A localidade de São Francisco está bastante limpa. À chegada, não há garrafas vazias no chão, nem os plásticos que muitas vezes fazem parte da paisagem das localidades cabo-verdianas. Para tal, terá certamente contribuído o trabalho da Ekonatura, uma empresa comunitária que recicla vidro e plásticos. Assim nos dizem os moradores, miúdos e graúdos, e os voluntários, desta iniciativa que toda a comunidade conhece e apoia.
Nayara Spencer, de 11 anos, recorda a visita que aí fez com a sua escola. Viram o trabalho realizado no pequeno ecocentro de São Francisco, conversaram sobre a reciclagem e o ambiente. E embora reconheça que os mais novos são quem está mais atento à questão do lixo e ambiente – “ensinam-nos na escola” –, também os mais velhos começam a preocupar-se com esta problemática. “Toda a população está interessada em manter o ambiente limpo”, conta.
“É bom para o ambiente e para a comunidade”, defende, na mesma linha, Janete Oliveira, de 25 anos.
Embora a maior parte do lixo – aqui matéria-prima – da Ekonatura venha de empresas parceiras (Cavibel e Tecnicil) e de particulares da cidade da Praia, a comunidade contribui como pode. Em casa ou nos estabelecimentos comerciais, muitos juntam os plásticos e as garrafas. E até os serviços de limpeza colaboram.
A tia de Janete, por exemplo, é varredora da Câmara, e quando se depara com este tipo de lixo “cata e leva lá”, à Ekonatura.
O resultado é visível. Como conta João Moreno Mendes, morador de 50 anos, antes havia “muito lixo, muitas garrafas aqui e ali. Agora é menos e quando vemos as garrafas recolhidas, [São Francisco] fica muito mais bonito”.
A cada pessoa, os elogios somam-se. Nascida e criada em São Francisco, Celestina Ferreira, de 62 anos, diz que só tinha visto algo do tipo “na televisão” e fala com orgulho da Ekonatura. “Conheço o projecto, acho que está a desenvolver-se bem. Todos estamos de acordo e contentes”. E também ela destaca como hoje a localidade está mais limpa, graças a esse projecto. “Coisas de plástico, nós não botamos na rua. Juntamos, pomos num canto e entregamos-lhes. Garrafas também”, refere, destacando que toda a comunidade colabora nesta causa.
Ekonatura
O projecto Ekonatura foi criado em 2019, no âmbito do projecto Raiz Azul, e implementado pela Associação Cabo-verdiana de Ecoturismo (EcoCV), em parceria com a Universidade de Cabo Verde e a própria Associação Comunitária de Desenvolvimento de São Francisco. Depois, constituiu-se como micro-empresa de base comunitária. A pandemia, entretanto, obrigou a um interregno e os trabalhos foram retomados em 2021/2022.
Neste centro de reciclagem, vidro e plástico ganham uma nova vida, transformando-se em objectivos decorativos e materiais para a construção civil.
“Com o plástico fazemos chaveiros, bases para copos, etc., e o vidro é transformado em areia com que fazemos vasos e também blocos para a construção civil, pavês, entre outros materiais”, elenca João Ferreira, administrador da Ekonatura e presidente da Associação Comunitária.
Quantas garrafas de vidro o Ekonatura já conseguiu processar não sabe ao certo, mas desde que o centro entrou em funcionamento já foram produzidas 100 toneladas de areia de vidro. Ora, sendo que para saco, de cerca de 80 kg, são necessárias mais de 20 grades de garrafas, terão sido, fazendo as contas, cerca de 600 mil.
Entretanto, há limitações na reciclagem do plástico. Neste momento, é transformado o HDPE, mas não o PET, um material mais resistente, pois a Ekonatura não tem ainda maquinaria para fazer as modificações com PET.
O objectivo é adquirir mais equipamentos e máquinas, mas também a procura por financiamento tem sido um desafio. “As empresas dizem que estão sufocadas, que têm muito pouca margem de manobra, então isso não está a ser fácil conseguir parcerias e apoios”, partilha.
