Julião Sousa, historiador guineense: “Encontrar a certidão de baptismo de Amílcar Cabral foi um dos momentos mais emocionantes”

PorJorge Montezinho,27 jan 2012 23:00


Numa entrevista exclusiva ao Expresso das Ilhas, via mail, o historiador guineense Julião Soares Sousa, fala de obra "Amílcar Cabral (1924-1973), vida e morte de um revolucionário africano", uma figura que considera ser mais citada do que conhecida. O livro recebeu o Prémio da Fundação Calouste Gulbenkian, História Moderna e Contemporânea de Portugal, da Academia Portuguesa da História. Natural de Bula, o investigador é Licenciado, Mestre e Doutorado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde é investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX.

Expresso das ilhas - porque defende que foi a mãe de Amílcar Cabral quem influenciou a sua formação intelectual, ao contrário de outros estudos sobre o revolucionário?

Julião Sousa - Eu não defendo que foi a mãe quem influenciou a sua formação intelectual. O que digo é que Iva Pinhel Évora teve um papel preponderante na formação de Amílcar Cabral. De resto, é o próprio Amílcar Cabral a afirmar que ela foi a "estrela da sua infância agreste", num poema do seu livro de curso de 1949 dedicado à progenitora. Está lá no poema. Não inventei nada. Da mesma forma que afirma que quem o influenciou, por exemplo, do ponto de vista literário foi um amigo, seguramente dos tempos do Mindelo, chamado Coutinho. Mas, se entrarmos no domínio especulativo podemos encontrar sempre uma infinidade de influências.

Qual a importância dessa tese e o que vem alterar?

Releva apenas uma outra leitura que se fundamenta nas palavras do próprio protagonista e não em especulações. Nada mais do que isso.

Quais foram os documentos novos a que teve acesso?

Vários, como se pode facilmente constatar. Mas, para mim, o facto de ter encontrado a certidão de baptismo de Amílcar Cabral foi um dos momentos mais emocionantes e altos das minhas investigações. Permitiu pelo menos acabar com alguma especulação sobre o local de nascimento. Como sabe há um sector residual na Guiné que punha em causa a naturalidade de Amílcar Cabral em Bafatá. Esse documento e a certidão de nascimento que sei que existe vieram pôr um ponto final nesse debate. Devo acrescentar apenas que sobre este assunto da naturalidade de Amílcar já ouvi as versões mais incríveis e desconcertantes.

Quanto tempo levou esta investigação?

Mais de cinco anos.

Qual a contribuição de Amílcar Cabral para a união dos movimentos anticolonialistas?

Na fase pré-revolucionária e no âmbito do Movimento Anticolonialista (MAC) a con-tribuição foi imensa, quer do ponto de vista político, quer financeiro. Efectuou várias deslocações a Angola para contactos com os nacionalistas angolanos, viagens pela Europa no âmbito da organização de células do MAC. Como sabe foi um dos fundadores e dinamizadores da FRAIN, em 1960, e da CONCP, em 1961, organismo que chegou a coordenar. No que concerne aos movimentos da Guiné e de Cabo Verde como sabe foi ele quem trouxe a ideia de unirão de todos num único projecto político e revolucionário. Posso mesmo afiançar-lhe que se empenhou denodadamente para a concretização dessa união das forças nacionalistas.

A situação actual na Guiné não se deve também à transformação militar feita por Cabral, que acabou com os senhores da guerra para instituir uma espécie de milícia nacional, que hoje continua sem controlo?

Não. Julgo que não é justo estabelecer essa ligação. A comparação só faria sentido com a situação do PAIGC anterior ao Congresso de Cassacá. Uma coisa é antes de Cassacá e outra depois de Cassacá. Há diferenças abissais. A diferença é que depois de Cassacá, apesar de alguns contratempos, Cabral logrou um certo controlo sobre as chefias militares que, como sabe, eram superintendidas nas diferentes frentes pelos comissários políticos. De resto, uma das razões que motivou a realização do Congresso de Cassacá, em 1964, foi justamente a necessidade de pôr termo ao clima de caos e de desordem que grassava no seio da guerrilha.

Portanto, a transformação operada em Cassacá fez com que houvesse uma evolução positiva com a criação das FARP e a inclusão da disciplina, respeito pelo poder político (Comissários Políticos) e pelas hierarquias na agenda do partido de Amílcar Cabral. Foi assim que o poder político subordinou o poder militar. Portanto, o espírito militarista e alguma desordem que sazonalmente imperam na Guiné-Bissau de hoje são o resultado de problemas recentes, cujas causas são bastante complexas, mas que, se quiser, fazem lembrar os tempos anteriores ao Congresso de Cassacá.

Qual é hoje a herança de Cabral tanto na Guiné como em Cabo Verde?

