Tráfico de droga: Do México para o Mundo passando por Cabo Verde

PorAndré Amaral,3 mar 2015 0:00

‘Mares de Cocaína’ traça as rotas do narcotráfico global feito por via marítima. Ana Lilia Pérez, jornalista mexicana de investigação, escreveu este livro e mostra que Cabo Verde é, hoje, a par de outros arquipélagos atlânticos, um ponto de passagem privilegiado para grande parte da cocaína traficada pelos cartéis mexicanos.

 

“Hoje, é comum que os criminosos operem com rosto de armador, agente de navegação, marinheiro, empresário importador ou agente aduaneiro... Não existe no mundo um porto que seja intransponível para as máfias do tráfico de droga.”

‘Mares de Cocaína’ começou a ser escrito em 2004, quando Ana Lilia Pérez investigava o caso que deu origem a ‘Camisas azules, manos negras: el saqueo de Pemex desde Los Pinos’ e visitou uma plataforma petrolífera no mar ao largo do México. ‘Mares de Cocaína’, no entanto, só viu a luz do dia passados 10 anos e neste livro Ana Lilia Pérez revela que a corrupção é o factor que permite a expansão do tráfico de drogas a nível global.

Ao longo de todo o livro, a jornalista retrata como o tráfico de droga se processa. Conta os detalhes de algumas operações de tráfico, mas também  de como as forças de segurança, a nível mundial, procuram dar luta a este flagelo.

Cabo Verde é, por diversas vezes, mencionado neste ‘Mares de Cocaína’. Ana Lilia Pérez explica o que leva os grandes traficantes a optarem por ilhas e arquipélagos como Cabo Verde como ponto de passagem nas rotas de tráfico (ver entrevista) e relata casos de apreensões feitas ao redor do mundo.

Uma dessas apreensões aconteceu ao largo de Cabo Verde e a história é contada em poucas palavras.

Um navio de recreio, conta o livro, abandou um porto mexicano com um carregamento de duas toneladas de cocaína. O destino era a Europa. Após sair do México, a embarcação fez uma escala em Curaçao partindo depois em direcção ao seu destino final. A meio do Atlântico, nova paragem, troca-se o nome do iate, muda-se a sua bandeira e a viagem prossegue sem sobressaltos.

Na chegada a águas cabo-verdianas o iate é abordado por um destroyer da marinha inglesa que se encontrava aqui em missão de patrulha. O iate é arrestado e os seus tripulantes detidos sob suspeita de tráfico de droga.

Os militares ingleses inspeccionam o navio. Não havia sinal da cocaína. Passam-se quase 48 horas. As autoridades britânicas começam a colocar em causa a veracidade da fonte de informação e o período durante o qual podem deter os suspeitos está quase a terminar. “É então que se questionam. Qual é o único sítio onde é mais improvável encontrarmos droga? No leme”, relataram os militares britânicos à jornalista. O leme do navio é desmontado e, no seu interior, “em vez da espuma que ajuda à flutuação, que devia preencher o interior do leme, estavam duas toneladas de cocaína”.

Mas Cabo Verde não é só apontado ao longo do livro pelos casos de sucesso, ainda que indirectos, no combate ao tráfico.

A par dos Açores, da Madeira e das Canárias, Cabo Verde é exposto como um ponto de passagem das drogas que, vindas da América do Sul, procuram alcançar o mercado europeu.

O livro tem apenas edição em espanhol e não está, para já, prevista a sua tradução para português.

 

Jornalista de  investigação

Ana Lilia Pérez Mendoza é uma jornalista mexicana que tem publicado diversas reportagens sobre temas como a corrupção, lavagem de capitais, migrações e o sector energético. Com ‘Mares de Cocaína’ Pérez aborda agora o tráfico internacional de estupefacientes e os cartéis mexicanos por trás deste fenómeno.

Licenciada em Comunicação e Jornalismo pela Universidade Autónoma do México Ana Lilia Pérez tem publicado reportagens de investigação em diversos meios a nível mundial, tendo os seus trabalhos sido traduzidos em mais de 20 línguas.

O trabalho que lhe deu reconhecimento a nível mundial foi ‘Camisas azules, manos negras: el saqueo de Pemex desde Los Pinos’, um livro onde Ana Pérez denuncia um caso de corrupção e o tráfico de influências numa empresa estatal mexicana.

