“Hoje, há poucas dúvidas. Foram guineenses do PAIGC que assassinaram Amílcar Cabral”

PorJorge Montezinho,20 jan 2013 1:00

José Pedro Castanheira, jornalista português do semanário Expresso e autor de uma das primeiras obras sobre o assassinato do fundador do PAIGC – “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”, em 1995 – diz, nesta entrevista exclusiva ao Expresso das Ilhas, que sempre sentiu um grande “desconforto” por parte das autoridades guineenses enquanto recolhia os dados para o seu trabalho de investigação. Curiosamente, ou talvez não, o livro foi apresentado em Cabo Verde, junto das comunidades cabo-verdianas de Portugal, Estados Unidos da América e Itália, mas o autor nunca conseguiu fazer o mesmo na Guiné-Bissau.

 

Expresso das Ilhas – Quase vinte anos depois da edição da sua obra, mantém a leitura que fez na altura sobre o assassinato de Amílcar Cabral?

José Pedro Castanheira – Vinte anos depois, não sei se escreveria exactamente a mesma coisa, porque, entretanto, houve vários testemunhos, principalmente depoimentos de várias personalidades, que decidiram falar sobre a morte de Cabral. Mas, há vinte anos, fiz todos os possíveis e falei com todas as pessoas que me foi possível e consultei todas as fontes que na altura estavam disponíveis. Fui o primeiro a consultar o arquivo da PIDE-DGS em Portugal, que tinha acabado de ser tornado público e fui o primeiro investigador a mergulhar na vastíssima documentação que a PIDE-DGS foi recolhendo sobre o PAIGC e sobre Amílcar Cabral. Como repórter, fui a todos os locais, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Senegal, Guiné-Conacri. Considero que fiz o trabalho mais exaustivo que era possível fazer naquela época. É evidente que o meu livro, editado em 95, não é uma tese definitiva, nem nunca me passou pela cabeça que fosse um trabalho definitivo, daí o próprio título ter um ponto de interrogação: «Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?» E esse ponto de interrogação fala por si. É uma pergunta que eu fiz e que na altura me pareceu ainda não ter uma resposta suficientemente sólida e consistente. Por isso decidi manter esse ponto de interrogação, que atravessa as mais de 300 páginas do livro.

Na sua obra, apesar de não afastar outras hipóteses, diz que terão sido os guineenses os autores do assassinato. Refere também que a PIDE teve diversas oportunidades para matar Cabral mas que nunca o fez. Poderemos alguma vez excluir a mão portuguesa por trás do assassinato de Cabral?

No meu livro trabalho quatro hipóteses e uma dela é a tensão existente dentro do PAIGC entre o sector guineense e os dirigentes de origem cabo-verdiana. Mas não esqueço as outras hipóteses explicativas: a PIDE; a própria acção do sector militar, que por várias vezes tentou assassinar Cabral (aliás, visitei o antigo quartel general do PAIGC em Conacri e pude ver os sinais ainda bem patentes do bombardeamento feito pelo comando português ao quartel e à casa de Cabral durante a operação «Mar Verde», em Dezembro de 1970); e também a quarta hipótese, com a possibilidade do envolvimento do próprio Sékou Touré (havendo sinais da sua participação, directa ou indirecta, em toda a trama que levou à morte de Cabral). Não tenho dúvidas que houve várias tentativas do poder colonial em tentar matar Cabral, os arquivos da PIDE estão recheadas de conspirações para aniquilar o líder do PAIGC. Mas, do ponto de vista histórico, não foi a “mão portuguesa” a mais determinante em toda a trama que desembocou no 20 de Janeiro de 1973.

Altos quadros do PAIGC recusaram colaborar na investigação

Quais foram as maiores dificuldades que teve de ultrapassar quando estava a fazer a investigação para o seu livro?

