Transformação nas relações familiares e sociais e crescentes níveis de desigualdades sociais são os principais factores da criminalidade

PorSara Almeida,16 jun 2013 0:00

Os padrões de criminalidade em Cabo Verde têm vindo a mudar - a agravar-se e a tornar-se mais complexos – comprometendo o desenvolvimento do país. De acordo com a Socióloga Nazaré Varela, dois grupos de factores poderão estar por detrás dessa criminalidade no contexto cabo-verdiano: “um que tem que ver com as transformações nas relações familiares e sociais e, outro, com as transformações socioeconómicas e os crescentes níveis de desigualdades sociais”. No entanto, salvaguarda, nem um nem outro gera, por si só, criminalidade.

 

Expresso das Ilhas – Em Cabo Verde, na sua análise, que factores mais contribuem para a criminalidade, nomeadamente para a relativamente elevada taxa de homicídios? Nazaré Varela – A criminalidade é um fenómeno global, complexo e multidisciplinar. Por isso, qualquer explicação simplista seria redutora da sua complexidade. Na sua análise torna-se necessário a consideração das suas múltiplas dimensões e a procura de uma correlação entre os factores que podem estar na sua origem. A minha resposta à sua questão não tem, pois, a pretensão da sua explicação na totalidade. A leitura que farei a seu respeito será, por defeito de profissão, essencialmente de natureza sociológica, portanto, passível de ser complementada com os conhecimentos das outras áreas do saber, nomeadamente da criminologia, da psicologia, da antropologia, do direito, entre outras. Ademais, tratando-se, no caso de Cabo Verde, de um fenómeno considerado novo, os cuidados na sua leitura devem ser redobrados. Em resposta à questão, tomo em consideração dois aspectos que me parecem relevantes e que são consensuais nos estudos e matérias produzidos sobre este fenómeno, no país. Falamos, sobretudo, de uma criminalidade jovem, que tem como espaço físico privilegiado o urbano – características que não são, de todo, casuais – e que me fazem aventar a hipótese da existência de dois grupos de factores explicativos da criminalidade no contexto cabo-verdiano: um que tem a ver com as transformações nas relações familiares e sociais e, outro, com as transformações socioeconómicas e os crescentes níveis de desigualdades sociais.

Como se correlaciona a problemática da educação e família com o agravamento da criminalidade?