Quanto à procura pelos produtos aqui nascidos, não tem, na verdade, sido muita. “Ainda temos uma sociedade que não conhece o produto e há tendência para trabalhar com os produtos que são tradicionais, mas pouco a pouco estamos a ganhar terreno”, acredita o responsável.
No caso, por exemplo, dos blocos de construção, ainda não há “venda dos blocos porque o custo é um pouco mais elevado comparando com os blocos comuns. São mais resistentes e mais pesados”, refere.
Mas, se o retorno económico não é elevado, o impacto que tem tido nas pessoas e ambiente é relevante
“As pessoas começaram a ter uma outra visão para a natureza. Pontualmente fazemos as limpezas na comunidade, já estão a começar a fazer a separação, a dar entrada de plásticos e de garrafas de vidro com que trabalhamos aqui no ecocentro. Paulatinamente, estamos a moldar a comunidade para que possa colaborar na melhoria do ambiente”, salienta.
Reciclando
Não é só a nível da comunidade, no geral, que o impacto é relevante. Também na vida dos seus colaboradores que daqui conseguem retirar um pequeno rendimento e ocupam os seus tempos livres com uma “actividade nobre”.
Neste momento, trabalham directamente na Ekonatura oito pessoas (cinco mulheres e três homens) que são voluntários, mas recebem uma gratificação pelo serviço prestado.
À volta de duas bacias de águas encontramos cinco desses voluntários, três mulheres e dois homens, que retiram, com a ajuda de um objecto afiado, rótulos das garrafas que serão depois trituradas.
Horácio Lopes é um dos colaboradores e conhece bem o espaço que hoje é o Ekonatura. Era também aqui que funcionava uma antiga empresa de produção de gavião e redes onde trabalhou, juntamente com outros dos actuais voluntários. Depois, aliou-se à Ekonatura desde o seu início. Recorda que através do Raiz Azul chegaram as máquinas e tiveram uma formação sobre recolha de lixo, que começaram a fazer. Com a recolha veio também um processo de sensibilização junto à comunidade que, garante, tem tido frutos.
A satisfação de contribuir para um ambiente mais limpo e saudável é também visível em Elisabete Varela.
O seu caso é um exemplo da volta que a vida dá e de como são importantes alternativas para evitar que actividades que prejudiquem o ambiente sejam a fonte de rendimento das famílias.
Era ainda uma adolescente de 15 anos quando começou a apanhar areia, juntamente com um grupo de pessoas mais velhas. Vendiam essa areia e dividiam o dinheiro, que no seu caso servia para ajudar no sustento da casa onde vivia com o seu avô. “Quando eu vinha com aquele dinheiro já tínhamos pão para o dia”.
Sabia dos danos ambientais dessa actividade, reconhece, “mas temos de sobreviver”, justifica.
Fez essa actividade durante cerca de cinco anos e só a abandonou porque o grupo com que costumava ir foi sendo desfeito. Uns deixaram a apanha da areia porque tinham dores, outros simplesmente porque estavam cansados. “Só duas ou três pessoas não dá, porque demora muitos dias só para poder juntar uma carrada de areia”.
Começou então a fazer trabalhos agrícolas, nas banquetas. Trabalho também muito duro, que acabou por deixar.
Sem nenhuma ocupação fixa, começou a vir ao ecocentro. Trabalhou como voluntária e agora, diz, “já dão uma gratificação”, o que ajuda a ter “um bocadinho” de rendimento. Não teve a formação que Horácio e outros tiveram, mas por gosto foi fazendo o seu trabalho, ajudando por exemplo, na recolha e lavagem das garrafas ou embalagens de plástico, e nas venda da pequena loja onde se pode encontrar vários produtos decorativos e utilitários aqui produzidos e onde os turistas que chegam esporadicamente são os principais compradores.
Sabe que há quem ainda continue na apanha de areia, mas lembra: “estão a tirar areia para poderem sustentar a família em casa”…
Mudar
O ambientalista Tommy Melo, presidente da Biosfera I, conhece bem a realidade das actividades que são prejudiciais ao ambiente em Cabo Verde e de quem as executam e defende que é fácil mudar rapidamente o mindset de uma pessoa “desde que lhe seja dada uma oportunidade”.