Depende um pouco das perspectivas. É claro que a Guiné e Cabo Verde encontram-se em fases diferentes do seu processo de desenvolvimento. Pessoalmente acho que a maior herança de Amílcar Cabral é essa luta corajosa, determinada e persistente dos povos destes dois países no sentido de se libertarem do subdesenvolvimento. A crença de que só com trabalho e grandes sacrifícios se pode vencer os aspectos que ainda atrofiam a marcha em direcção ao progresso.

Não será Cabral mais citado do que realmente conhecido?

Sim. É possível que assim seja. Mas isto resulta da própria complexidade do seu legado. Conhecer ou captar Amílcar Cabral nas suas múltiplas dimensões não é um exercício fácil.

"Qualquer ser humano é um produto do seu tempo"

Há sempre a questão, foi Cabral quem escreveu a história, ou foi a história que fez Cabral?

Um ser humano é sempre produto de um tempo e da história do tempo em que viveu. Mas também pode ser protagonista desse mesmo tempo e dessa mesma história. Sendo certo que um Homem só nunca fez a História e ser até perigoso atribuir o sucesso de uma revolução a acção particular de um indivíduo, permitir-me-á enfatizar a centralidade da figura de Amílcar Cabral não só no quadro do seu partido e dos movimentos de libertação da Guiné e Cabo Verde, mas também de outros movimentos de libertação das colónias portuguesas de África. Foi ele quem conferiu clarividência, consistência e significado ao processo revolucionário da Guiné e Cabo Verde.

Poderia outro líder ter tido a visibilidade conseguida por Cabral?

Podemos sempre responder afirmativamente, mas, como de resto sabe, havia vários líderes de movimentos de libertação nacional em Dakar e em Conakry naqueles tempos agitados. Uns da Guiné e outros de Cabo Verde. No entanto, nenhum deles logrou a visibilidade que Cabral conseguiu em muito pouco tempo. E não foi só em termos de visibilidade, mas até de credibilidade relativamente ao projecto da independência que defendiam. Esta é que é a realidade.

Como acontece o trajecto do Cabral ‘português' até ao Cabral que ‘regressa às origens'?

É um trajecto interessante que começa com o processo de socialização escolar em Cabo Verde. Como sabe era no ensino colonial que se moldava a personalidade dos indivíduos, através da assimilação aos valores da cultura portuguesa. Continua em Portugal com o seu envolvimento na luta antifascista ao lado dos movimentos de esquerda para depois, gradualmente, se autonomizar já na perspectiva anticolonial e da libertação do Homem Negro. Esta tentativa de autonomização acontece sobretudo por via das influências ideológicas e culturais e do contacto com os colegas angolanos que frequentavam as universidades portuguesas nos anos 40/50. É necessário enfatizar aqui a grande influência que o pan-africanismo e o movimento da negritude exerceram em Amílcar Cabral. Foi a partir destas influências que começou a questionar o processo de assimilação colonial e a reclamar o regresso às fontes ou a reafricanização dos espíritos.

Em 1960, foi enviado ao governo português um memorando, que diz que o trabalho feito no terreno, pelo PAIGC, estava a tornar o povo cada vez mais consciente politicamente. Essa análise corresponde à realidade?

Refere-se certamente ao Memorandum de 15 de Novembro de 1960. Esse Memorandum dizia de facto que o trabalho feito pelo PAIGC e o desenvolvimento da repressão colonial estavam a elevar dia a dia a consciência política das massas. O que lhe posso dizer é que foi a partir de finais de Outubro de 1960 que começou a entrar propaganda do PAIGC em Cabo Verde e na Guiné. Muita dessa propaganda tinha sido elaborada na reunião efectuada em Dakar, depois do regresso de Amílcar Cabral da China. De resto, a maior parte das mensagens dirigidas aos funcionários, aos soldados guineenses, cabo-verdianos e portugueses do exército colonial, datam desta altura. Não tenho dúvida de que o Memorandum se referia a este trabalho de propaganda que foi importante para o despertar das massas, tanto na Guiné como em Cabo Verde, relativamente aos aspectos perversos do colonialismo português.

"Ainda há dimensões sobre Cabral por explorar"

Num exercício especulativo, o que seriam hoje Cabo Verde e a Guiné, se Cabral não fosse assassinado?

É difícil dizer o que seria a Guiné e Cabo Verde se Cabral não tivesse sido assassinado. Uma resposta a essa pergunta obrigar-me-ia a entrar no domínio do contrafactual.

Pode resumir-se a vida de Cabral à sua frase "Sou um simples africano que quis saldar a sua dívida para com o seu povo e viver a sua época... "?

De certa maneira sim. Nos quase 50 anos em que viveu, dedicou muito do seu tempo à causa dos povos da Guiné e Cabo Verde e à causa da emancipação dos povos de uma forma intensa e apaixonada, cumprindo na íntegra a verdadeira missão do intelectual. Lembro-lhe que com 39 anos Cabral já liderava uma das guerrilhas mais importantes e famosas do mundo.