As múltiplas transformações ocorridas no mundo familiar que, entre outras, se prendem com a democratização e a equidade nas relações familiares, a par de uma crescente substituição da concepção orgânica de família por uma individualista e, com esta, a importância acrescida que vem merecendo, no seu interior, a realização pessoal dos indivíduos e a prioridade que este passa a ter em relação ao grupo, estão na origem não só da sua instabilidade como também da conflitualidade que se gera no seu interior. A esta (conflitualidade) nenhum tipo de família está isenta. O lar constitui um espaço de particular agressividade e até mesmo de violência. Os desequilíbrios nele, hoje, experimentados ocasionam, com frequência, condutas agressivas e violentas dos cônjuges entre si e destes em relação aos filhos. O espaço fa miliar é, para alguns, “um dos lugares mais perigosos das sociedades modernas” (Lourenço e Outros, 1997:15). Segundo Giddens (2004), em termos estatísticos, seja qual for o sexo e a idade, uma pessoa estará mais sujeita a violência em casa do que numa rua à noite. Isto para dizer que os homicídios decorrem, em grande parte, das relações familiares ou das que, não sendo familiares, são de muita proximidade, dado que não se pode ignorar. A família, enquanto espaço de produção e reprodução de condutas sociais, parece exercer uma dupla influência na prática da violência. Nesta, a violência tem implicações no quotidiano de todos e, se é efeito, pode vir também a ser causa. As fronteiras da violência do espaço familiar com as do espaço social são, assim, tépnues, já que passível (a violência) de ser transportada para fora das fronteiras da casa. O contexto cabo-verdiano parece não fugir a esta tendência, pela constatação pública dos casos de violências familiares, cujas denúncias parecem ter sido incrementadas, nos últimos tempos, com a implementação da lei VBG. Tomando em consideração os dados do DOIP (Departamento de Operações e Informações Policiais), do primeiro semestre de 2009 ao primeiro semestre de 2010 (considerado o período mais crítico em matéria de violência e criminalidade no país), relativos aos crimes contra pessoas (com um total de 5.462 ocorrências), verificamos que apesar de as modalidades de crime mais frequentes serem os de ofensa corporal (com 2.175 ocorrências), seguidos dos de ameaça (com 1.376 ocorrências) e de injúria (com 781 ocorrências), os considerados do espaço familiar (entre estes, os maus tratos à mulher, os maus tratos ao menor, o abuso sexual de menores, aos quais incluiria, também, a agressão sexual e o homicídio negligente), com um total de 606 casos, assumem representação significativa. Relativamente aos crimes do espaço familiar, poderia, ainda, trazer as estatísticas da Polícia Judiciária, sobre os crimes contra menores. Esta regista, entre2004 a2009, um total de 634 casos de crimes sexuais denunciados, representando cerca de 95,1% dos crimes contra menores. Importa, porém, esclarecer que apesar da importância que estas estatísticas assumem no conhecimento da realidade, elas só permitem conhecer os casos denunciados. O número real de crimes, neste caso, particularmente, do espaço familiar, tende a ser muito maior – as estatísticas reduzem a complexidade do real. Tratando-se de crimes do espaço familiar, onde a tendência é para a sua ocultação, a sua visibilidade torna-se reduzida. A privacidade do espaço familiar contribui, grandemente, para a invisibilidade das situações de violência. Pelo que, o importante é olharmos para além dos números, ou seja, percebermos o que poderá representar cada caso de violência familiar, em termos das suas implicações nas vítimas e nos restantes membros desse espaço e quais poderão ser, também, as suas implicações na sociedade. Sem querer estabelecer uma relação directa entre o comportamento violento e o facto de o seu autor ter sido ou não vítima (directa ou indirecta) da violência familiar, chamo, aqui , atenção para a influência que estas (violências do espaço familiar) podem exercer sobre aqueles (comportamentos violentos), que agravados por outros factores, podem desencadear o crime.

Falou também da questão das condutas sociais?

Pois. A esta fragilidade das relações familiares associo a experimentada, hoje, nas relações sociais. Falo do enfraquecimento das relações sociais, com o crescente individualismo e a consequente perda da coesão social. Como defende Durkheim (1893) existe uma relação entre a coesão e a integração social e a ocorrência do desvio social e do crime. O enfraquecimento das relações sociais e a perda da coesão social introduzem margem para o desvio social e o crime. Ora, essa perda da coesão social, estabelecida pelas normas sociais formais e informais, estas últimas expressas nos hábitos e costumes, na crença, na religião etc., começa, de certa forma, a experimentar-se num país, cujo nível de desenvolvimento encontra-se num processo de transição e onde o maior centro urbano, Cidade da Praia (com a maior concentração da população e das actividades económicas), dá sinais, não só de perda dos valores tradicionais, nomeadamente, da solidariedade (a que alguns chamariam mecânica), como de adesão aos valores dominantes modernos, do individualismo, sobretudo. Portanto, ao problema da violência e da criminalidade associa-se, nesta perspectiva, a necessidade do fortalecimento da consciência colectiva – conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade e de uma maior integração social. A forma mais decisiva de integração social, na perspectiva do autor, passa pelo trabalho (Durkheim, 1978). De facto, as desigualdades sociais assumem, também, importância relevante na explicação do fenómeno da criminalidade.Em Cabo Verde, apesar de a pobreza ter vindo a apresentar uma tendência decrescente, a desigualdade social tende a ser crescente (ver dados do QUIB 2007). Esta, acompanhada do desemprego maciço e da consequente falta de oportunidades, nomeadamente, para o “sucesso” e realização pessoal, pode criar delinquentes e levar à prática do crime. As consequências do desemprego, nomeadamente, em contextos de reduzidos ou praticamente inexistentes mecanismos de protecção social, podem ser devastadoras. Como alguns o defendem “não há desequilíbrio mais grave em tempos de paz, nem mais ameaçador para os alicerces da sociedade do que o desemprego maciço, numa época em que as sociedades fazem do trabalho e do emprego um valor fundamental e o principal garante da subsistência humana e familiar e, por conseguinte, da integração social” (Fitoussi, 1997).

