Queremos um mundo cada vez mais digital, ágil, capaz, resiliente, confiável, transparente, próximo, orientado para o cidadão e as empresas. Mas também necessitamos de um mundo com – diz Antão Chantre ao Expresso das Ilhas – mais colaboração. “Precisamos de uma economia de dados em Cabo Verde e a chave para desbloquear o potencial da economia de dados reside na abertura e na partilha de dados entre empresas nacionais”, refere o administrador executivo da Caixa Económica.
Não é segredo que o governo quer transformar Cabo Verde numa Plataforma Digital em África e fazer da Economia Digital um dos geradores de riqueza atingindo, em 2030, uma contribuição nunca abaixo dos 25% para o PIB, como está explicado no PEDS II [Plano Estratégico do Desenvolvimento Sustentável – 2022/2026].
Para atingir essa ambição, o país quer posicionar-se como um provedor de produtos e serviços para o continente Africano, capitalizando as apostas já feitas no ecossistema tecnológico – como a Governação Electrónica e o Parque Tecnológico – e a expansão da infra-estrutura de conectividade, como cabos submarinos e o Parque Tecnológico da Praia e do Mindelo.
“Precisamos ainda dar alguns passos essenciais”, diz Antão Chantre. “Um dos passos é a open innovation nas empresas, criar esse ecossistema, abrir portas. As empresas não estão a apadrinhar as startups. As startups são formadas, são treinadas, mas as empresas não estão a abrir portas. Têm de chamá-los. Se eu der esse passo da colaboração, vou realmente implementar o hub tecnológico. Precisamos de líderes com open mind, com esta capacidade de sair do gabinete, tirar o fato, estar com essas empresas para ver onde poderemos colaborar”.
No fundo, o exercício que o administrador executivo da Caixa Económica convida a fazer é o de imaginar um Cabo Verde onde cada empresa, grande ou pequena, adopta a filosofia de dados abertos, partilhando informações de maneira padronizada e acessível. Este gesto permitiria às startups nacionais, aos empreendedores e aos inovadores criarem soluções que respondam às necessidades locais, gerar novas oportunidades de negócios e resolver problemas reais da comunidade.
Ao adoptar padrões abertos e interoperáveis, as empresas cabo-verdianas estariam a colocar as bases para um ecossistema digital inclusivo e inovador. Esse ecossistema permitiria que os dados fluíssem livremente, mas de forma segura, entre diferentes sectores e plataformas, alimentando a inovação e a criação de valor. O sucesso deste empreendimento colectivo depende de uma colaboração estreita entre o sector privado, o governo e as instituições académicas.
Temos de ter o propósito de servir, ajudar, dar a mão, partilhar conhecimento - Antão Chantre
“A transformação digital está nas pessoas”, reforça Antão Chantre. “Silicon Valley funciona porque eles têm a capacidade de ir buscar gente de culturas diferentes. Têm a capacidade de aproximar essa gente. Têm a capacidade de quebrar a hierarquia e criar um espírito de colaboração. Outra coisa também essencial é quebrar esse conceito de chefes e criar o conceito de líderes”.
“Eu, sozinho, dentro da minha empresa, não vou inovar. Posso fazer umas coisinhas, mas o que é que isso traz de vantagem? Se tenho open innovation dentro da minha empresa, vou atrair startups. Vou atrair as universidades que estão a fazer investigação. Vou atrair mentes. E se atrair essas mentes vão surgir oportunidades”.
Experimentar sem medo de falhar
As cartas anuais de Jeff Bezos aos accionistas da Amazon oferecem uma visão sobre como é que o multimilionário dirige o gigante do comércio online. “Para inventar, tem que experimentar, e se já sabe que é algo que vai funcionar, isso não é uma experiência. Muitas grandes organizações abraçam a ideia da invenção, mas não querem sofrer a série de experiências falhadas para chegar lá”, escreveu numa delas.
