“A maioria dos livros sobre a música cabo-verdiana carece de trabalho de pesquisa”

PorAntónio Monteiro,14 jul 2013 0:00

Alveno Figueiredo vive actualmente em Portugal, onde está vinculado à Editora Estampa através de um contrato para escrever livros sobre a música cabo-verdiana. O jornalista trabalhou em Cabo Verde em diversos órgãos da comunicação social, tendo sido o primeiro apresentador do programa televisivo “Nha Terra, Nha Cretcheu”. Em 2004 publicou o seu primeiro livro sobre a música cabo-verdiana intitulado “Aspectos político-sociais da música de Cabo Verde no século XX”. Em 2010, a publicação do seu segundo livro chamou a atenção da Editora Estampa onde, desde então, vem publicando os seus livros. “Não é nenhuma editora de esquina. Eles apreciaram o meu trabalho e honraram-me com um contrato para fazer vários trabalhos. Consideram-me um dos primeiros cabo-verdianos a abrir as portas para a actividade literário-musical em Portugal”. Nesta conversa, Figueiredo aborda vários aspectos da música cabo-verdiana e ressalta a falta de pesquisa em muitos livros publicados. “Acreditamos muito no ouvi dizer, mas não aprofundamos”.

 

Expresso das Ilhas – A morna é candidata a património imaterial da humanidade. O trabalho de casa está a ser bem feito?

Alveno Figueiredo – A morna preenche todos os critérios para vir a ser património mundial. O que não sei é se estamos preparados para organizar todo o dossiê e apresentá-lo convenientemente na sede da UNESCO para avalizarem esta candidatura. Repare, o fado, que em 2011 foi atribuído este título, tem mais divulgação, porque está no coração da Europa, teve uma Amália Rodrigues que a expandiu para outras latitudes. A morna só recentemente, na década de 90, pela voz da Cesária Évora, é que se tornou um fenómeno à escala mundial. É claro que já nos anos 30 houve movimentos de divulgação com “Maria Barba” e mais tarde com “Voz de Cabo Verde” e outros grupos. Vamos lá ver se conseguimos, porque enquanto música, pela técnica e a temática, é muito parecida com o fado. Mas enquanto em Portugal se tem produzido muita literatura sobre o fado, em Cabo Verde a situação é bem mais modesta neste aspecto. O material é deveras escasso…

 

Não se trata tanto da quantidade, mas da qualidade das publicações. A obra “Aspectos Evolutivos da Música Cabo-Verdiana” de Manuel de Jesus Tavares foi
agraciada em 2005 com o Prémio Sena Barcelos instituído pelo Centro Cultural Português/Instituto Camões.

Sim, ele fez um trabalho interessante. Posso apontar também os trabalhos de pesquisa de Carlos Gonçalves, Moacyr Rodrigues, Brito-Semedo, Margarida Martins, Vasco Martins, Gláucia Nogueira… Mas acho que a nível da literatura especificamente sobre a morna não há grande coisa. De facto, as poucas obras existentes têm qualidade, mas não são suficientes.

 

Quais são as virtudes e debilidades dos livros publicados?

Naturalmente que nenhuma obra é completa, mas noto que na maioria delas falta trabalho de pesquisa. Nós acreditamos muito no ‘ouvi dizer que’, mas não aprofundamos. Gostaria de destacar neste aspecto o César Monteiro que tem publicado alguns livros de qualidade. Aqui em Cabo Verde deverá haver uns dois ou três autores que se preocupam com a pesquisa, que vão ao terreno e fazem o trabalho. É desse trabalho que nós precisamos em Cabo Verde.

 

Os músicos da geração Pantera davam muito valor à investigação e recolha musical. Qual é o resultado desse trabalho?

Acho que eles deram o seu contributo, mas ficou pelo caminho, porque não chegou ainda à meta. Já Orlando Pantera começou por fazer um trabalho interessante que a sua  morte prematura interrompeu. Ele teve alguns continuadores como um Princezito, um Vadú, um Tcheka, mas mesmo assim o alvo ficou muito longe de ser atingido.

 

 A história da arte ensina-nos que nenhum processo é levado até ao fim, porque de repente as pessoas cansam-se e querem ouvir outros sons.

