Este país (ainda) não é para velhos

PorSara Almeida,2 mar 2014 0:02

O aumento da esperança de vida e diminuição da taxa de natalidade mudaram o panorama demográfico mundial. Hoje, os idosos constituem uma franja de peso na maior parte das sociedades. Apesar de ter uma população ainda muito jovem, Cabo Verde segue as tendências globais e começa a ser imperativo pensar o futuro com olhos postos nessa realidade. Outros olhares, no entanto, podem ser tidos em conta: além do cuidado aos idosos de cá, o acolhimento de turistas seniores e a potencialidade de exportação de mão-de-obra formada na área poderão ser vantajosos para a economia cabo-verdiana.

 

À semelhança do que se passa na maior parte do mundo, Cabo Verde tem visto a sua esperança de vida aumentar significativamente ao longo das últimas décadas. De acordo com os dois últimos Recenseamentos Gerais da População e Habitação, se em 2000 a esperança de vida era de 75 anos para as mulheres e 67 para os homens, em 2010 era já de 79,1 para elas e 69,7 para eles. E as projecções apontam para um aumento contínuo.

Só por si, esta evidência pede já uma atenção redobrada no que toca às questões do idoso. E embora se comece já a dar alguma atenção a esta fase da vida e suas particularidades, nomeadamente com a publicação da “Carta de Política Nacional para a Terceira Idade”, em 2012, a verdade é que ainda pouco foi feito e o foco ainda não foi além da juventude do país.

“Como somos muito jovens ainda não há essa preocupação. Mas esquecemos que se continuar assim daqui a 20, 30 anos, Cabo Verde vai envelhecer,” observa a professora Deisa Cabral Semedo.

“Podemos aproveitar o facto de sermos jovens para nos preparar e fazer com que o envelhecimento venha doutra forma. Não cometer os mesmos erros que outros países já cometeram”, acrescenta.

 

Uma área incipiente

A verdade é que cerca de metade da população cabo-verdiana tem, actualmente, menos de 20 anos e a idade média é de 26 anos. Contudo, o panorama em breve vai mudar com o aumento da esperança de vida e diminuição da taxa de natalidade – em 1990 o número médio de filhos por mulher era de 5,5 enquanto em 2010 passou para 2,6.

Pensar estratégias para um melhor futuro é importante, e é urgente começar já, até porque os idosos de hoje também precisam de melhores cuidados. Uma via para dar resposta é a formação especializada, que neste momento é praticamente inexistente.

Deisa Cabral Semedo é pioneira, em Cabo Verde, na área da Gerontologia e Geriatria, na qual está a fazer o seu doutoramento. É também professora da cadeira de Saúde do Idoso, do curso de Enfermagem da Uni-CV.

 “Na prática, o que ensinamos aos alunos nessa cadeia não é algo muito novo, porque eles já sabem como funciona para os adultos”. Nessa cadeira o que se faz é preparar os alunos para algumas especificidades encontradas no mercado de trabalho, em serviços com utentes idosos, fazendo “uma breve abordagem sobre o envelhecimento em si para que os alunos adquiram algumas competências para poderem responder” às necessidades do envelhecimento.

Em Enfermagem há pois já alguma preparação direccionada para os cuidados à terceira idade, mas a área é multifacetada e abrange um conjunto de profissionais que em Cabo Verde ainda não encontram a formação específica desejada.

 “Há uma necessidade, de facto, de capacitação dos técnicos que trabalham com idosos”, concorda Isabel Delgado, coordenadora do Centro de Dia da Terceira Idade de Castelão e chefe de Divisão de Acção Social da Câmara Municipal da Praia (CMP).

Para a coordenadora, essa ausência de formação específica cria limitações e sem ela “ não vamos ter intervenção com a qualidade” que se pretende, considera.

 

A realidade cabo-verdiana

“A verdade é que as pessoas ainda não têm noção da problemática do idoso em Cabo Verde. Mas o problema leva-nos a ver que é preciso direccionarmo-nos também para a 3ª idade”, acrescenta.

Mas, apesar das muitas falhas a nível de resposta nacional no cuidado aos idosos, há elementos da realidade cabo-verdiana que (ainda) são positivos e contribuem para uma velhice mais agradável e menos isolada. Nomeadamente, a cultura onde ainda são vigentes os valores da união da família e onde várias gerações compartilham tectos e cuidados, conforme destacam as duas entrevistadas.

 “Em Cabo Verde, cuidamos dos nossos idosos, quase toda a família tem os pais, os avós em casa e, ao contrário de outros países, não se põe a questão de os colocar num lar,” observa Deisa Cabral Semedo.

Também isto está a mudar. As famílias são cada vez mais nucleares, os ritmos de vida estão a acelerar, e o tempo que se passa em casa e se dispõe para atender às necessidades dos idosos é cada vez menor.