Na sua longa experiência, já o viu acontecer inúmeras vezes. “Já vi em apanhadores de tartarugas, em apanhadores de aves marinhas... É só darmos a oportunidade dessa pessoa ver aquele animal de outra forma e, obviamente, tentar dar uma alternativa de rendimento” que ela abandona a actividade.
Assim, advoga, é “relativamente fácil conseguir ter em Cabo Verde um ambiente melhor desde que as autoridades, as entidades, as ONGs, estejam realmente engajadas em criar oportunidades e mostrar às pessoas a mais valia de conservar o nosso ambiente”.
Em relação à Ekonatura, propriamente dita, o ambientalista reconhece que embora o retorno económico deste tipo de projectos, pela escala do país, possa não ter grande expressão, o impacto junto às comunidades pode ser muito importante, promovendo-se uma mudança de mentalidade em relação aos resíduos e ao valor da reciclagem.
A mudança de mentalidade já se verifica em São Francisco, refere, e quando olhamos os números do plástico e vidro já reciclados, basta imaginar o impacto que todas essas garrafas teriam na paisagem, nomeadamente nas praias, para perceber a importância desta actividade.
Assim, destaca o ambientalista, essas duas valias (mudança de mentalidade e reciclagem), que se “abraçam mutuamente, “fazem com que um projecto mesmo pequeno como este tenha uma dimensão grande” e “seja uma grande vitória”.
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“Lixo é dinheiro”
A trituradora de vidro com que a Ekonatura trabalha foi construída em São Vicente, nas oficinas da Escola Padre Filipe Pereira, juntamente com outras 45. A ideia, apoiada pelo governo e com investimento português, foi dotar cada município de Cabo Verde com duas máquinas dessas, com o intuito de diminuir o lixo que é enviado para as lixeiras/aterros.
A produção deste tipo de máquinas remonta ao ano 2000, recorda o sócio-gerente da escola e responsável de produção, Miguel Alves. Na altura, o seu pai, fundador da escola (tio Nené), que sempre “teve uma forte consciência ambiental”, concebeu a primeira máquina de vidro, com o apoio de empresas nacionais. Feito o protótipo, e com novo financiamento, foi criado um modelo mais avançado – o tal das 46 máquinas distribuídas aos municípios.
Uma outra dessas máquinas está em Rincão (Santiago), onde a ECOVB instalou também um Ecocentro. Quanto às restantes 44, não foi possível descobrir o seu paradeiro.
A produção destas máquinas continuou e hoje a oficina conta já com 14 modelos diferente.
“Construímos as máquinas a pedido de empresas privadas, e começamos a exportar para países como São Tomé e Príncipe”, onde, para satisfação da oficina, toneladas de areia está a ser produzida diariamente.
”Ali a máquina está a dar o resultado desejado”, refere Miguel Alves.
Além da máquina de vidro, também a máquina de processar plástico da Ekonatura foi fabricada na Escola, numa parceria com a Tecnicil Indústria, uma das empresas que mais plástico usa em Cabo Verde.
A Escola tem entretanto em mãos um projecto que será anunciado oportunamente, com base na reciclagem de plástico.
Miguel Alves não esconde, entretanto, o seu contentamento por haver cada vez mais interesse na reciclagem.
“Vemos que pessoas estão a despertar, lixo é dinheiro, se se souber utilizar tem retorno. Somos um país pobre, não podemos dar-nos ao luxo de enterrar dinheiro, temos de processar”.
E satisfatório seria também se os próprios municípios de Cabo Verde investissem, de modo a evitar que “lixo que realmente é dinheiro” seja descartado num aterro, com efeitos nocivos a nível ambiental e financeiro.
“O vidro e o plástico conseguem-se processar e transformar em matéria-prima, as latas conseguem-se compactar e exportar, porque é metal. Tudo isso gera economia dentro do país”, mas por enquanto é tudo em muito pequena escala. Em micro-empresas, como a Ekonatura, que “aos poucos, vão conseguindo limpar aquilo que é a sua quota, dão o seu contributo para limpeza do meio ambiente”.
Reportagem realizada no âmbito da Formação em “Jornalismo de Soluções” do Projecto Terra África
*com Fretson Rocha, rádio Morabeza
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1139 de 27 de Setembro de 2023.