Houve três dificuldades grandes e uma delas ainda se mantém. A primeira, as reticências que encontrei quando tentei falar com dirigentes e responsáveis guineenses do PAIGC. Ao todo falei com mais de meia centenas de pessoas durante a minha investigação. Na Guiné, falei inclusivamente com o então presidente Nino Vieira, mas houve altos quadros do PAIGC guineense que se recusaram a falar comigo e não quiseram colaborar na minha investigação. Essa atitude foi absolutamente oposta por parte das autoridades cabo-verdianas. Estive duas vezes em Cabo Verde e não houve ninguém que não tivesse colaborado comigo ou aceitado dar a sua versão dos acontecimentos. A segunda dificuldade com que me deparei foi na Guiné-Conacri. Gostaria de ter recolhido mais a versão das autoridades de Conacri, mas sabemos como funcionam os países sob ditadura, por isso não encontrei tudo o que gostaria. Touré já tinha morrido, os seus colaboradores tinham sido dizimados em sucessivas levas e ajustes de contas e tirando alguns livros que encontrei e consultei não me foi possível desenvolver essa linha de investigação. A terceira dificuldade continua por superar e tem a ver com o acesso aos arquivos franceses. A Guiné-Conacri foi uma antiga colónia francesa e não tenho dúvidas de que a França sempre acompanhou aquilo que se passava no interior do país. Não me passa pela cabeça que os serviços secretos franceses não tenham acompanhado de perto o que se passou em Conacri em 1973. Tentei obter várias autorizações em Paris para aceder aos arquivos, mas nunca consegui. A resposta oficial é que ainda não passou o prazo fixado na lei francesa para disponibilizar essa informação. Esses arquivos, do meu ponto de vista, serão importantes para apurar toda a verdade.

Apesar de Cabral nunca ter assumido qualquer papel de herói, foi complicado lidar, no terreno, com o ‘mito’ de Amílcar Cabral? Ou seja, havia o medo de mexer com o ‘mito’?

Todos os heróis acabam por transformar-se em mitos e com Cabral isso aconteceu, não só devido à sua envergadura intelectual e política, ao papel que desempenhou em termos políticos, militares e diplomáticos, mas sobretudo devido às condições misteriosas em que morreu. O papel do jornalista é, respeitando a figura e o legado de Cabral, tentar também ser o mais rigoroso possível, independentemente das leituras e das opções políticas e ideológicas que se façam. Ainda hoje Cabral tem muito de mito. Procurei encarar e investigar a sua morte de forma independente e com os instrumentos típicos do jornalismo moderno.

Mas, sentiu o peso desse mito quando falou com as várias testemunhas que aparecem no seu livro?

À medida que os anos passam, as pessoas conseguem falar de uma forma menos apaixonada e mais fria e objectiva. Quando comecei a minha obra, só tinham decorrido vinte anos sobre e morte de Cabral. Hoje, creio que muitas das pessoas que abordei falariam de uma forma diferente. E digo isto com conhecimento de causa. Falei na altura com o então Presidente Aristides Pereira, e o que ele me disse ficou muito aquém do que viria a dizer anos mais tarde na entrevista que concedeu ao meu amigo José Vicente Lopes. Essa sua entrevista traz, inclusive, muita informação decisiva e que ajuda a esclarecer o que aconteceu em Concari. Foram os anos que passaram que possibilitaram a Aristides Pereira ter uma atitude mais serena e mais descomprometida perante a história. Penso, aliás, que ele quis dar o seu contributo para a história e não quis morrer sem esclarecer esse caso particularmente delicado da vida do PAIGC. De facto, o tempo ajuda, assim como ajuda as pessoas deixarem de desempenhar certos cargos. Percebo perfeitamente que as pessoas tenham atitudes diferentes consoante as responsabilidades históricas que em cada momento têm para com os seus povos e países. Não estou a fazer nenhuma crítica a Aristides Pereira, estou a dizer que entendo a sua atitude. Mas gostaria de sublinhar que sem a minha investigação e o meu livro, a maior parte da literatura posterior não seria possível. Pode ser imodéstia minha, mas considero o meu livro o primeiro trabalho minimamente sério e independente sobre a morte de Amílcar Cabral.

A herança de Cabral

Que análise faz à herança de Cabral? Como explica que Cabo Verde tenha tido uma ditadura durante 15 anos e que a Guiné-Bissau ainda hoje não tenha encontrado o caminho para a democracia estável? Seria este o espólio que Cabral desejaria?