Uma outra característica relacionada com os idosos em Cabo Verde é que muitos destes ainda são bastante activos, mesmo em termos profissionais. “A maioria dos idosos não trabalhou para ter uma aposentadoria, não descontou” e o subsídio (5.200 escudos) atribuído pelo governo, não chega para viver. “Então, os idosos têm necessidade de estarem activos”, analisa Deisa Semedo.

Há no entanto uma grande diferença entre os idosos do meio rural e os do meio urbano. Ambas entrevistadas concordam que os primeiro são mais felizes, se é que tal se poderá generalizar.

“No interior vemos pessoas idosas ainda a trabalhar e isso também ajuda na forma de serem independentes”, diz Deisa Semedo.

Na cidade da Praia, o Centro de Dia da Terceira Idade de Castelão recebe diariamente entre 18 a 20 idosos que integram um conjunto de quase 80 beneficiários que recebem refeições quentes e usufruem de actividades pontuais em outros pontos da cidade.

Na percepção da coordenadora do Centro, Isabel Delgado, “os idosos que temos na cidade e, sobretudo os nossos utentes, são na maioria idosos que vieram do interior. Os filhos vieram e trouxeram os pais. Há uma pequena dificuldade de adaptação, de saírem do meio, da casa onde podiam fazer tudo e agora estarem, limitados, em casa do filho ou da filha”.

“Idosos no mundo rural são idosos que estão no seu dia-a-dia. Limpam, cuidam dos animais estão muito mais em liberdade”, acrescenta.

E depois, há, claro, uma vertente pessoal. Basta ver os reformados: enquanto uns encaram bem o facto de deixarem de trabalhar, e pensam “vou aproveitar a vida”, outros sentem-se deprimidos por não serem membros produtivos da sociedade.

“Há que ver a pessoa em todas as suas dimensões. Não se pode ver só a parte psicológica, ou física, ou biológica ou financeira. Cada pessoa é diferente e adapta-se à velhice de forma diferente. Aceita a idade de forma diferente”, diz Deisa Cabral Semedo.

Apesar de alguns dados concretos, ainda há muito a perceber no que toca à vida dos idosos em Cabo Verde. Nesse sentido, avança Isabel Delgado, a CMP vai realizar no decorrer deste ano um estudo para avaliar a situação do idoso na cidade.

“Não se trata só de saber onde estão e quantos são, mas saber quem são, o que precisam, quais as suas necessidades, para podermos depois criar respostas”, avança a chefe de Divisão de Acção Social da CMP.

“Queremos, por exemplo, estudar a capacidade funcional dos idosos. Vamos ver o grau de independência do idoso e ver qual o serviço mais adequado”, exemplifica.

 

Lares vs Centros de Dia

“Os estudos dizem que quando se coloca uma pessoa num lar, no espaço de dois a três anos morre. O grande problema é tirar do ambiente, do habitat, e colocar num sítio estranho. É que nós vemos muito o lado fisco e esquecemos a parte psicológica das pessoas”, diz Deisa Cabral Semedo.

 Se já ir morar com os filhos é complicado, imagine-se morar com estranhos. A verdade é que as actividades distraem, mas o que a enfermeira e docente recomenda é que, em caso de mudança, se faça um acompanhamento psicológico para melhor adaptação.

A aposta em Cabo Verde, nomeadamente a da CMP, tem sido a de manter o idoso na família por forma a não sentir tão deslocado e a mudança não ser tão brusca. Além disso, a construção e manutenção de lares levanta problemas de ordem financeira, uma vez que é um serviço de elevados custos.

 “Defendemos idosos na família, mas, ao mesmo tempo, estamos a verificar que há necessidade de criação de lares para idosos que vivem sós, que as famílias não têm como” os acolher, admite, no entanto, Isabel Delgado.

Mesmo assim, para esses casos, a coordenadora do centro de Castelão acredita que o serviço de apoio ao idoso ao domicílio seria o “ideal”, evitando assim o “ir viver para um lar” e proporcionando o apoio ao idoso.

Entretanto, a maior demanda continua de facto a ser para centros de Dia como o de Castelão. 

Seja lar, seja centro de Dia, um serviço que acolha idosos, necessita, além de uma infra-estrutura adaptada, uma equipa multidisciplinar que englobe desde médicos e enfermeiros, a assistentes sociais, fisioterapeutas, cozinheiros, enfim, todo um conjunto de profissionais.

No Centro de Castelão, gerido pela CMP e criado em 1991, trabalham 16 pessoas: cozinheiros, motorista, assistente social, animadora social, técnica de expressão plástica, guardas e ajudantes de serviço geral. Não é a equipa ideal, mas é a possível. Quando é necessário o idoso é encaminhado para outros serviços, nomeadamente para as estruturas de saúde.