“Temos de criar dentro das empresas o conceito de experimentação”, aconselha Antão Chantre, “pensar, criar e rapidamente testar. Não funciona, tiro do mercado. Isso só é possível se envolver empresas, envolver universidades, envolver startups. Dizer-lhes: venham cá testar os vossos modelos, as vossas ideias. E venham experimentar as ideias sem medo de falhar”, continua Chantre.
“Na área financeira, o negócio é o crédito, não é desenvolver soluções, mas se eu trouxer uma startup para testar uma ideia, ela vai aprender com especialistas, vai ter acesso a dados anonimizados e de repente pode criar uma solução que pode ser vendida a todos os bancos a nível mundial. Eu ganho eficiência e depois cada um implementa da forma que quiser”, resume o administrador da Caixa Económica.
Aproveitar oportunidades enfrentar desafios
O processo de transformação digital de Cabo Verde enfrenta desafios assumidos na Agenda Estratégica de Desenvolvimento Sustentável de Cabo Verde 2030: O desafio da cibersegurança; o desafio da infraestruturação tecnológica; o desafio da eficiência e autonomia energética; o desafio da capacitação, investigação e inovação tecnológica; o desafio do sector privado (a transformação digital das empresas); o desafio do mercado digital.
Mas também traz um mundo imenso de oportunidades, como refere Emanuel Spencer, professor universitário e profissional da área de Tecnologia da Informação. “As tecnologias podem trazer inúmeros benefícios e oportunidades para Cabo Verde, nas diferentes áreas, mas convém ter em consideração que o aproveitamento desses benefícios e oportunidades, exige esforços, comportamentos e políticas adequados, para a superação de desafios diversos, em particular as desigualdades de acesso digital, a segurança e preservação da identidade cultural. As TIC, ao garantirem que Cabo Verde esteja interligado com o mundo, facilitando o acesso à informação e a recursos diversos, proporcionam a inovação e promovem o empreendedorismo, propiciando a prestação de serviços a partir de Cabo Verde, impulsionando o desenvolvimento económico do país”.
É fundamental que os cidadãos, os decisores e os governantes estejam atentos às potencialidades e aos desafios das tecnologias - Emanuel Spencer
“A Internet tem sido muito utilizada para promover o turismo em Cabo Verde, através do marketing digital, permitindo divulgar facilmente as potencialidades das nossas paisagens naturais e da nossa riqueza cultural, para atrair visitantes. As Tecnologias podem trazer também ganhos importantes na governação do país, se utilizadas de forma a garantir uma adequada e acertada governação electrónica, proporcionando mais eficiência e transparência governamental, facilitando a participação cívica e fortalecendo a democracia. As TIC têm também proporcionado melhorias na educação e aprendizagem face às variadíssimas ofertas de cursos de formação e de capacitação profissional, contribuindo para o crescimento de cidadãos formados e para o desenvolvimento de habilidades profissionais no país. De realçar que as TIC ‘garantiram’ a Cabo Verde, nos últimos anos, muitos mestres e doutores, o que antes era praticamente impensável. Ainda de realçar que as TIC podem contribuir significativamente para a melhoria do bem-estar e qualidade de vida dos cabo-verdianos podendo, entre outros, até melhorar o acesso aos serviços de saúde, permitindo observações e intervenções remotas com o apoio de especialistas, cabo-verdianos e demais, residentes na diáspora”, reforça o académico.
