Custos, Sol, segurança, qualidade do Wi-Fi e cuidados de saúde, por esta ordem, estes são os factores que mais influenciam a escolha dos destinos por parte dos trabalhadores remotos, e segundo um relatório da Flatio – uma plataforma de alojamento para nómadas digitais – Cabo Verde está entre os destinos onde os nómadas querem experimentar viver (o país surge em 7º lugar; o Brasil, em 2º, a Madeira, em 3º, e Portugal, em 6º, são os outros destinos lusófonos presentes no ranking).
“A chegada de nómadas digitais a Cabo Verde pode ser considerada como uma evolução positiva”, diz ao Expresso das Ilhas Nicolas Gassner, um dos fundadores da CaboWork, uma plataforma digital lançada pelo operador turístico alemão Reiseträume Kapverden em 2022. “Os nómadas digitais tendem a ficar mais tempo num destino. Além disso, poderão alugar um apartamento durante um mês inteiro, comprar mercearias para o dia-a-dia, e também comem e bebem fora com regularidade. Desta forma, tendem a gastar mais dinheiro em negócios locais do que por exemplo turistas em alojamentos com tudo incluído. Adicionalmente, os nómadas digitais procuram envolvimento com a comunidade local, o que se torna mais fácil em estadias de várias semanas do que propriamente em uma ou duas semanas de férias”.
Um dos principais objectivos da CaboWork é promover parcerias entre empreendedores, startups e nómadas digitais, criando um espaço privilegiado para networking entre empreendedores e produtores de conteúdo locais e internacionais, e onde possa ser incentivada a troca de experiências e conhecimento. O projecto também pretende usar a plataforma online para ajudar jovens cabo-verdianos a ter conhecimento acerca de múltiplas oportunidades de emprego online, para que saibam que não precisam de deixar o país para encontrar emprego.
“Devido ao intercâmbio com, por exemplo, empresários locais, os nómadas digitais podem não só aprender coisas novas sobre Cabo Verde, mas também transferir os seus conhecimentos sobre trabalho remoto, entre outros, para junto da comunidade digital cabo-verdiana. Todos sabemos quão importantes são as conexões. Esta é uma excelente forma de construir uma rede internacional de contactos, tanto para os cabo-verdianos como para os nómadas digitais que visitam o país”, sublinha Nicolas.
O conceito
O surgimento do nomadismo digital foi previsto de diversas formas e por diferentes autores. McLuhan, em The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man (1962), retratou nómadas a circular a grande velocidade, usando instalações nas estradas, ao ponto de quase poderem dispensar as casas. A sua “aldeia global” é uma metáfora para a redução das distâncias físicas devido ao aumento da capacidade de comunicar e trocar ideias através da Internet (McLuhan previu a Internet, embora, claro, tenha usado termos diferentes).
Toffler escreveu A Terceira Vaga (1980) sobre a transição da era industrial (a Segunda Vaga) para a era da informação (a Terceira Vaga). Toffler descreveu esta era da informação caracterizada por uma economia e uma sociedade baseadas em tecnologias digitais e na remoção de fronteiras espaciais; e imaginou uma “casa eléctrica” a partir da qual os trabalhadores pudessem trabalhar remotamente.
Finalmente, no livro Digital Nomad, Makimoto e Manners (1997) previram que o desenvolvimento da tecnologia ia permitir às pessoas tornarem-se móveis por todo o mundo: “o século 21 será o milénio que ressuscitará para os humanos um dilema que esteve adormecido durante 10.000 anos: ‘Sou um Nómada ou um Sedentário?’”. Os autores apontaram não só a possibilidade do nomadismo digital, como também previram algumas das questões actuais (por exemplo, impostos).
Com o trabalho remoto a tornar-se uma norma, especialmente desde a pandemia, o nomadismo digital está a aumentar, e as estatísticas comprovam-no. Em 2020, 10,9 milhões de pessoas foram identificadas como nómadas digitais, este número cresceu para 35 milhões no final de 2022.