“Tentamos fazer o trabalho da melhor forma possível mas temos algumas falhas, alguns constrangimentos e dificuldades em termos pessoas especializadas para a área. Como sabemos, com a terceira idade é necessário uma equipa multidisciplinar. Não temos condições para tal”, explica Isabel Delgado.

No Centro, além das refeições e convívio entre idosos, há uma agenda de actividades que vão desde palestras, a rastreios, e outras acções de “educação para a saúde na terceira idade”, que tenta apostar na prevenção de doenças e no bem-estar do utente.

 

Turismo e passeios

O aumento dos idosos no país e os novos estilos de vida acabarão por trazer o assunto da terceira idade para a ribalta, crê-se.

Numa outra perspectiva, também já por algumas vezes se falou em Cabo Verde de turismo e residência vocacionados para cidadãos estrangeiros reformados. O clima do arquipélago a isso convida, mas as debilidades em termos de oferta de saúde afugentam quem possa necessitar de algum cuidado especial, crónico, ou tema sofrer algum problema repentino.

A falta de assistência médica de qualidade – que passa nomeadamente pela escassez de recursos humanos capacitados, inexistência de infra-estruturas e materiais em algumas ilhas, e transporte deficitário para hospitais centrais, - afecta qualquer decisão dos idosos que poderiam vir passar temporadas ao arquipélago.

E fora do âmbito restrito da doença, Cabo Verde é também pouco acolhedor para os idosos, sejam turistas, sejam cabo-verdianos, como qualquer transeunte novo ou velho o poderá confirmar. 

O conceito de cidade “Amiga do Idoso” é desconhecido. Consiste, como explica Deise, em ter em atenção alguns pormenores que ajudam a facilitar a deslocação dos mais velhos (e outros grupos de mobilidade física condicionada) no espaço urbano. Rampas, passeios nivelados, piso regular, áreas de lazer, casas de banho adaptadas… tudo isto ajuda o idoso nos seus passeios e, ao lhe “devolver” a cidade, melhora-se a sua qualidade de vida.

“Fala-se muito em qualidade de vida, e qualidade de vida vai muito além da parte da saúde, tem toda a estrutura psicológica e social e cultural. É ver os idosos de uma forma holística, no seu todo”, especifica Deisa Cabral Semedo.

Na cidade da Praia, a maior parte das zonas até para funâmbulos é pouco amistosa. De acordo com Isabel Delgado, não há nenhum plano em concreto no que diz respeito aos idosos. Mas há já projectos para facilitar a mobilidade de pessoas deficientes.

“Está-se já a trabalhar [nesse sentido] e os idosos também vão beneficiar dessas modificações que estão a ser feitas”, garante Isabel Delgado.

 

Procura-se para exportação

A nível internacional basta abrir um qualquer site de emprego para ver a grande demanda que há a nível de enfermeiros. De acordo com uma recolha e compilação realizada pela BBC em 2013, entre os países que procuram enfermeiros estão os EUA, a Suíça, a Austrália, a Áustria, a Bélgica, o Canadá, a Dinamarca, a Finlândia, Hungria, Irlanda, … entre muitos outros. E muitos desses pedidos dirigem-se a profissionais especializados em cuidados geriátricos.

Na Alemanha, por exemplo, de acordo com o governo desse país, para cada enfermeiro geriátrico qualificado, há três postos de trabalho que precisam ser preenchidos.

Ao contrário do que já acontece em outros pontos do globo, em Cabo Verde ainda não há formação específica na área de Gerontologia/Geriatria, apesar de algumas cadeiras específicas, como a de Saúde do Idoso, do Curso de Enfermagem da Uni-CV, versarem sobre essa área.

“Não formamos enfermeiros só para Cabo Verde”, argumenta Deisa Cabral Semedo. O leque é alargado e visa formar profissionais para trabalhar em qualquer parte do mundo.

Quanto à aposta na especialização geriátrica em específico, “se Cabo Verde pegar nessa área obviamente que vamos ter um bom mercado lá fora”.

“A estimativa para 2050 é que mais de metade da nossa população a nível mundial seja idosa” e portanto, o emprego no fim dos estudos é quase garantido.

No entanto, “o facto de ainda não termos começado a preparar-nos nesse aspecto, se calhar deixa-nos um bocadinho atrás de países onde há seis ou sete anos se formam profissionais especializados. A nível de emigração não vamos ter produtos para oferecer, isto é, “mão-de-obra qualificada nesta área. Porque, cada vez mais, não basta ter vocação ou ter um dom para cuidar da pessoa. Cada vez mais, em tudo, é preciso profissionais qualificados”, conclui.

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Autoria:Sara Almeida,2 mar 2014 0:02

Editado porAndré Amaral  em  4 mar 2014 11:07

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