Marilena Baessa: Centros de Emergência Infantil do ICCA: Precisam-se voluntários

PorJorge Montezinho,23 fev 2014 0:00

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O Centro de Emergência Infantil da Praia completou dez anos e o de São Vicente comemora a primeira década em breve. Estruturas que existem para dar uma resposta numa área muito específica – abuso sexual, maus tratos, negligência, abandono, crianças vítimas de trabalho infantil – e que funcionam 24h sobre 24h, sete dias por semana. Marilena Baessa, presidente do Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA), falou com o Expresso das Ilhas sobre o trabalho desenvolvido, as vitórias alcançadas, os constrangimentos e deixou uma mensagem para a sociedade civil: não custa vir dar um pouco de afecto às crianças.

 

Expresso das Ilhas – Qual é o perfil das crianças que o centro recebe?

Marilena Baessa – São crianças com idades compreendidas entre os zero e os dezoito anos. Digo zero porque a criança mais nova que recebemos tinha quatro dias e tinha sido abandonada no hospital Agostinho Neto. São crianças oriundas de famílias, na sua maioria, monoparentais, chefiadas por mulheres, onde é patente a ausência do pai. Muitas dessas crianças, principalmente as menores de seis anos, chegam sem registo de nascimento e quando efectuamos esse registo 90 por cento dessas crianças são registadas somente pela mãe. Na sua maioria, são filhos e filhas de toxicodependentes, alcoólicos e também filhos de mães portadoras de deficiência mental. A maior parte das crianças que atendemos está na faixa entre os zero e os doze anos e chegam com uma alteração no comportamento, alteração que muitas vezes é tão grave que a criança já apresenta traços de problemas mentais, motivados pelo abandono, pelos maus tratos…

 

Ou seja, é uma criança que não nasce com problemas mentais mas que os vai desenvolvendo?

Sim. Temos um caso de crianças gémeas que nasceram sem deficiência alguma, mas devido aos maus tratos uma delas chegou no centro sem andar e sem pronunciar uma única palavra. Fizemos uma investigação na ilha de onde eram provenientes e ficou comprovado que a mãe, com uma depressão pós-parto, ficou com maior afectividade a uma das crianças, rejeitando a outra, chegando mesmo a agredi-la de forma bastante violenta.

 

Qual é a situação actual dessa criança?

Neste momento, essa criança está num jardim infantil, já começou a andar e já começa a pronunciar algumas palavras, mas há ainda uma diferença muito acentuada para o outro gémeo. As crianças que recebemos apresentam problemas de obediência, são crianças agressivas, que não têm uma relação de afectividade inicial com os brinquedos e outros objectos pedagógicos que nós temos. No início a tendência é destruir, arrancar os braços, as pernas ou a cabeça das bonecas. Só com o tempo, através do trabalho feito pela educadora e pela psicóloga, a criança começa a mudar o comportamento. Não sabemos se a criança não se revê num daqueles objectos e tenta repassar toda a violência de que foi vítima. O perfil das crianças é mais ou menos este. Mas, também temos crianças vítimas de abusos sexuais, que chegam com muitos traumas. Nos últimos tempos tivemos casos de adolescentes grávidas que tivemos de acolher. Tivemos até um caso de uma adolescente grávida que recebemos e depois acolhemos tanto a mãe como o filho durante cerca de dois anos. Em relação ao sexo, não há uma predominância, os maus tratos são cometidos tanto sobre as meninas como sobre os meninos. A única diferença é mais na faixa etária, como disse recebemos mais até aos 12 anos, talvez porque a própria sociedade civil fica mais alerta para casos com crianças mais pequenas e recebemos mais denúncias. Tanto que tivemos sempre de aumentar o número de berços.

 

Quando referiu o caso dessa mãe adolescente e o filho, que estiveram dois anos no centro, isso não é uma estadia demasiado prolongada para este género de locais de acolhimento?

Com certeza. O próprio nome do centro é de emergência, para períodos curtos.

 

Mas afinal é quase um centro de acolhimento.

Sim e porquê? Porque não temos outros centros. E também entendemos que não devemos criar mais centros para acolher crianças, temos é de reforçar mais as famílias, actuar cada vez mais nos agregados e prepará-los para saberem lidar com as crianças. Este caso específico, foi um dos mais complexos que tivemos porque ela foi violada no seio da família de criação, não da família biológica, com quem aliás não tinha muitos laços afectivos.

 

Quando o centro recebe uma criança vítima de maus tratos que trabalho faz junto dessa mesma criança?