Num país onde a taxa de desemprego a nível nacional é de 16,8%, equivalente a 32,1% entre a população juvenil com idade compreendida entre 15 e 24 anos (INE, 2012), não constituirá, a criminalidade (juvenil), entre outras situações, expressão de tais desequilíbrios?

Mas, lá está, trata-se de factores que dificilmente aparecem isolados. Não podemos ter uma visão simplista e determinista de que as relações familiares (conflituosas) e/ou as desigualdades sociais geram, por si só, a criminalidade, nem se pode explicar através de uma só teoria todos os tipos de conduta criminosa.

 

Pós-graduação em Criminologia e Intervenção Social

Face às condutas criminosas que tanto têm preocupado os cabo-verdianos, o Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais (ISCJS) avançou com um Curso de Pós-graduação em Criminologia e Intervenção Social. O Curso, coordenado pela Professora. Nazaré Varela, visa dotar os seus alunos de uma visão abrangente sobre a problemática.

Esta é a primeira edição do Curso de Pós-graduação em Criminologia e Intervenção Social. Porquê a aposta nesta área?
O Curso de Pós-graduação em Criminologia e Intervenção Social insere-se no projecto de oferta pós-graduada do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais (ISCJS), em áreas estratégicas para o desenvolvimento nacional. A sua pertinência é encontrada no contexto actual cabo-verdiano de profundas mudanças sociais e de agravamento da criminalidade e a sua complexificação, relativamente às formas tradicionais de condutas criminosas. Enquanto instituição de ensino superior, Enquanto instituição de ensino superior, comprometida com o desenvolvimento económico, social e  cultural e a quem não são alheias as questões da actualidade, o ISCJS procura, com esta formação, contribuir para um melhor conhecimento da problemática no contexto nacional e, através deste, para a adequação dos mecanismos de intervenção com vista ao combate da criminalidade. Pela pertinência Pela pertinência e actualidade, este Curso oferece aos profissionais desta área, nele inscritos, a oportunidade do aprofundamento dos conhecimentos sobre a matéria da criminalidade e da intervenção social, nomeadamente, com vítimas de violência, jovens delinquentes, adolescentes em conflito com a lei, menores em perigo, entre outros, em toda a sua abrangência, ou seja, numa perspectiva da prevenção, intervenção e reinserção e constitui uma oportunidade pioneira de formação em contexto nacional, portanto, a baixo custo, em área de relevante interesse, necessária, cremos, ao enfrentamento das questões sociais da
nossa actualidade.


Como está estruturado o Curso?
Com uma carga horária de 90 horas, o Curso encontra-se estruturado em seis módulos, que serão leccionados de Maio a Julho de 2013, no ISCJS, em horário pós-laboral, das 18h00 às 21h00. Conta com um corpo docente, do contexto nacional e es- contexto nacional e estrangeiro, altamente qualificado bem como com a participação altamente qualificado bem como com a participação de representantes de instituições nacionais, que intervêm com a problemática da criminalidade e da delinquência juvenil, que trarão, para o contexto das aulas, as suas experiências de intervenção, conferindo-lhe (ao Curso) uma dimensão igualmente prática, voltada para a intervenção social. De referir que o Curso decorre com um total de 48 inscritos com formação nas áreas das ciências sociais e humanas, provenientes de instituições
diversificadas, sendo alguns deles das outras ilhas.

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Autoria:Sara Almeida,16 jun 2013 0:00

Editado porElsa Vieira  em  17 jun 2013 10:28

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