É isso que me preocupa. Há dias estava a ouvir na rádio uma música sobre uma moça que queria ir para a fonte, etc. Essa ida à fonte ou às ribeiras quando bem tratada no passado, tudo bem. Mas hoje em dia não é a nossa realidade, a maior parte das raparigas já não vai à fonte buscar água. A maior parte das casas têm água canalizada, etc. O tempo mudou e os nossos compositores têm de fazer jus a esta realidade.

                      

As letras têm de  se adaptar aos novos tempos

 

É normal que se lembre de uma frase ou outra daquele tempo, mas mais como termo de comparação. Mas não podemos estar a cantar infinitamente bâ rubera, subi sulada. É muito bonito, mas já teve o seu tempo. A música e as letras têm de adaptar-se aos novos tempos, senão não avançamos.

 

Reparo também que nos cansámos da música electrónica e regressamos outra vez à música acústica. Hoje em dia todo o cantor que se preze grava acústico. Porque essa mudança?

Simplesmente porque está na moda. Antes ninguém ligava a música acústica electrónica. Depois do sucesso retumbante da Cesária Évora com os instrumentos acústicos, agora tudo é gaita ou ferro. Já não há inovação. Há pessoas que não têm o mínimo jeito para a música acústica, mas fazem-no porque está na moda. Há dias ouvi o Calú Bana cantar música acústica, mas não cai nos meus ouvidos. Não quero citar nomes para não ferir susceptibilidades, mas acho que cada um deve seguir o seu caminho normal. Não é por esse caminho que um artista vai agradar mais e vender mais discos.

Afirmou que as poucas obras existentes sobre a música cabo-verdiana têm qualidade, mas raras vezes anexam a partitura. É um grande problema assim?

Dou-lhe um exemplo. “Mornas - Cantigas crioulas” de Eugénio Tavares. Trata-se de um livro extraordinário e que vai seguramente contribuir para a candidatura da morna a património imaterial da humanidade, mas não tem partitura. Hoje em dia, em Portugal, uma pessoa que quer saber da morna, vai à internet e localiza o livro, abre e encontra as letras em crioulo. Muito bem, pode não entender o crioulo, mas a melodia é universal, onde está a melodia? Eu acho que embora a obra tenha sido escrita há várias décadas, podia-se integrar uma partitura que não altera a obra e só a valoriza. Pode-se encarregar um compositor ou um maestro para fazer a transcrição em partitura e mete-se no livro. Porque não? Então, como é concebível que José Bernardo Alfama, no início do século XX, teve a preocupação de incluir a partitura de todas as músicas referenciadas no seu livro e autores posteriores tenham negligenciado este aspecto? É que a música fica gravada na partitura. Mas algumas mornas de Eugénio Tavares já desapareceram, porque não conhecemos as melodias; ficaram só as letras…

 

Entretanto em Cabo Verde continuam a ser poucos os livros que trazem partitura.

Poucos. Não estou a dizer isso, porque tenha tido a preocupação de incluir as partituras nos meus livros. Embora seja uma coisa cara, mas quando a gente faz um trabalho sério não tem que ver os custos. Ou faz, ou não faz. Acho que daqui para a frente seria conveniente que se publicassem os livros com a tradução da ideia das letras e também com as partituras. Se, por exemplo, a morna for classificada como património da humanidade, os olhos irão cair sobre a música cabo-verdiana com mais acuidade. E então?

 

No seu livro sobre os aspectos sociais da música cabo-verdiana no século XX fica bem claro que os nossos músicos não eram alheios ao que se passava no mundo e que a música enquanto género artístico não é inferior à literatura como se pretendia então.

O valor desse livro são as músicas ali apresentadas. Você vai encontrar em cada década uma preocupação específica.

 

Mara bu sulada, bem da ku torno

 

Agora, estar a cantar em pleno 2013 músicas sobre ribeiras que já não existem é um anacronismo. É bom que recordemos esta época, mas não podemos estribarmos só nisso. Esse caminhar do século XX através da música é para mim a coisa mais formidável que aconteceu em Cabo Verde em termos musicais. Apesar da censura colonial, os nossos compositores acompanharam cá dentro todos os grandes acontecimentos desse magnifico século e transpuseram alguns deles para a música: por exemplo a gripe espanhola de 1918-19 que varreu a Europa e chegou cá a Cabo Verde provavelmente através do Porto de São Vicente; a chegada de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em 1922 a Cabo Verde; “Hitler ca ta ganha guerra” nos anos 40; nos anos 50 “Brasil”, uma denúncia sobre a proibição da imigração para o Brasil; nos anos 60 posso destacar a mini-saia já em coladeira; nos anos 70 o karaté; nos anos 80 queda no Murro de Berlim, etc. Portanto abrir a boca e cantar “mara bu sulada, bem da ku torno, ba ribera” não se está a reflectir a realidade, não se está a fazer o enquadramento histórico, está-se a cantar uma coisa que está desvirtualizada.