A primeira acção da equipa é uma visita à família. Dependendo de como a criança entrou no centro, esta visita pode ser feita só pelos técnicos ou acompanhados por um agente da Polícia Nacional. Como já disse, as crianças vêm de agregados familiares desestruturados e geralmente muito agressivos e o ICCA é visto, entre aspas, como um inimigo, porque tirou o filho. Em paralelo, dependendo do caso, encaminhamos também para a Procuradoria Geral da República, ou directamente para a Curadoria de Menores ou para a Polícia Judiciária, essas são as três instituições para as quais temos de enviar informação imediatamente. Quando se trata de um caso mais simples, entre aspas, como o comportamento das crianças, dos pais, crianças que tentaram suicidar-se, aí já trabalhamos com o Hospital da Trindade. Nunca actuamos sozinhos porque as crianças precisam de uma protecção sistémica. No entanto, falámos desse caso específico da mãe adolescente mas, infelizmente, temos crianças que ficam seis e sete anos no centro. 

 

Isso acontece porquê? Por falta de família de acolhimento? Porque o trabalho com essas crianças é mais prolongado?

Não, estes são casos muito específicos: duas crianças com paralisia cerebral e outra com glaucoma. São crianças que a própria família rejeitou. Aliás, nesses seis/sete anos de acolhimento posso dizer-lhe que essas crianças, praticamente, não foram visitadas pela família. Tivemos o caso de uma criança que chegou a falecer por doença prolongada, que esteve connosco cerca de três anos, e que foi visitada pela mãe uma única vez. E não é por falta de tentativas por parte do ICCA. Queremos sempre que haja laços entre a criança e a família, mas quando as crianças têm qualquer tipo de deficiência as famílias abandonam-nas na instituição. Mas, temos também casos de muito sucesso, curiosamente foi uma das primeiras crianças que recebemos, em 2004, uma mãe toxicodependente que abandonou o filho no jardim de infância. Durante o acolhimento desta criança a mãe engravidou de um segundo filho, que também tivemos de acolher. Ficámos com essas crianças cinco ou seis anos. Essa mãe, sempre que não estava sob o efeito das drogas, vinha, chorava, pedia que não puséssemos os filhos para adopção, sentíamos que aquela jovem tinha uma grande afectividade pelas crianças. Conseguimos que fizesse o tratamento no Hospital da Trindade, conseguimos que arranjasse emprego e hoje ela vive com os dois filhos e está muito bem. Mostra que valeu a pena investirmos nesta mãe, caso que continuamos a acompanhar e vemos que tudo continua a correr bem.

 

Nota-se, quando fala, que nestes centros não há espaço apenas para o lado racional, que há também um lado emocional muito grande neste trabalho.

Há um lado muito afectivo. E as crianças também estabelecem laços muito profundos com todos os técnicos. Quantas vezes essas crianças chamam papá ao nosso condutor, porque é quem os leva à escola, ou ao médico. Quantas vezes chamam mamã às monitoras e técnicas. Não podemos ser apenas racionais. São centros que criámos de raiz. São centros extremamente importantes, custosos, imagine só a despesa com fraldas, com papas, com roupas, medicamentos, além das despesas de funcionamento, mas penso que vale a pena.

 

E que constrangimentos ainda enfrentam? Li um estudo que dizia ser necessário mais técnicos, mais espaço, mais formação, são dificuldades que ainda se sentem?

O espaço hoje, pelo menos na Cidade da Praia, não é nosso, mas graças às boas relações que temos com a UNICEF, que cedeu a residência da coordenadora da ONU, conseguimos um bom lugar, bem protegido, para as crianças correrem e brincarem. O centro de emergência do Mindelo ainda tem algumas limitações em termos de espaço mas a senhora ministra já nos disse que ainda no primeiro trimestre deste ano vai disponibilizar recursos para uma reforma. Já temos também uma luz no horizonte com a apresentação do projecto do centro de emergência que será construído em Achada Lém e é importante termos um centro construído de raiz. Seria bom que não precisássemos mas, infelizmente, temos de ter uma resposta. O importante da protecção é isto: estar preparado para dar uma resposta.

 

E em termos de recursos humanos?

Em termos de recursos humanos posso dizer que esse sim ainda é o nosso calcanhar de Aquiles. Temos um número pré-estabelecido em termos orçamentais, em termos de capacidade técnica para responder ao acolhimento das crianças. O centro de emergência da Praia está preparado para trinta crianças, mas nunca tem menos de trinta e cinco, até à última sexta-feira tinha quarenta. Se eu tenho orçamento para trinta e pessoal para trinta mas acolhemos quarenta – já chegámos a cinquenta e seis – é claro que há um desequilíbrio. Daí que apelamos sempre para dois aspectos. O primeiro, para o voluntariado. Você, por exemplo, não trabalha dez horas por dia de domingo a domingo, porque não passar pelo centro durante uma hora para contar uma história às crianças? Porque não levar uma viola e cantar com elas? Porque quando temos um voluntário assim, a monitora pode estar a fazer outra coisa e as crianças têm esse tempo de lazer. Porque duas monitoras para quarenta crianças não o conseguem, porque têm de garantir a higiene das crianças, a alimentação, que façam os trabalhos de casa, etc., penso que esse handicap poderia ser colmatado com o voluntariado, mas com um voluntariado a sério, não é ir uma vez e depois desaparecer, porque as crianças criam expectativas e preparam-se. A segunda questão são os apoios complementares ao nosso orçamento e isso vamos tendo – alimentação, medicamentos, vestuário.