Cabo Verde e o trabalho remoto
Em 2020, em Dezembro, o Ministério do Turismo e Transportes apresentou o Remote Working Cabo Verde. O programa permite aos nómadas digitais a candidatura a um visto temporário de 6 meses (com a possibilidade de extensão até um ano) – Cabo Verde é um dos seis países africanos que têm um visto específico para trabalhadores remotos – e oferece outros benefícios: isenção de exigência de imposto sobre rendimentos, custos de visto muito reduzidos, mínimos de rendimento mensal médio relativamente baixos, ou a não exigência de registo de residência ou folha de pagamentos local.
“Devido a esta abordagem proactiva no que diz respeito a atrair nómadas digitais a partir da criação de um processo fácil para a chegada e estadia prolongada, visitantes do exterior podem ficar durante o tempo necessário para criarem um verdadeiro envolvimento com a comunidade local”, refere Nicolas Gassner.
“Não obstante, o processo parece precisar de alguns melhoramentos. Isto porque recebemos, com regularidade, mensagens a pedir ajuda com o processo de visto que acaba por não ser tão fácil quanto prometido. Ainda assim, a existência deste visto é um passo na direcção certa”, sublinha o co-fundador da CaboWork.
Além dos vistos, outros programas e bolsas têm sido instrumentais para a criação de pólos digitais no arquipélago. Muitos são iniciativa da Cabo Verde Digital, um projecto governamental que promove os valores de empreendedorismo na comunidade cabo-verdiana. Um exemplo é a iniciativa GoGlobal, um programa anual que procura promover Cabo Verde como um pólo para serviços digitais e como um destino apropriado para o trabalho remoto.
“Existem vários projectos governamentais e privados que visam adaptar-se ao estilo de vida e às necessidades dos nómadas digitais, tais como o Cabo Verde Digital, GoRemote e CaboWork. Além disso, há cada vez mais alojamentos e cafés que têm esta necessidade em mente. Desta forma, os pilares fundacionais estão criados. No entanto, ainda há algum trabalho a fazer. As infra-estruturas podem ainda ser expandidas, o processo de concessão de vistos pode ser optimizado e a comunidade pode ser desenvolvida para toda a ilha. Mas é precisamente isto que torna o actual mundo do trabalho tão empolgante. Vivemos tempos de agitação e, sobretudo, projectos como este não podem ficar parados, mas precisam antes de avançar de forma contínua”, refere Gassner.
A comunidade
Os nómadas digitais não se limitam a viajar entre destinos, fazem-no essencialmente entre comunidades. Por isso, a criação e gestão destas comunidades é essencial para projectos que queiram atrair este mercado.
Nicolas Gassner e Martina Dehner, coordenadores do projeto CaboWork
“Cabo Verde está bem encaminhado e a criar fundações para tais comunidades. Existem várias iniciativas públicas e privadas a contribuir para este esforço, seja através de eventos, criação de espaços de cowork ou outros projectos. O objectivo a longo prazo deverá passar pela criação de uma comunidade inter-ilhas de nómadas digitais em Cabo Verde. Todavia, tendo em conta a estrutura do arquipélago, temos a impressão de que actualmente estas comunidades são acima de tudo criadas ilha a ilha”, diz Nicolas.
“Além disso, existem várias iniciativas que permitem a viajantes e nómadas digitais conhecer a fundo a comunidade enquanto trabalham remotamente. Os exemplos vão do voluntariado junto das tartarugas marinhas à preservação da natureza”, refere Martina Dehner, co-fundadora da CaboWork.
Os desafios
Os nómadas digitais relatam uma variedade de desafios, incluindo sentir-se inseguros (34%); a falta da família e dos amigos (32%); dificuldade em lidar com diferenças de fuso horário (30%); a falta de ligações reais com as pessoas (26%); a logística das viagens (25%) e equilibrar trabalho e viagens (25%). A fadiga dos viajantes e o choque cultural são outras duas razões para os nómadas digitais desistirem desse estilo de vida.