 

Porque é que acontece este regresso à fonte, às origens, ao genuíno?

Eu acho que muita gente, sem capacidade, entra na música e a única coisa que pode fazer para tentar cair nas boas graças é cantar sobre essas coisas, pensando que isso é cultura. Não é isso, porque a música é coisa séria. Tanto assim é que Katchás dizia que não estava preocupado em vender discos, mas em fazer uma obra que ficasse para a posterioridade. Ele tinha razão, o que é bom nunca acaba, o que é feito ao sabor da moda, desaparece.

 

Quer dizer que não há géneros musicais superiores ou inferiores, nem se é melhor ou pior cantor por cantar a morna ou o funaná?

Acho que às vezes a sociedade pára, porque estriba-se em determinados valores. Se aparecer aqui uma morna diferente, as pessoas dizem ‘ah, isto aqui não é morna’. Mas depois afirma-se.

 

Influências brasileiras

 

Quando o funaná chegou aos centros urbanos, foi a mesma coisa. Acho que as pessoas às vezes têm problemas em aceitar as coisas. Uma vez achei interessante o Frank Cavaquinho ter afirmado que a coladeira estava muito zucado. Disse para mim: e os sambas que o sr. aproveitou do Brasil e meteu letras. O Frank Cavaquinho tem uma obra extraordinária, mas há músicas que o Jorge Cornetim provou que não eram dele. Agora ele vem criticar que a coladeira está um bocadinho zucado. A música tem essas voltas. Lembro-me que quando o Vlú lançou em 1984 o seu disco       “Hey morena” que rompeu com tudo quanto era passado, houve um coro de críticas. ‘Isso não é música de Cabo Verde’ e ele perguntou, ‘e o disco Boas Festas de Luís Morais que toda a gente dança, é música de Cabo Verde?’ De facto, ‘Boas Festas’ tem forte música brasileira ali chapada, de Cabo Verde deve ter uma ou outra coisa. Isso é complicado. Agora eu concordo com o Kaká Barbosa, quando uns indivíduos vêm cantar umas letras de qualquer forma com música chamada rap, realmente não têm valor nenhum. Isso não é música, não é letra, não é nada. Até uma vez falei com ele e disse-me que tinha ouvido um indivíduo a querer dizer umas coisas. Então ele reescreveu a ideia que ele ouviu na rádio e disse ao indivíduo ‘certamente é o que querias dizer, vai experimentar’.

 

É claro que há ali algum laivo de arrogância por parte de Kaká Barbosa.

Certamente que nem toda a gente é compositor, nem toda a gente é poeta. Mas também com essa onda da possibilidade de gravar toda a gente está a fazer música de qualquer forma. Antigamente para gravar um disco você tinha que ter um editor. Se a música não tinha qualidade, ele dizia ‘desculpa-me, mas essa música cá não entra, procura outra porta’. E ali você tinha que caprichar. Se repararmos na década de 70 encontramos músicas com qualidade, que permaneceram até hoje.

 

Temos um ministro da Cultura que é músico. O que o sector pode esperar dele?

Ele já viveu os dois lados. Já viveu o lado do artista popular e agora está numa posição política e cultural. Eu acho que ele deve ter a capacidade de fazer uma crítica sobre o seu percurso na música e ajudar a melhorar o panorama da nossa música. Penso que tecnicamente, a nível da música, é a pessoa indicada. Não há dúvida nenhuma. Como eu disse, Mário Lúcio Sousa é uma pessoa que já esteve dos dois lados da barricada e tem pelo menos a obrigação de ajudar a fazer as coisas melhor do que alguém que tem isso só como cultura geral. Sobre ele recai essa responsabilidade: se houver condições políticas e financeiras, não há desculpa, tem que fazer. E espero que faça.

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Autoria:António Monteiro,14 jul 2013 0:00

Editado porElsa Vieira  em  15 jul 2013 10:12

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