Depois de ‘Camisas azules, manos negras: el saqueo de Pemex desde Los Pinos’ e ‘O Cartel Negro’, Ana Lilia Pérez escreveu ‘Mares de Cocaína’ aquele que é considerado pela crítica como sendo talvez “o trabalho mais ambicioso da sua carreira: Mares de cocaína, é uma assustadora investigação sobre o tráfico de drogas que se realiza através de centenas de rotas marítimas internacionais, e onde alguns cartéis mexicanos até estão a cobrar impostos fixos”.

Com uma carreira jornalística sólida, a autora viajou por “mares e portos em todo o mundo para examinar as maneiras pelas quais os gangues se têm infiltrado nas mais importantes rotas comerciais marítimas. É então que Ana Lilia Pérez descobre o suporte usado pelas organizações criminosas para fazer a cocaína chegar aos elegantes bairros nova-iorquinos, às ruas de Barcelona ou às cidades costeiras do Mediterrâneo, mas também aos consumidores mexicanos, aos visitantes regulares da Côte D’Azur, aos jovens surfistas da Austrália, aos ‘pobres’ senhores da guerra africanos ou aos toxicodependentes alemães e aos hooligans britânicos”.

 

Ana Lilia Perez: “Cabo Verde é identificado pelas agências de Inteligência com uma bandeira vermelha”

Na sequência do lançamento de ‘Mares de Cocaína’, o Expresso das Ilhas entrevistou por email Ana Lilia Perez. A escritora e jornalista não hesita e recomenda que as autoridades nacionais estejam de olhos bem abertos para o que se passa nos nossos mares, mas também para o que se passa nos ceús de Cabo Verde.

Expresso das Ilhas - Qual a importância da Rota do Atlântico do tráfico de drogas para os cartéis mexicanos?

Ana Lilia Pérez - A Rota do Atlântico é hoje uma das principais rotas usadas por cartéis mexicanos para contrabandear drogas por via marítima para diferentes regiões do mundo. Isso é feito de diversas formas, seja através do envio de navios, particularmente barcos de pesca, ou através da utilização de contentores e outros recipientes de transporte capazes de esconder grandes quantidades de droga.

 

Os cartéis mexicanos têm vindo a ganhar cada vez mais importância no tráfico de drogas em todo o mundo, ocupando um papel que até recentemente era detido pelos cartéis colombianos. Como se deu essa mudança?

O Plano Colômbia, que concentrou os esforços na luta contra as drogas naquele país sul-americano, criou um efeito de atomização entre os traficantes colombianos, particularmente o chamado Cartel Norte del Valle - que era especialista no tráfico marítimo. Para conseguirem estar longe do olhar da DEA e do FBI escondiam-se noutros países da região e reforçaram também as suas parcerias com traficantes mexicanos. Foi um momento de oportunidade em que os traficantes mexicanos, muito mais violentos e poderosos e com o amparo da corrupção desenfreada que existe no México, foram capazes de expandir os seus negócios a praticamente todo o continente e mais além, assumindo o papel de coordenadores no trânsito das drogas, e isso tem a ver com a operacionalidade via terrestre e marítima para os Estados Unidos. Devemos lembrar que, em muitos casos, para enviar estupefacientes para os Estados Unidos, Pablo Escobar ou os irmãos Rodriguez com o cartel de Cali e depois o poderoso Norte del Valle Cartel, precisavam da colaboração de organizações criminosas mexicanas para terem sucesso nestas transferências.

 

A ONU marcou, por exemplo, a Guiné-Bissau, como um narcoestado. Esta definição pode ser aplicada ao México?

Este termo pode aplicar-se totalmente ao México. O México é hoje um dos países que está tomado pelo crime organizado. Muitos territórios mexicanos são controlados por cartéis de drogas, que são quem verdadeiramente impõe a autoridade através dos agentes locais, pela polícia, que controla negócios e permite operar livremente a lavagem de dinheiro. Quando são os traficantes de drogas que controlam o governo e toda a organização enquanto entidade, falamos de narcoestados.

 

Quais as políticas implementadas pelo governo mexicano para combater o tráfico de drogas? Qual é a sua eficácia real?

