticamente até à saída. Ainda antes da chegada do navio, o manifesto de carga chega de forma electrónica e é desmaterializado para o sistema aduaneiro. Antigamente perdia-se uma ou duas semanas para digitar todas estas informações, hoje é desmaterializada em segundos. Estando esta informação no sistema aduaneiro, os despachantes oficiais podem começar a operar ainda antes da chegada do navio. Os técnicos aduaneiros têm também acesso a toda a informação para analisar. Eventualmente, se é necessário alguma análise suplementar, pode ser necessário papel, mas já eliminámos 90% A 95% da circulação de papéis.

Geralmente há três queixas recorrentes – o tempo perdido, a burocracia e os custos – isso quer dizer que, pelo menos, duas delas estão a ser resolvidas?

Sim, mas os custos também, porque todo este processo com apoio tecnológico vai fazer descer o custo. Em relação à digitalização, digo-lhe que a partir de Fevereiro, vai entrar uma nova funcionalidade em vigor, em que o pagamento das declarações aduaneiras vai ser também de forma electrónica. Ou seja, os operadores económicos, os despachantes oficiais, já não vão precisar de se deslocar para fazer pagamentos, podem fazê-lo inclusive do estrangeiro através de homebanking. Vamos ganhar tempo e toda a receita é logo depositada na conta do Tesouro. Para já, será para o regime geral, os grandes operadores, mas também chegará ao regime simplificado, ou seja, às pequenas encomendas.

As Alfândegas – e o próprio ministro das Finanças já o disse – são uma importante fonte de receitas para o Estado. Se já têm dados, qual foi a arrecadação do ano passado?

Posso dizer que das arrecadações internas, as receitas da alfândega deverão ser para cima de 50% da comparticipação para o orçamento de estado.

Agora vem outro desafio. Com a implementação da Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA), como está a ser feita a preparação ao nível da Alfândega?

Logicamente que temos participado constantemente nos encontros internacionais. As negociações são sempre feitas através do nosso bloco comercial, a CEDEAO, e temos estado envolvidos em todas as matérias alfandegárias, até porque temos de salvaguardar interesses específicos do nosso país, a começar pela insularidade. Ou seja, há um posicionamento colectivo, mas sempre salvaguardando as nossas especificidades.

Um tema que não podemos fugir é o da corrupção. Li estudos que referem que, há uns anos, não muitos, a corrupção chegou quase a ser uma questão cultural nas alfândegas – o chamado ‘mon fitchadu’, o suborno para facilitar saída de encomendas ou para não declarar toda a mercadoria. Qual é hoje o cenário?

Antes de tudo, vou aproveitar essa questão para me dirigir aos cidadãos, cabo-verdianos e estrangeiros, para que denunciem quaisquer casos. Só assim temos elementos para penalizar. A corrupção, em qualquer área, é um dos piores defeitos da humanidade. A corrupção é feia. Logicamente que temos de aceitar que é uma situação real, que acontece, mas também gostaria que as denúncias fossem também reais, para combater esse problema. Este é um caminho que só traz desvantagens. Que não traz crescimento. Porque o dinheiro que o Estado não cobra são menos recursos para investir na saúde, na educação, nas pessoas.

Mas diga-me uma coisa, os casos têm aumentado ou têm diminuído?

São cada vez menos, até por causa da informatização dos processos, que antigamente eram em papel, que facilitavam as adulterações e hoje eventuais lacunas que poderiam provocar perdas de receitas do Estado foram eliminadas. A informatização é a chave para diminuir a margem para a corrupção. Existem situações em que a informática ainda não é suficiente para evitar a perdas dessas receitas? Sim. Mas resolver essas questões passará pela formação, não só internamente, mas por termos toda uma sociedade que não encoraje a corrupção e que opte pelos caminhos correctos. É um dever social.

Claro que, como falámos, há vários intervenientes envolvidos. Acredito que a Alfândega, por vezes, apanhe por tabela.