É Amílcar Cabral um lutador datado, cuja mensagem deixa de fazer sentido com a queda do muro de Berlim, ou as suas ideias ainda têm aplicação prática?

Sinto-me perfeitamente à vontade para lhe dizer que ainda há dimensões sobre Amílcar Cabral por explorar.

Os seus contributos na área da agricultura, questões relativas à integração das mulheres no processo político, a questão do patriotismo sentimental que pode ser primordial na hora de defender os interesses dos nossos países e dos nossos povos, a questão da ética no exercício do poder, a questão do medo de perder o poder que faz com que muitas vezes alguns políticos teimem em permanecer nos cargos contra tudo e contra todos, etc, etc, são matérias que continuam a interpelar a nossa consciência. 22 anos depois da queda do muro e 38 anos após o assassinato de Amílcar Cabral algumas das suas ideias continuam actuais e perfeitamente moldadas ao contexto difícil que a humanidade atravessa.

Cabral tinha ideias claras e precisas sobre o que seria o desenvolvimento da Guiné-Bissau e Cabo Verde após a conquista da independência?

Não sei se se pode falar de ideias claras e precisas. Mas se ler com atenção alguns dos seus textos como por exemplo as Análises de alguns tipos de resistência e uma boa parte de textos produzidos em 1969 e até as Palavras de Ordem de 1965 compreenderá perfeitamente o alcance das suas reflexões sobre o desenvolvimento que propunham para a Guiné e Cabo Verde. Nesses documentos estão plasmados o essencial do(s) rumo(s) que seria(m) seguramente trilhado(s) no pós-independência. De resto, a experiência tinha começado nas zonas controladas pelo PAIGC.

"Para Cabral, um regime de partido
único não garantia a democracia do
sistema político"

Porque nunca se cumpriu o slogan do PAIGC que a libertação significa "poder nas mãos do povo"?

Não se pode dizer que não se cumpriu. O que é que significa afinal "poder nas mãos do povo"? Este assunto foi abordado por Amílcar Cabral em 1972, aquando da sua visita aos Estados Unidos. Mostrava-se então preocupado com a democraticidade e legiti-midade do partido único, o que de certa maneira revela que estava preocupado com o futuro. Para ele um regime de partido único não garantia a democraticidade do sistema político. Por isso mesmo admitia, numa primeira fase, a necessidade de criar órgãos que garantissem a representatividade do povo, de modo a que tivesse consciência de que era "dono do seu próprio destino". Por exemplo, a Assembleia Nacional Popular... Hoje há grandes avanços nesse sentido. Há partidos, há eleições, há parlamentos... Mas também acredito que haja aspectos que é preciso aprofundar. Mas há mais. Cabral acreditava que dada a marcha dos acontecimentos na África do seu tempo chegaria um tempo em que o povo tomaria o poder. Considerava isso uma fatalidade. Na minha perspectiva esta análise de Cabral é interessante se for transposta para os tempos que correm. Já reparou que as pessoas estão cansadas de alguma classe dirigente? E isso não é um fenómeno exclusivamente africano, mas transversal à sociedade global. Já viu o que aconteceu na África do Norte com o povo na rua. Até se deu ao luxo de dizer que não queriam político A, B e C... Se a classe política continuar a governar sem resolver os problemas do povo e com falta de ética, ainda no nosso tempo, cumprir-se-á à escala planetária o vaticínio de Cabral

Este tema não é consensual entre os biógrafos. Para si, acha que Cabral queria conferir um carácter estratégico e prospectivo às suas reflexões políticas e económicas?

Seria extemporâneo estar a fazer esse tipo de juízos. Não acredito que houvesse intencio-nalidade a esse respeito.

Não haveria um pensamento demasiado optimista em Cabral sobre o futuro da Guiné e de Cabo Verde como países independentes?

Penso que não. O optimismo relativamente ao futuro da Guiné e de Cabo Verde advinha das razões objectivas e subjectivas que estiveram na génese do fenómeno libertador. A libertação nacional é um processo que nasce das convicções pessoais e colectivas e isso envolve também uma certa dose de optimismo relativamente ao futuro, à construção de uma nova sociedade e de um Homem Novo. Os países podem é demorar muito tempo a atingir esses objectivos. Ainda assim, isso não significa que não fossem objectivos exequíveis.

É hoje Cabral um herói esquecido?

Não. Antes pelo contrário. Como sabe continua a despertar muitas paixões, grandes debates e intensas reflexões. É talvez um dos poucos líderes desaparecidos que continua a despertar tanto interesse. E um dos exemplos que nos permite acreditar que não será esquecido tão cedo é o facto de os jovens na actualidade estarem a criar grupos de debate e de reflexão em torno da sua figura e da sua obra.

 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Jorge Montezinho,27 jan 2012 23:00

Editado porExpresso das Ilhas  em  27 jan 2012 23:00

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.