O governo mexicano anunciou medidas contra as drogas nos últimos anos mas estas não tiveram qualquer efeito positivo, muito pelo contrário. O México caiu num estado de violência, com desaparecimentos e mortes. Os cartéis de drogas continuam a operar de forma livre, tal como antes da chamada guerra às drogas e pior, muitas dessas organizações criminosas deram à luz várias células que agora também se dedicam ao tráfico de drogas, exercem o chamado recolhimento das quotas, e incorrem numa ampla gama de delitos. As autoridades federais do Gabinete do Procurador-Geral da República (PGR) reconheceram que actualmente existem nove cartéis de droga que operam no México (Pacific Cartel também chamado Cartel de Sinaloa; Cartel do Golfo; Arellano Felix Cartel, também conhecido como Cartel de Tijuana; Poster Carrillo Fuentes, também conhecido como Cartel de Juárez; Los Zetas; La Familia Michoacana; Os Cavaleiros Templários; Cartel de Jalisco Nova Geração e o Beltran Leyva Cartel). Mas além destes surgiram 43 subgrupos ou gangues. E grande parte da violência entre estas organizações criminosas tem como pano de fundo a disputa de mares e a operação em diversos portos.

 

Milhares de pessoas perderam a vidas no México, nas guerras de cartéis e na luta contra o tráfico. Muitas vezes algumas destas pessoas são apenas vítimas colaterais. Este cenário de guerra interna tem um fim à vista?

Este cenário que você descreve é o cenário das vidas quotidianas no México. Em algumas áreas (norte do México) ou zonas portuárias a violência é mais intensa: a morte, execuções, sequestros, este cenário parece não ter fim enquanto o governo não fizer uma limpeza da corrupção reinante nas suas próprias estruturas e nas forças policiais, além de acabar com a impunidade e corrupção no sistema de justiça.

 

Qual é a capacidade de corrupção dos carteis relativamente às autoridades mexicanas? Esta capacidade também se observa a nível internacional?

A capacidade de corrupção dos traficantes é total, e isso tem-se estendido internacionalmente. Por isso é que é que as organizações criminosas mexicanas são tão poderosas. Prova disso é que estas têm a capacidade de mobilizar grandes carregamentos de droga para mares e portos em todo o mundo, mas também a capacidade de comprar e receber grandes carregamentos de armas avançadas, e também a sua capacidade para lavar o dinheiro do crime em grandes instituições bancárias mundiais, como na América do Sul na Suíça ou no coração financeiro da América.

 

Em ‘Mares de cocaína’ refere-se à existência da Autopista 10. O que é a Autopista 10? De onde vem e para onde vai?

A Autopista 10 é agora a principal “estrada” usada por traficantes para transportar carregamentos de drogas usando embarcações marítimas. É um termo usado tanto pelas organizações criminosas, como pelas autoridades marítimas responsáveis pelo combate ao tráfico de droga por via marítima, e que entre os marinheiros define a rota que começa 10 graus ao norte do plano equatorial da Terra, ou seja, é o Paralelo 10. Desde a zona 0 nas Américas (considerando-se que a América do Sul é o marco zero para a cocaína), se se vasculhar para  leste, a Autopista 10 atravessa Costa Rica, Colômbia, Venezuela, Guiné, Costa do Marfim, Burkina Faso, Gana, Togo, Benin, Nigéria, Camarões, Chade, República Centro Africana, Sudão, Etiópia, Somália, Índia, Burma, Tailândia, Vietname, Filipinas e Micronésia até às Ilhas Mashall no ponto mais remoto do Pacífico. Nesta vasta extensão que é banhada por três oceanos - o Pacífico, Atlântico e Índico - existem numerosos mares e baías nos cinco continentes.  Por isso esta rota marítima oferece uma ampla gama de possibilidades para viajar para qualquer lugar do mundo em águas com pouca supervisão e possibilidades mínimas de prisão. É uma das favoritas dos traficantes de drogas. Graças a esta abordagem, os mexicanos, com os narcotraficantes colombianos, galegos e italianos como parceiros, têm conquistado lugares tão distantes como a Austrália e as distantes Ilhas Marshall, ou têm sido entronizados - em ligação com grupos criminosos em Moçambique, Congo, Gana, Nigéria e os chamados senhores da guerra – como neocolonizadores em países africanos. Países que até há uma década atrás não sabiam o que era cocaína, hoje, com o imensurável poder do dinheiro, têm a capacidade de corromper, subornar, comprar vontades, governos, as empresas, as parcerias. São narcoestados.

 

Relata por diversas vezes, no seu livro, que Cabo Verde assim como outras ilhas do Atlântico, é um ponto de trânsito para o tráfico de drogas. Na sua opinião, o que levou os cartéis a optarem por ilhas?

A localização geográfica e a sua capacidade de operar em regiões insulares que têm estado regularmente fora da vigilância policial. Tradicionalmente as regiões insulares são regiões sem grande vigilância ou lei, como também acontece nas Caraíbas, e foi dessa falta de vigilância que os traficantes se aproveitaram.