 

Ou seja, da sociedade civil recebem o apoio material mas querem também o tempo.

O tempo, o recurso humano. Nas férias costumamos ter um pico de voluntários, porque temos também muitos estrangeiros que vêm, muitos estudantes que estão fora. Temos uma senhora portuguesa, professora reformada, que todos os anos vem passar três/quatro meses no centro como voluntária e as crianças já sabem que em Dezembro chega a ‘vovó portuguesa’. Apelamos a mais voluntariado. Mesmo as pessoas desempregadas, porque não fazem mais voluntariado? Eu sei que é difícil quando estamos a pensar nas contas para pagar, mas de certeza que com aquelas crianças consegue momentos de alívio e ao mesmo tempo vai ganhando experiência e o voluntariado entra para o currículo, mas essencialmente dá a si mesmo a possibilidade de fazer algo de bom por aquelas crianças que têm tantos problemas e que muitas vezes só precisam de um abraço e de carinho. E não custa nada a ninguém.

 

E temos uma sociedade aberta a esse voluntariado?

Eu penso que sim. Mas também penso que devemos insistir mais no voluntariado. Seria excelente que para cada cinco crianças tivéssemos um técnico, mas isso não acontece. Por outro lado, se tivéssemos mais voluntários por sistema conseguíamos compensar essa falta.

 

Tanto mais que ao fazer voluntariado contribui-se para uma sociedade melhor.

Aquela criança que tiramos da rua, aquela criança ajudada pela sociedade seja com donativos seja com voluntariado, é a mesma criança que sem estas ajudas no futuro poderia vir a assaltar-nos. As nossas atitudes de hoje reflectem-se no futuro. Sabe o que eu digo, não vale a pena as grades nas janelas porque não passamos toda a nossa vida dentro de casa. Nós saímos e lá fora estarão as crianças e os jovens excluídos à espera. Mas, se colaborarmos para melhorar a realidade dessa criança e desse jovem, colaboro também com a minha realidade. O bem que eu faço para uma criança é um bem que eu faço para a sociedade, para o país e para mim também.

 

Falámos da sociedade e voluntariado mas e as crianças, como é que a sociedade cabo-verdiana as trata?

Felizmente a criança tem sido prioridade há muitos anos. Hoje temos pré-natal em todos os centros de saúde do país, temos a maioria das crianças vacinadas, nos jardins infantis, nas escolas primárias e no ensino secundário. Ou seja, quando analisamos as políticas sociais vemos que a criança sempre foi prioridade em todos os sectores e cada vez mais está a ser uma prioridade.

 

Esse é o lado material. E o lado imaterial?

Pois, entretanto as sociedades avançam, envolvemo-nos cada vez mais no consumismo capitalista, mais no ‘ter’ que no ‘ser’. Hoje, mesmo as crianças querem mais ter do que ser. Penso que as crianças hoje amadurecem mais cedo, têm acesso a mais informação, mas é uma informação não trabalhada, não dialogada, por isso interpreta o que consumiu e tira as suas conclusões porque cada vez mais os pais têm menos tempo para as crianças. Vemos cada vez mais crianças entregues a empregadas, ou a si mesmas, na rua. O que podemos observar em Cabo Verde é que diminuiu a solidariedade social, em que um filho de uma mãe do bairro era, entre aspas, filho de todos. Perdemos valores mas isso acontece a nível global e, infelizmente, nós os adultos não estamos a conseguir acompanhar o ritmo dessas transformações. Penso que temos de reflectir bem e equilibrar o material e o tempo. Porque eles não ficam à nossa espera, procuram eles mesmos as informações, informações que muitas vezes nem desconfiamos. Isto vai reflectir-se no modelo de família que servirá de referência para essas crianças, para a família que eles próprios vão um dia estabelecer. E isto é independente da classe social. Muitas vezes até são as pessoas das classes menos favorecidas que têm mais tempo para os filhos. Temos muitas políticas que respondem à criança mas as famílias têm de fazer uma análise e perguntar como está a correr a relação com as crianças. Como é que estamos hoje a agir com os nossos filhos?

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Autoria:Jorge Montezinho,23 fev 2014 0:00

Editado porAndré Amaral  em  24 fev 2014 13:02

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