“As potencialidades são imensas e neste momento chegam a ser mesmo ilimitadas, dependendo praticamente da imaginação de cada um com acesso a tecnologia e ao conhecimento”, diz Aruna Handem, até recentemente Director Geral das Telecomunicações e da Economia Digital de Cabo Verde. “Hoje, todos os sectores beneficiam dessas evoluções tecnológicas, desde a saúde a agricultura passando pela facilidade de podermos comunicar em tempo real uns com os outros. Por outro lado, os desafios são imensos, principalmente devido à rápida evolução das tecnologias em comparação com a sua adaptabilidade nos diferentes segmentos das nossas sociedades, muitos dos desafios antigos continuam presentes enquanto surgem novos, principalmente princípios éticos e sociais ligados a utilização das tecnologias. A privacidade e a segurança são cada vez mais importantes, a cibersegurança enfrenta desafios titânicos devidos às inúmeras possibilidades abertas para a realização de fraude online e ligadas a tecnologia. A estes factores, hoje temos a chegada agressiva da Inteligência Artificial que traz outra dimensão a tecnologia que, para além das enormes vantagens, pode ser usada para disseminar informações falsas deixando pouca margem para separar a realidade do virtual, o que afecta de uma forma geral a confiança na sociedade. Ainda existem muitos desafios relacionados com o bom uso das tecnologias, mas na minha opinião, posto tudo numa balança, os ganhos continuam a ter muito mais peso”.
Com mais de 20 anos de experiência no campo das tecnologias de informação, da governação e da economia digital, Handem defende que Cabo Verde tem feito um percurso notável e reconhecido internacionalmente, principalmente no domínio da governação eletrónica e a utilização das TIC para melhorar o funcionamento das instituições públicas e a prestação de serviços de qualidade aos cidadãos.
“O acesso à internet veio trazer maior acessibilidade conectando um grande número de pessoas numa uma única rede e transformando o mundo numa grande aldeia sem fronteiras. Cabe a Cabo Verde aproveitar as suas vantagens e particularidades, sobretudo geostratégica, para monetizar criando produtos baseados em sistemas de integração Global (GIS) que sirvam as diferentes geografias especialmente com foco na nossa Sub-região que é a extensão obvia do seu mercado. Neste domínio entram em primeiro lugar as infraestruturas, com os cabos Submarinos, Datacenter e o Parque Tecnológico, depois logicamente todas as possibilidades de ofertas dos mais diversificados serviços”, sublinha.
Cabo Verde na África Ocidental
Cabo Verde é considerado o melhor país da sub-região no ranking da Global Innovation Index 2023 e é o único país africano de língua portuguesa a figurar no TOP 100.
No contexto continental, o arquipélago é o sexto ecossistema mais inovador, atrás da África do Sul, Marrocos, Tunísia, Botswana e Egipto. O Índice Global de Inovação é uma ferramenta para as decisões de investimento em um determinado país. O indicador é divulgado, desde 2007, pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em parceria com a Universidade de Cornell e a Insead.
Mas a inovação não para. Está a acontecer até enquanto este texto está a ser escrito. A criar tendências e a alterar o mundo a cada instante.
“O grande desafio vai ser a computação quântica”, sustenta Antão Chantre, “quando começar a reduzir o preço da computação quântica, muitas coisas vão mudar”.
“Existem várias tendências tecnológicas emergentes com um grande potencial para revolucionar o futuro, em diversas áreas, sendo importante acompanhar esses avanços e considerar seus impactos sociais, económicos, éticos e ambientais, para garantir que sejam aproveitadas de maneira responsável e benéfica”, refere Emanuel Spencer. “Podemos considerar as seguintes principais tendências: Internet das Coisas (IoT); Inteligência Artificial e Aprendizado Máquina; Realidade Virtual e Aumentada; Blockchain e Criptomoedas; Computação Quântica; Biologia Sintética e Edição Genética; Energias Renováveis e Armazenamento de Energia”.
“Penso que a mais revolucionária é sem dúvida a inteligência artificial”, sublinha Aruna Handem. “Hoje, esta invenção tecnológica penetrou nas nossas vidas na forma de chatbots, assistentes de voz, veículos autónomos, tradutores em tempo real, visão artificial, ChatGPT, Internet das Coisas… enfim, máquinas capazes de raciocinar transformarão ainda mais o mundo do futuro com aplicações e usos que nem podemos imaginar ainda. Segundo o blockchain, veio revolucionar a forma como os utilizadores compartilhar informações sem intermediários (banco, seguradora, governo, etc.), devido à sua natureza compartilhada e transparente, a tecnologia blockchain tende a restaurar a fiabilidade, a confiança e a segurança dos indivíduos onde ela pode ter sido abalada, uma autêntica revolução, principalmente no mercado financeiro”.