Com certeza. Não só no contexto da corrupção. Muitas vezes os cidadãos não consegue diferenciar os variados elementos que participam no cenário do comércio externo e qualquer coisa serve para apontar o dedo à alfândega. Percebo. Somos quem cobra os impostos e ninguém gosta. Daí que todos temos a consciência de trabalharmos como um só. Para conseguir resultados, não adiantam medidas individuais. Todas as entidades têm de trabalhar juntas.

No último ano e meio foram apreendidas grandes quantidades de munições. Que medidas anti-contrabando contribuíram, e contribuem, para estes resultados?

Tem tudo a ver com a modernização das Alfândegas – e de todas as entidades envolvidas. Uma das medidas de modernização foi a aquisição de scanners, a maioria dessas apreensões foram assim conseguidas. Actualmente, temos mais ferramentas para detectar contrabando. Quase já não abrimos contentores ou volumes e o scanner trouxe também esse complemento de rapidez. Antigamente, tínhamos de abrir todos os volumes. Hoje, com estes aparelhos, temos a vida facilitada. E, claro, que é um trabalho conjunto.

A Organização Mundial das Alfândegas [entidade intergovernamental criada em 1952, data de entrada em vigor da Convenção para a Criação de um Conselho de Cooperação Aduaneira] tem falado várias vezes em pôr as pessoas no centro das mudanças – e por mudanças falamos de mais eficiência, mais qualidade e mais comodidade. Qual será para si a Alfândega ideal?

A Alfândega ideal passaria por concretizar três ou quatro aspectos, porque o mundo vai avançando e precisamos de estar adequados a essas evoluções. A Alfândega ideal poderá concretizar-se depois da efectivação, com sucesso, de alguns projectos estruturantes que temos, a começar pela revisão e adequação do nosso código aduaneiro, que tem muitos aspectos que podem ser rectificados e precisamos dessa revisão para o adequar às perspectivas futuras que temos. Estamos a trabalhar para que aconteça. O segundo projecto passará pela implementação da nossa janela única de comércio externo, que não é um projecto aduaneiro unicamente, vai englobar todos os actores que fazem parte do comércio internacional. Outro projecto, já em curso, são os selos digitais e holográficos, que têm a ver com o controlo, na importação, de bebidas alcoólicas e tabaco. Estamos a falar de produtos nocivos à saúde, com os selos, neste momento, em papel, facilmente falsificável, pelo que são necessários outros mecanismos de controlo. Por fim, no futuro, gostaríamos de ter uma alfândega contextualizada num programa internacional que é o dos operadores económicos autorizados. É uma recomendação das instituições internacionais que regulam o comércio e que iria trazer benefícios nas transações com outros países, devido ao aumento d confiança, segurança e celeridade. É um programa que está a ser adoptado na União Europeia, nos Estados Unidos, em alguns países africanos, e tudo aponta que o futuro passe por aí.

O Dia Internacional das Alfândegas este ano tem como lema “Acompanhar a nova geração, promover a partilha de conhecimento e reforçar o orgulho da profissão aduaneira”. Alguma mensagem especial?

As Alfândegas de Cabo Verde têm acompanhado as novas gerações e isso tem acontecido com muito sucesso. Falo por mim inclusive. Iniciei a minha atividade aduaneira em 2010, aprendi com os mais velhos e esse conhecimento acabou por me trazer até ao cargo de director-geral das alfândegas. Acabo por ser o produto do acompanhamento dos mais antigos, que me transmitiram os conhecimentos. Hoje vejo esta geração mais nova nas alfândegas, com muito conhecimento, pelo que o lema de partilha de conhecimento encaixa na perfeição na nossa alfândega. E reforçar o orgulho aduaneiro também, certamente que cada vez mais é necessário ter os funcionários motivados, até porque é uma profissão de especial importância para o país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1104 de 25 de Janeiro de 2023. 

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Autoria:Jorge Montezinho,29 jan 2023 9:47

Editado porJorge Montezinho  em  30 jan 2023 8:20

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