Não sei se Cabral defendia a democracia como solução para a Guiné e Cabo Verde, uma democracia pluralista e representativa. Não conheço o suficiente a sua obra, mas creio que não era esse o modelo que ele defenderia. Os principais contributos teóricos de Cabral não se encontram nessa matéria mas sim na estratégia da luta de libertação e na aliança entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde para colher vantagens na luta contra o colonialismo e para a independência desses dois povos. Talvez seja essa a principal novidade da estratégia de Cabral. O que não se pode é acusar Cabral por aquilo que aconteceu nos dois países após a independência – designadamente na Guiné. Não se pode estabelecer uma relação de causa/efeito entre os contributos teóricos de Cabral e o que acontece na Guiné, onde ainda hoje não há um Estado digno desse nome. O que me parece importante sublinhar é que ainda antes do início da luta armada na Guiné, e ao longo dos anos de luta conduzida por ele, foram inúmeras e insistentes as propostas de Cabral para uma solução política do problema colonial. Isso é esquecido muitas vezes, mas é uma das suas componentes estratégicas mais importantes. Já disse, e continuo a pensar, que se Cabral não tivesse sido assassinado o 25 Abril teria sido diferente. Provavelmente teria sido possível uma negociação entre Portugal e o PAIGC e se essa negociação, que ele propôs durante toda a sua vida, se tivesse realizado, ter-se-ia encontrado uma solução diferente para a guerra colonial. Não nos podemos esquecer que 1973 e 1974 foram anos de intensas iniciativas políticas e diplomáticas que ainda não foram totalmente estudadas. É conhecido, por exemplo, o projecto de Spínola de chegar à fala com Cabral através de Senghor. Como é conhecida a negociação de Londres em Março de 1974, envolvendo um emissário português e uma delegação de cúpula do PAIGC, negociação que só não prosseguiu porque se deu o 25 de Abril, uma vez que haveria uma segunda ronda em Maio de 74. Se Cabral não tivesse sido assassinado penso que seria possível encetar uma negociação séria entre as autoridades portuguesas e o PAIGC sobre o futuro político e a independência, principalmente da Guiné. E se houvesse essa negociação, seguramente haveria outras também sobre Moçambique e Angola. Estou firmemente convencido que isso teria sido possível, porque há vários sinais que nos demonstram que começava a haver vontade política, principalmente das autoridades militares, de ensaiar a procura de uma solução política para a guerra colonial. Nesse contexto, a figura de Cabral era fundamental, porque era reconhecido e respeitado como principal líder dos três movimentos de libertação das colónias.

Essas tentativas de negociação não ilibam o Estado português do seu assassinato?

Não, porque o governo português não actuava a uma só voz. Pode, quando muito, ilibar uma componente militar, a que acabaria por derrubar o Estado Novo e a ditadura. Não nos podemos esquecer que o 25 de Abril tem a sua génese na Guiné. A maior parte dos militares que estiveram mais envolvidos na conspiração e que depois ocuparam cargos de responsabilidade, nasceram para a política enquanto cumpriam missões militares na Guiné. Foi a sua tomada de consciência da impossibilidade de uma solução militar para a guerra colonial que os levou a procurar uma solução política, isso para mim é absolutamente claro. A partir de 1970, e do fracasso da Operação Mar Verde, há a tomada de consciência que a guerra da Guiné não tem solução militar. A partir daí, com a crescente supremacia militar do PAIGC no terreno e com o crescente apoio político internacional, há uma alteração substancial na percepção dos comandos militares, que tomam consciência que só conseguem evitar a derrota militar, no terreno, através de uma negociação política. Ou seja, são as próprias condições da guerra que obrigam os militares portugueses a tentar encontrar uma saída airosa e necessariamente política.

Uma última questão. Quarenta anos após o assassinato, acha que alguma vez se saberá quem mandou matar Amílcar Cabral?

Acho que já começamos a ter respostas. O meu livro abria caminhos claros e acho que apresentei alguns elementos que permitiam ao leitor valorizar mais algumas das hipóteses do que outras. Desde então têm aparecido outras obras, dando mais peso a uma das hipóteses. E o já referido livro/entrevista de Aristides Pereira põe, para mim, um ponto final sobre o assunto. A leitura que Aristides Pereira faz reforça, de forma clara, uma das hipóteses que eu próprio desenvolvi, que era a de um conflito interno no PAIGC entre uma parte substancial dos combatentes guineenses e os cabo-verdianos. Os elementos fornecidos por Aristides Pereira reforçam essa suposição. Acho que a versão histórica mais correcta é a que sugere uma tentativa de parte de alguns sectores guineenses de obter a supremacia na liderança política e militar do PAIGC, que no essencial era protagonizada por cabo-verdianos.

E Sékou Touré, também esteve envolvido?

Sobre o próprio Touré não posso afirmar, mas seguramente que alguns dos seus homens de confiança terão instigado e dado apoio aos homens que estiveram envolvidos na conspiração. Não podemos esquecer que os assassinos foram recebidos por Touré na própria noite do assassinato. Eram todos guineenses e a maior parte deles foram passados pelas armas. Um dos grandes mistérios é saber o que foi feito do relatório de inquérito organizado pelo PAIGC e o que foi feito das cassetes contendo as gravações dos interrogatórios aos suspeitos. Tudo isso desapareceu e estou convencido que esse material nunca mais será encontrado.

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Autoria:Jorge Montezinho,20 jan 2013 1:00

Editado porSara Almeida  em  28 jan 2013 11:30

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