Um ambiente online seguro e saudável
Cabo Verde teve 1,2 milhões de assinaturas de serviços de comunicações electrónicas em 2023, concentradas sobretudo em telemóveis (subscrições de Internet, voz e mensagens) – dados dos últimos indicadores estatísticos do mercado das comunicações electrónicas, publicados pela ARME (Agência Reguladora Multissetorial da Economia).
Segundo a ARME, o número de assinaturas de acesso à Internet cresceu 14% em termos homólogos, assim como a taxa de penetração, que subiu de 74 para 95 acessos por 100 habitantes, no mesmo período.
“Utilizar a internet de forma consciente e responsável requer, acima de tudo, comportamento adequado capaz de proporcionar a verificação da credibilidade das fontes, optando sempre por sites confiáveis e de reputação reconhecida e evitar acreditar em tudo o que se lê”, explica Emanuel Spencer.
“Recomenda-se procurar sempre por múltiplas fontes de informação para formar opinião fundamentada e saber desconfiar das fontes não verificadas”, continua o académico. “Antes de partilhar qualquer conteúdo, particularmente nas redes sociais ou em qualquer outra plataforma digital, deve-se verificar a sua veracidade e relevância, evitando contribuir para a propagação de fake news. Deve-se saber minimamente em como manter as informações pessoais e os dados privados protegidos, utilizando as configurações de privacidade adequadas e evitando partilhar informações sensíveis ou pessoais em sites públicos, ou também com pessoas desconhecidas. É desejável adoptar a prática online de comportamentos positivos e respeitosos, evitando o cyberbullying, as narrativas de ódio, qualquer tipo de assédio e comportamentos inadequados”.
“É fundamental perceber que as consequências da desinformação e as fake news podem ser devastadoras, seja para pessoas, organizações e até estados”, avisa Aruna Handem. “A manipulação da opinião, a distorção da realidade e disseminação de informações falsas podem acabar em guerras e destruição, ou incentivo ao ódio e intolerâncias, coisas que são hoje responsáveis por tantas perdas de vidas humanas no mundo”.
A principal vantagem é a velocidade com que as tecnologias conseguem resolver questões complexas - Aruna Handem
“É importante proteger as informações pessoais e tente mantê-las privadas. Certifique-se de que seus dispositivos estão seguros e não acessíveis por terceiros. Preste atenção às instalações e actualizações de software, muitos deles são malignos. Evite jogos nas redes sociais, especialmente os que estimulam a autoestima, são formas de captação de informação privilegiada. A internet é uma ferramenta potente com duas faces, na mesma medida que tem coisas fantásticas, também tem coisas muito perigosas”, conclui Handem.
“A questão da literacia digital é extremamente importante”, diz Antão Chantre. “E isso é também uma oportunidade, aproveitar esse gap da literacia digital para formar as pessoas, pequenas empresas de formação podem surgir, e as empresas de tecnologia vão ter também o seu papel, não estar somente a pensar no lucro, mas no propósito de desenvolver as sociedades e uma sociedade só desenvolve se apostar fortemente na educação”.
“A Universidade de Cabo Verde e a Universidade de Coimbra criaram um curso de pós-graduação de cibersegurança e isto realmente é a cibersegurança. Cibersegurança não é contratar uma empresa e implementar processos. É treinar”, refere Chantre.
O decreto-lei que confirma o regime de acesso à internet um bem essencial já foi aprovado em conselho de ministros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1172 de 15 de Maio de 2024.