 

Cabo Verde tem um papel importante nas rotas de tráfico internacional de drogas?

Cabo Verde é identificado pelas agências de Inteligência, especialmente dos governos europeus, com uma bandeira vermelha por ser utilizado, pelos traficantes, como zona de operação para o tráfico de drogas por via marítima. Daí que alguns organismos policiais europeus estejam a apostar na formação policial e de pessoal da área marítima de Cabo Verde para detectar transferências de narcóticos. Cabo Verde é parte da chamada rota central do tráfico de droga por via marítima, o caminho que se estende desde a América do Sul, na área do Brasil, para a Península Ibérica, e que cruza Cabo Verde para alcançar os Açores, a Madeira e as Ilhas Canárias. A droga é enviada para essas áreas, os fardos são lançados com bóias e esses desembarques são depois apanhados por lanchas rápidas. Depois estas lanchas distribuem as drogas para embarcações menores, especialmente navios de pesca e lanchas que as entregam nos portos ou nas costas dos países de destino.

 

O acha que Cabo Verde pode fazer para deixar de ser uma passagem interessante para os traficantes?

Cabo Verde é considerado como uma ponte para o tráfico de droga por via marítima. Em primeiro lugar, para inverter esta situação é preciso investigar se os actores estatais (polícia, agentes aduaneiros e portuários) não estarão a facilitar a passagem dessas remessas, porque é nestas áreas onde os traficantes tendem montar as suas redes de operações, mas também se deve prestar muita atenção à investigação do funcionamento de possíveis empresas de fachada (importação ou exportação) em Cabo Verde, e que possam estar a funcionar como um portefólio em carteira dos traficantes. Outra medida é a avaliação da existência real das empresas ou proprietários náuticos de navios que são sinalizadas em Cabo Verde ou que operam a partir de portos em Cabo Verde. Com mais regulação colocada no sistema marítimo, pelo menos, a operação dos traficantes será bastante prejudicada.

 

E quanto aos estupefacientes oriundos do México, para Cabo Verde. Como o transporte é feito?

Ele é feito através da movimentação de cargas de porto em porto, mas também particularmente através de barcos de pesca que saem de portos mexicanos. Mas a operação dos traficantes mexicanos não se circunscreve aos próprios portos ou mares mexicanos: tem-se expandido para toda a América do Sul. Países sul-americanos, que tradicionalmente tinham e têm um fluxo comercial e marítimo com Cabo Verde, quer como destino ou como um ponto de passagem, como é o caso do Brasil.

 

No seu livro, também observa que a Guiné-Bissau, Guiné Conacri e o Senegal são pontos de passagem para navios que transportam drogas. É um problema regional? Qual deve ser o papel das autoridades mexicanas e europeias para combater este fenómeno?

Sim é um problema regional, mas também se intensificou porque as autoridades desses países foram negligentes ou cúmplices para com a operação dos traficantes mexicanos. Tanto para a operação do tráfico via marítima como das vias aéreas. Por exemplo, temos hoje o Cartel de Sinaloa, uma organização criminosa mexicana, identificada como uma das organizações de tráfico de drogas mais poderosas a nível global e que têm a capacidade de movimentação de carga por via aérea também nestes países africanos. A realidade e modo de operação das organizações criminosas internacionais exige que as autoridades, tanto na África como na Europa ou no México, realizem acções conjuntas, modelos globais de combate ao tráfico de drogas, uma acção global para combaterem o crime organizado. Porque estas organizações criminosas movimentam-se a nível global. No entanto, países como o México têm estado ausentes das poucas iniciativas globais de combate ao tráfico. Acções como as que foram lançadas em regiões do Atlântico, na Europa, e agora, mais recentemente, a iniciativa lançada em Janeiro, pelos Estados Unidos da América, em colaboração com os países europeus, e que é a primeira estratégia de combate marítimo ao tráfico de drogas que acontece na zona das Caraíbas e do México. Apesar de ser um país que tem uma larga faixa costeira nas Caraíbas, o México está novamente ausente desta iniciativa o que nos dá uma outra ideia de como as organizações criminosas mexicanas são poderosas, e que assim permanecerão enquanto o governo mexicano não começar a ver o que está a acontecer nos seus mares e portos. Esta reflexão aplica-se igualmente a Cabo Verde e a outros países africanos.

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Autoria:André Amaral,3 mar 2015 0:00

Editado porAndré Amaral  em  4 mar 2015 10:10

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