O Expresso das Ilhas perguntou ao coordenador da CaboWork quais são as maiores diferenças culturais e barreiras linguísticas enfrentadas por nómadas digitais que se mudam para Cabo Verde.
“O nomadismo digital pretende não só explorar o destino, mas também a sua cultura e gentes. Apesar de muitos nómadas digitais não estarem familiarizados com o crioulo cabo-verdiano ou com português, sugerimos que se envolvam com a população local. A natureza calorosa e aberta dos cabo-verdianos torna o contacto muito mais fácil”, refere Nicolas.
“Na maioria das cidades de Cabo Verde, o inglês é falado em vários graus e mesmo que esse não seja o caso, a população local é acolhedora e facilita outras formas de comunicação. Comunicação, aliás, é mesmo a palavra-chave aqui. Ao interagir com cabo-verdianos, os visitantes poderão adquirir novas competências linguísticas e aprender algumas palavras essenciais da língua crioula”, continua Martina Dehner.
“No que diz respeito a diferenças culturais, acreditamos que irão variar de cultura para cultura e que a experiência de cada viajante será distinta. Todavia, os e as nómadas digitais tendem a ser apaixonados no que diz respeito a aprender mais acerca de outras formas de vida e hábitos culturais. E como sociedade aberta, Cabo Verde não é um sítio provável para experienciar um choque cultural severo”, acredita Nicolas.
No entanto, nem tudo é perfeito e há aspectos que ainda não cumprem as expectativas dos nómadas digitais
“Apesar de haver muitos novos espaços comunitários e de cowork, a infra-estrutura ainda é muito variável de cidade para cidade. Tal é particularmente verdade no caso de localizações remotas, longe de centros urbanos como a Cidade da Praia ou o Mindelo. Nestes locais, a velocidade da internet pode não ser ideal e as infra-estruturas podem (ainda) não corresponder ao esperado”, diz Martina Dehner.
“Outro aspecto importante prende-se com os transportes inter-ilhas, que precisam de maior capacidade e fiabilidade. Esta situação não é relevante apenas para o nomadismo digital, mas também para o turismo entre as ilhas, bem como para o mundo dos negócios em Cabo Verde, e para o quotidiano da população. Acreditamos que a melhoria das conexões entre ilhas pode acrescentar valor a todo o sistema económico de Cabo Verde”, aponta Martina.
Um caminho sem volta
Nómada? Slow-mad (nómadas que demoram mais tempo nos destinos escolhidos)? Travelpreneur (viajante e empreendedor)? Os “géneros” de trabalho remoto estão a fragmentar-se em alternativas cada vez mais adaptáveis, à medida que os destinos potenciais se multiplicam.
“Criámos a CaboWork e a CaboWork Community como meios de promover a conexão entre trabalhadores remotos e empreendedores em Cabo Verde pois acreditamos verdadeiramente que estas ilhas têm sido negligenciadas no que diz respeito ao seu potencial para nomadismo digital”, explica Nicolas Gassner.
“Vemos o futuro como risonho pois embora saibamos que ainda há muito a fazer, imaginamos um Cabo Verde cada vez mais capaz de investir em desenvolvimento sustentável em várias áreas de negócio. Claro que o nomadismo digital é apenas uma parte deste caminho, mas surge de mão dada com o turismo sustentável que tem vindo a proliferar em todo o arquipélago cabo-verdiano”, refere Martina Dehner.
Uma pesquisa da Flexjobs, a nível global, descobriu que entre os trabalhadores remotos entrevistados a maioria relatou níveis elevados de satisfação (93%) e produtividade (90%). Além disso, 61% dos entrevistados descreveram diminuição dos níveis de stress e quase metade (44%) mencionou melhor qualidade de saúde mental.
Com o trabalho remoto e o estilo de vida nómada digital a permitir um maior controlo sobre o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e custos reduzidos, não é surpreendente que muitos trabalhadores estejam a colher os benefícios em termos de maior felicidade e bem-estar. “Como nómadas digitais, acreditamos que este movimento veio para ficar”, conclui Nicolas Gassner.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1145 de 8 de Novembro de 2023.